Embargos Culturais

O gaúcho Erico Veríssimo foi um verdadeiro americanista brasileiro

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

22 de novembro de 2015, 9h31

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O escritor gaúcho Erico Verissimo (1905-1975) viveu nos Estados Unidos da América em duas ocasiões: uma estada curta (por dois meses, em 1941) e uma estada mais alongada (por dois anos, de 1943 a 1945). Nesta segunda oportunidade, ao lado de esposa e filhos, Verissimo viveu na Califórnia (primeiramente na Universidade de Berkeley, em Oakland) e depois em Los Angeles. Suas impressões de viagem, e da vida norte-americana, na etapa final da segunda guerra mundial, estão gravadas em delicioso livro, A volta do gato preto[1].

Esse livro tem páginas memoráveis, relativas à vida norte-americana, na impressão de um brasileiro culto. Nesse sentido, o deslumbramento de Verissimo com aspectos centrais da vida norte-americana qualificam-no, de algum modo, como um Alexis de Tocqueville brasileiro[2]. Exemplifico com corajosa passagem sobre a vida religiosa do norte-americano. Para Verissimo, o tema religioso nos Estados Unidos (na época em que lá esteve, bem entendido) não era assunto substancialmente metafísico; o norte-americano, segundo Veríssimo, não se interessava pela questão da alma e pelas qualidades intrínsecas da fé e da devoção, enquanto problemas centrais na existência. Para Verissimo, em audaciosa passagem, a religião era para o norte-americano da época “(…) um tipo de gadget, de engenhoca (…) uma espécie de máquina de ir para o céu”[3].

Ainda que Veríssimo admitisse que fixava uma caricatura, o que não excluía a “parecença”, em suas próprias palavras, porquanto caricaturas e parecenças “têm sempre sua dose de verdade”[4]. Reconhecendo que não era sociólogo ou ensaísta ou mesmo homem de ciência[5], Verissimo experimentava instrumentos de ficção para examinar problemas da realidade[6]; algumas passagens do livro são entabuladas em forma de diálogos epistolares.

Veríssimo entendia que os norte-americanos eram “extrovertidos, objetivos, arejados e práticos, de sorte que querem [queriam] ver o problema da outra vida posto sobre bases deste mundo”[7]. Indagando se havia algum santo norte-americano, o que relatava desconhecer[8], Verissimo impressionava-se com uma cultura não inclinada ao êxtase religioso[9]. O escritor gaúcho nos dava conta do pragmatismo e do realismo, enquanto filosofias nacionais dos Estados Unidos.

O modo como os norte-americanos se relacionavam com o tempo também intrigava nosso célebre escritor. Para Veríssimo “o problema do tempo é muito sério num país que descobriu tantas formas de divertimentos, tantas atividades, e que não encontra tempo suficiente para gozar desses divertimentos e exercer essas atividades”[10]. Essa curiosa questão também atormentou Max Weber, calcado no mote de Franklyn, para quem o tempo seria também expressão do dinheiro.

Assim, para Veríssimo, os norte-americanos inventavam coisas que simplificavam a vida e que espichavam o tempo[11]. Ilustrava essa premissa com a máquina de lavar roupa: “Você compra uma dessas engenhocas, pega o livro que traz as instruções para o seu manejo, coloca a roupa suja no lugar indicado, aperta o botão, tudo de acordo com as recomendações do livrete, e a máquina começa a funcionar: você pode ir tratar doutra coisa, na certeza de que no momento devido a roupa sairá lá do outro lado, alva, limpa, imaculada, numa economia de tempo, esforço e preocupação”[12].

Religião, administração do tempo, cultura cívica, cinema, literatura, gastronomia, estética, relações interpessoais, política, guerra, são vários os tópicos que ocuparam a privilegiada especulação de Erico Verissimo, em livro absolutamente atemporal, porquanto captou no efêmero, no contingente e no fato diverso transitório, o que imanente, permanente e marcante numa civilização. Essa constatação realça a importante posição de Erico Verissimo em nossa história literária.

 


[1] Verissimo, Erico, A Volta do Gato Preto, São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[2] Esse pequeno ensaio foi inspirado após rápida conversa em Brasília com Paulo Roberto de Almeida, diplomata, um dos mais preparados intelectuais brasileiros da atualidade, que me chamou a atenção para outras expressões culturais brasileiras, que se revelariam como americanistas, a exemplo de Hipólito da Costa Pereira e Oliveira Lima. Hipólito deixou-nos “Diário da Minha Viagem para Filadélfia (1798-1799) e Oliveira Lima escreveu “Nos Estados Unidos- Impressões Políticas e Sociais”. Esse último livro conta com prefácio de Paulo Roberto de Almeida, cuja leitura é imprescindível introdução para compreensão das opiniões e idiossincrasias de Oliveira Lima, também diplomata e americanista.

[3] Verissimo, Erico, cit., p. 259.

[4] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[5] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[6] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[7] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[8] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[9] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[10] Verissimo, Erico, cit., p. 260.

[11] Cf. Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

[12] Verissimo, Erico, cit., loc. cit.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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