Tribuna da Defensoria

Patronos independentes são a essência
do acesso igualitário à Justiça

Autor

  • Earl Johnson Jr.

    é magistrado/desembargador aposentado do Tribunal de Apelação do Estado da Califórnia e professor visitante na University of Southern California Law School.

24 de novembro de 2015, 7h00

Nota do tradutor*: A publicação da versão original deste artigo, em inglês, se justifica por ser o seu autor o célebre jurista norte-americano Earl Johnson Jr.[1], um dos principais colaboradores do professor Mauro Cappelletti no famoso “Projeto Florença”, sobre acesso à Justiça. O doutor Johnson, reconhecido mundialmente como uma das principais referências nos estudos de Direito Comparado sobre assistência jurídica gratuita para os pobres, tem se revelado um entusiasta do modelo brasileiro de Defensoria Pública, seja por suas características de “integralidade” da assistência que se propõe a prestar, seja pela autonomia e independência que lhe são constitucionalmente asseguradas. Ao tomar ciência de possível retrocesso relativamente a tão importantes características, dispôs-se a escrever este comentário para publicação na coluna Tribuna da Defensoria, sob o título "A essência do acesso igualitário à Justiça: patronos verdadeiramente independentes para os pobres".

Por séculos, tem sido reconhecido que a única coisa que mantém uma sociedade unida, a longo prazo, é o contrato social entre o governo e os seus cidadãos. E um princípio fundamental inerente a tal contrato social é que a Lei (isto é, o Direito) e os tribunais vão oferecer acesso igualitário à Justiça para os cidadãos de diferentes classes econômicas e sociais. Fora dos tribunais, suas vidas são muito diferentes: alguns vivem em mansões, outros em casebres, e muitos em modesta habitação; alguns se alimentam em luxuosos e refinados banquetes, outros mal conseguem sobreviver catando restos de comida no lixo, enquanto outros têm suas refeições cotidianas na simplicidade de alimentos comuns; alguns usufruem de seus iates, de viagens de férias ao exterior, esbanjando num modo de vida perdulário, enquanto outros lutam para sobreviver no dia a dia e podem apenas devanear com uma vida melhor, sendo que a maioria dos demais se contenta com a oportunidade ocasional de jantar fora, em um restaurante, ou com alguns poucos dias de férias.

Mas quando ingressam nos tribunais judiciários da nação, todos aqueles cidadãos, qualquer que seja sua classe, têm que ter uma posição de igualdade perante a Justiça. Do contrário, estará sendo rompido o contrato social, o que induz ao total desrespeito ao ordenamento jurídico nacional e, eventualmente, fomenta sua desintegração. Aqueles que são incapazes de obter efetividade no cumprimento das leis que existem com o propósito de protegê-los não tem razão alguma para obedecer leis que apenas limitam sua liberdade. Anarquia/ilegalidade (ou, melhor, proscrição do regime da legalidade)[2] e desordem tornam-se a única opção e modo de vida para a maioria dos cidadãos que já não terão mais fé no sistema de Justiça ou no governo que estruturou e dá suporte a tal sistema.

E então o que é necessário para assegurar essa Justiça isonômica/igualitária para todas as classes numa sociedade, quando milhões não podem custear despesas como assistência e patrocínio jurídico, absolutamente essenciais para esse objetivo? A resposta óbvia adotada pelos países, qualquer que seja sua ideologia ao redor do mundo, é a assistência jurídica gratuita (legal aid) custeada pelo governo (ou seja, com recursos públicos) em favor daqueles que não podem pagar tais despesas com seus próprios recursos.

Menos óbvio, mas igualmente essencial, é que o advogado remunerado com recursos públicos para patrocinar os interesses de um cidadão em juízo seja totalmente independente do controle e de qualquer influência dos governantes. Tal advogado deve ser o defensor do cidadão carente, com absoluta lealdade à causa daquela pessoa e a seus melhores interesses, e não aos dos governantes. Para assegurar essa absoluta lealdade ao cliente, exige-se que o defensor desfrute de autonomia administrativa e independência financeira perante os que integram o Poder Executivo. Essa necessidade é mais evidente quando o defensor está defendendo um acusado em um caso criminal, em que o Poder Executivo[3], por meio do promotor de Justiça, está no lado adversário na sala de audiências. Porém, é igualmente verdade em casos civis. Em muitos desses casos, a pessoa carente tem como adversário outros órgãos do governo vinculados ao Poder Executivo — o serviço público gestor de habitações populares, o serviço de seguridade ou Previdência Social, ou similares. No entanto, ainda quando a pessoa pobre está litigando contra outra pessoa física ou entidade privada — por exemplo, uma pessoa muito rica, um empresário, um banco, um locador, ou algo semelhante —, tanto a aparência quanto a efetiva igualdade perante a Justiça exigem que o advogado/defensor da pessoa carente seja não só efetivamente, mas que também transpareça ser o “seu” advogado, leal ao cliente em si, e não aos governantes que pagam seu salário.

Essa fundamental separação completa do advogado/defensor que atua no serviço de assistência jurídica gratuita estatal (legal aid) relativamente ao Poder Executivo tem sido implementada de variadas maneiras em diferentes países. Depois de (figurar) por alguns anos como parte integrante do Poder Executivo do governo federal, os Estados Unidos decidiram que era essencial separar o Programa Federal de Assistência Jurídica Gratuita norte-americano, tirando-o do controle do Executivo. Para tanto, foi criada uma instituição pública (corporação) independente, sem fins lucrativos, para gerir os serviços de assistência jurídica gratuita (legal aid), uma entidade que tem competência legal para elaborar sua própria proposta orçamentária e submetê-la diretamente ao Poder Legislativo. Essa instituição (denominada Legal Services Corporation), por sua vez, não emprega diretamente os advogados que prestam serviços jurídicos para os pobres. Em vez disso, ela repassa subsídios às organizações locais da sociedade civil, que sejam sem fins lucrativos, as quais contratam os advogados (nota do tradutor: normalmente em regime assalariado, com dedicação integral, que prestam os serviços aos carentes), definem suas prioridades e atendem os clientes. Esse não é um arranjo que eu necessariamente recomendaria para outros países, mas tem funcionado bem nos EUA (para resguardar a independência e autonomia do serviço!).

O Brasil tem, sobretudo nos últimos anos, encontrado uma maneira eficaz de alcançar o mesmo objetivo (resguardar a independência e autonomia do serviço) por meio de disposições constitucionais (artigo 134, parágrafos 2º e 3º) e legislativas que começaram a esculpir um nível semelhante de autonomia administrativa e orçamentária para a Defensoria Pública nacional. Seria uma tragédia se essa nação não conseguisse permanecer nesse caminho ou se viesse a retroceder de alguma forma no grau de independência que proporciona aos defensores públicos aos quais cabe prestar assistência jurídica aos inúmeros cidadãos carentes do país. As pessoas pobres têm o direito de contar que os defensores públicos aos quais compete prestar-lhes assistência jurídica: são os “seus” advogados, plenamente leais a si e a seus interesses, e não aos (interesses) do governo ou de quem quer que seja que tenha influência sobre os governantes. Quando são satisfeitas tais expectativas, a Justiça igualitária/isonômica é efetivada, e o contrato social resta intacto. Porém, quando essas expectativas não são correspondidas, a Justiça é desigual, e o contrato social está sob ameaça.

Clique aqui para ler o texto original, em inglês.

*Tradução de Cleber Francisco Alves (doutor em Direito, defensor público e professor da UFF)


[1] Nota do tradutor: O jurista Earl Johson Jr é um dos principais juristas norte-americanos que se dedicam aos estudos de Direito Comparado sobre o tema do acesso à Justiça para os pobres. Ele foi um dos primeiros diretores do “Legal Services Program”, na década de 60, que estruturou nacionalmente os serviços de assistência jurídica gratuita, em casos não criminais, para os pobres, nos Estados Unidos. Na década de 1970, foi um dos principais colaboradores do professor Mauro Cappelletti no “Projeto Florença”, sendo um dos coautores do primeiro livro publicado sob a égide desse projeto: Toward Equal Justice: a comparative study of legal aid in modern societies, no ano de 1975. Em 1981, participou de outra obra coletiva organizada por Mauro Cappelletti (o livro Access to Justice and the Welfare State), no qual escreveu um dos capítulos centrais da obra, que, à moda de ficção científica, apresentou o que ele imaginava como sendo quatro cenários possíveis para o sistema judiciário norte-americano. O artigo, escrito no início da década dos anos 80 do século passado, fazia “prognósticos” para o então longínquo século XXI. Num dos cenários que imaginou em seu trabalho, Johnson descreveu exatamente a possível criação de um “quarto” poder exatamente para cuidar da assistência jurídica aos pobres, com o intuito exatamente de resguardar a autonomia e independência desse serviço público. Eis o que disse, na época, o doutor Johnson, repita-se, num ensaio de “futurologia”, sem nenhum compromisso com a realidade: “Only recently has the national legal service solved the major problem that has plagued it since its birth more than a decade ago — independence from real or imagined political domination. Less than a year ago, the United States Constitution was amended to create a fourth branch of government, the so-called advocacy branch. This branch is headed by a Chief Advocate who stands on a par with the President, the Chief Justice, and the Speaker of the House. Although the advocacy branch has other responsibilities and divisions, including providing citizen representation before legislatures, over 80 percent of its funds and more than two-thirds of its personnel are involved in the national legal service. The constitutional amendment that created the advocacy branch also provides a secure base of government funding not subject to legislative or executive interference” (página 186). De algum modo, o modelo brasileiro latente no Texto Constitucional de 1988, depois aperfeiçoado com as Emendas Constitucionais 45/2004, 74/2013 e 80/2014, transforma em realidade esse modelo esboçado no texto do doutor Johnson. A obra mais recente dele é o livro (em três volumes) To Establish Justice for All — The Past and Future of Civil Legal Aid in the United States, publicado em 2014 (ver: http://www.abc-clio.com/ABC-CLIOCorporate/product.aspx?pc=C6873C).
[2] Nota do tradutor: Para facilitar a contextualização e melhor compreensão do texto, foram inseridas algumas notas, entre parênteses, com intuito de melhor explicar certas expressões cuja tradução literal não seria suficiente para dar o sentido das palavras usadas pelo autor.
[3] Nota do tradutor: Para entender o texto, é preciso ter presente que, nos EUA, a instituição do Ministério Público não goza do mesmo grau de autonomia que tem no Brasil, ou seja, é considerado integrante do Poder Executivo. Ora, se naquele contexto, sob o argumento da paridade de armas, é reconhecida como indispensável a autonomia da defesa frente à acusação, com maior razão isso se justifica no caso do Brasil, em que o próprio Ministério Público possui plena autonomia perante o Poder Executivo. Por isso, não faz sentido que sua contraparte, ou seja, a Defensoria Pública, seja privada de idêntica autonomia.

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