Opinião

Desmistificando a suposta ineficiência do processo de execução fiscal

Autor

  • Simone Anacleto

    é pós-graduada em Direito da Economia e da Empresa pela FGV e em Direito e Economia pela UFRGS mestre em Direito do Estado pela UFRGS e procuradora da Fazenda Nacional.

22 de novembro de 2015, 9h53

Em artigo anterior, procurei evidenciar o equívoco da noção corrente de que, já que a arrecadação dos créditos inscritos em Dívida Ativa é pequena, é ineficiente a cobrança tal como prevista nas leis hoje existentes – em especial, a Lei 6.830/80 (Lei de Execuções Fiscais, ou simplesmente LEF).

Volto aqui a afirmar que esse é um grave equívoco, tão mais grave quando se pretende modificar o ordenamento jurídico vigente, por projetos de lei como o da Execução Fiscal Administrativa (entre outros, PL 2.412/07 e PL 5.080/09) e o da privatização da Dívida Ativa da União (PL 3.337/15 e PLC 181/15), sem compreender que eles não só não aumentarão a arrecadação da Dívida Ativa, como imaginado, mas ainda poderão piorar o sistema hoje existente, no qual os níveis de arrecadação dita espontânea são elevados e podem até cair.

Em primeiro lugar, deve-se ter presente o exato significado da expressão “Dívida Ativa”, que vem dado, principalmente, pelo art. 39 da Lei 4.320/64, cuja redação vale a pena conferir:

Art. 39. Os créditos da Fazenda Pública, de natureza tributária ou não tributária, serão escriturados como receita do exercício em que forem arrecadados, nas respectivas rubricas orçamentárias.       (Redação dada pelo Decreto Lei 1.735, de 1979)
§ 1º – Os créditos de que trata este artigo, exigíveis pelo transcurso do prazo para pagamento, serão inscritos, na forma da legislação própria, como Dívida Ativa, em registro próprio, após apurada a sua liquidez e certeza, e a respectiva receita será escriturada a esse título. (Incluído pelo Decreto Lei 1.735, de 1979)
§ 2º – Dívida Ativa Tributária é o crédito da Fazenda Pública dessa natureza, proveniente de obrigação legal relativa a tributos e respectivos adicionais e multas, e Dívida Ativa não Tributária são os demais créditos da Fazenda Pública, tais como os provenientes de empréstimos compulsórios, contribuições estabelecidas em lei, multa de qualquer origem ou natureza, exceto as tributárias, foros, laudêmios, alugueis ou taxas de ocupação, custas processuais, preços de serviços prestados por estabelecimentos públicos, indenizações, reposições, restituições, alcances dos responsáveis definitivamente julgados, bem assim os créditos decorrentes de obrigações em moeda estrangeira, de subrogação de hipoteca, fiança, aval ou outra garantia, de contratos em geral ou de outras obrigações legais.  (Incluído pelo Decreto Lei 1.735, de 1979)

Assim, por “Dívida Ativa” deve-se entender a contabilização pela Fazenda Pública (seja da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos municípios, bem como de suas autarquias e fundações) dos créditos que não foram pagos em seu vencimento.

Em apertada síntese, o ato de se inscrever um débito de titularidade de alguma pessoa jurídica de direito público em Dívida Ativa não passa de um registro contábil, que, porém, tem o condão de ensejar a extração de um título executivo extrajudicial que instruirá a inicial da execução fiscal.

Afinal, um débito que não foi pago espontaneamente até seu vencimento só poderá ser exigido pela via da execução fiscal. Uma vez apurada sua certeza e liquidez, deve ser inscrito (isto é, registrado contabilmente como Dívida Ativa).

Analise-se, então, o perfil das pessoas que acabam por ter débitos inscritos na Dívida Ativa.     Considerando que o fato de ser inscrito em Dívida Ativa gera uma série de ônus à pessoa física ou jurídica[1], a questão é: quem, em geral, acaba tendo débitos inscritos em Dívida Ativa?

Embora não haja dados estatísticos precisos, quem labuta na área sabe que, em sua grande maioria, os devedores que compõem o rol de inscritos em Dívida Ativa são as pessoas que não conseguem mais pagar suas dívidas, havendo uma expressiva quantidade de microempresas e empresas de pequeno porte nessa situação. Sequer conseguem pedir autofalência; apenas fecham as portas sem dar continuidade às suas atividades econômicas e, via de regra, sem ter sobrado praticamente patrimônio algum para fazer frente às dívidas acumuladas, não só tributárias, mas de todas as ordens.

Estudos, aliás, apontam que cerca de 30% dos pequenos empreendimentos têm vida extremamente curta – não mais que anos anos de funcionamento. Considerando-se um período de tempo um pouco mais longo, verifica-se que mais da metade das micro e pequenas empresas sobrevivem até o máximo de cinco anos após sua constituição[2]. Trata-se de curta existência após a qual tais empresas fecham as portas, sem terem condições de fazer uma dissolução regular de suas atividades, com o pagamento de todos os credores, ou, mesmo, de alguns deles[3].

O que se quer aqui evidenciar é que boa parte da Dívida Ativa não será mesmo paga, porque simplesmente inexistem recursos, por parte dos devedores, para honrarem seus compromissos – tributários ou não.

Essa dívida não está deixando de ser paga porque o processo de execução fiscal é moroso, ou caro ou de baixa eficiência. Ela não vai ser paga, porque não tem como ser paga. Um processo diferente não mudaria essa realidade.

Bem verdade, por outro lado, que existem os casos de simples ocultação de patrimônio ou os nominados “planejamentos tributários” (que, na verdade, são atos fraudulentos e/ou criminosos), nos quais, por exemplo, são criadas diversas empresas de fachada, sempre com o objetivo de evadir-se do pagamento dos tributos devidos. Para esses casos, efetivamente, pode-se cogitar de aperfeiçoamentos legislativos, que pretendo apontar oportunamente.

Por ora, o que quero ressaltar é que a inscrição em Dívida Ativa, o ajuizamento de execução fiscal e os consequentes ônus que cercam esses procedimentos, tais como a negativa de fornecimento de CND, a inscrição em cadastros de devedores e outros, são todas medidas que se revelam extremamente eficientes para acarretar a chamada “arrecadação espontânea” – a qual, na verdade, não é tão espontânea assim.

A arrecadação tributária federal dita “espontânea” em 2014, por exemplo, foi de mais de R$ 1,188 trilhão. Acaso alguém imagina que tal arrecadação decorre do desprendimento ou do espírito de civismo dos contribuintes? Não parece mais exato presumir que quem recolhe “espontaneamente” os tributos previstos em lei o faz porque justamente não quer ser inscrito em Dívida Ativa e posteriormente ser executado?

Assim, não se pode medir a eficiência do processo de execução fiscal apenas pela baixa arrecadação que dele decorre. A baixa arrecadação pode ser (e é em grande parte dos casos) simplesmente uma decorrência da inexistência de recursos para pagar os débitos. Há que se verificar, isto sim, se o sistema induz, como um todo, a uma arrecadação “espontânea” em nível razoável.

Levando em conta que o PIB de todo o país no ano de 2014 foi da ordem de mais de R$ 5,5 trilhões e a arrecadação tributária só em nível federal foi, como já dito, de mais de R$ 1,188 trilhão, honestamente dá para perceber que o sistema brasileiro está funcionando.

Ainda, vale registrar que o fato de que o montante total inscrito em dívida seja superior ao total arrecadado espontaneamente durante todo um exercício fiscal também não pode causar qualquer surpresa. É que, na Dívida Ativa, estão inscritos todos os débitos já vencidos, sejam do exercício anterior, ou de muitos outros.

Há vários casos de débitos com 10 ou mais anos de existência. Basta lembrar, na órbita federal, os contribuintes que aderiram a qualquer um dos parcelamentos especiais a partir do Refis e que, durante anos, pagaram parcelas mensais ínfimas[4]. Durante todo o tempo que o parcelamento durar, não corre o prazo prescricional (art. 151, VI, do CTN). Como as parcelas são muito pequenas, se o contribuinte, por qualquer razão, parar de pagá-las em algum momento, o débito volta à sua condição de exigibilidade. O fato é que, enquanto não pago integralmente, continua a compor aquela exorbitante cifra, repita-se, de mais de um trilhão de reais.

Não espanta, pois, que o valor da Dívida Ativa – que se refere a muitos e muitos anos – supere o da arrecadação “espontânea” verificada em um único ano. Parece evidente que o somatório do que deixou de ser pago ao longo de muitos anos seja maior do que aquilo que é recolhido “espontaneamente” em apenas um ano.

Em síntese, equivocadas todas as afirmações que concluem, tomando como base simplesmente a pequena arrecadação final decorrente das execuções fiscais frente ao total inscrito em Dívida Ativa, que há uma ineficiência do processo de execução fiscal. Pelo contrário, a partir de uma compreensão mais ampla do significado da expressão “Dívida Ativa”, bem como da própria execução fiscal, dentro do sistema jurídico brasileiro com um todo, constata-se que há uma indução à arrecadação dita “espontânea” bastante eficiente.

Claro que se pode cogitar de aumentar ainda mais essa eficiência, inclusive com uma majoração da arrecadação final. Mas a ineficiência não é tão grande quanto os números tomados numa análise superficial parecem indicar.

 


[1] Quem é inscrito em Dívida Ativa não faz jus à Certidão Negativa de Débitos (art. 205 do CTN) e pode sofrer a declaração de ineficácia da alienação de qualquer de seus bens a partir daí por ser presumida a fraude à execução (art. 185 do CTN); na esfera federal, também é inscrito no CADIN – Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal (art. 1º da Lei n. 10.522/02) e, em consequência, não pode contratar com o Poder Público nos casos elencados no art. 6º da Lei n. 10.522/02), além de sofrer restrições para licitações e contratos com a União e demais pessoas jurídicas de Direito Público (art. 29 da Lei n. 8.666/93); etc.

[3] “… grande parte das pessoas jurídicas, quando a citação se efetiva, já não existe de fato. Esse fenômeno se dá, basicamente, por dois motivos: 1) pela baixíssima ‘expectativa de vida’ das empresas, principalmente as micro e pequenas empresas, aliada à demora na propositura da execução e da realização da citação; e 2) por fraudes de diversos gêneros.” (in CAMPOS, Gustavo Caldas Guimarães de. Execução fiscal e efetividade; análise do modelo brasileiro à luz do sistema português. São Paulo, Quartier Latin, 2009, p. 50).

[4] A propósito, estudos econômicos comprovam que é muito equivocada a política de se concederem parcelamentos especiais, com o intuito de se obter aumentos esporádicos da arrecadação. Tal política afeta gravemente a arrecadação espontânea. Nesse sentido, confira-se exemplificativamente: “Os efeitos sobre a espontaneidade são sempre negativos, e perduram por longo tempo, enquanto os contribuintes nutrirem expectativas sobre novos parcelamentos futuros. No lado das receitas, as simulações sugerem que a arrecadação na presença do parcelamento tributário é sempre inferior àquela que seria obtida se não houvesse parcelamento durante toda a etapa de concessão. Os ganhos de arrecadação posteriores, quando as parcelas são pagas, dependem da inadimplência e da expectativa de novos parcelamentos pelos contribuintes. Conclui-se que o mecanismo de parcelamentos tributários é inadequado como forma de aumentar as receitas e prover os incentivos corretos aos contribuintes.” PAES, Nelson Leitão. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-41612014000200004&script=sci_arttext

 

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