Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo colombiano (parte 33)

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18 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
1. Introdução
Na manhã de 6 de novembro de 1985, às 11h30, 28 guerrilheiros do grupo M-19 invadiram a sede da Corte Suprema de Justiça da Colômbia. Com pouca resistência, eles dominaram a situação rapidamente e apresentaram à população suas reivindicações. O presidente da República Belisário Betancur determinou o cerco do Palácio da Justiça por forças do Exército, da Marinha e da Polícia Nacional. O presidente da Corte, Alfonso Reyes Echandía, um dos vários magistrados presos na invasão, transmitiu um apelo às autoridades para negociassem com os guerrilheiros.

Não há consenso histórico, mas fortes versões sustentam que as ordens presidenciais foram solenemente ignoradas pelo comando militar da operação, e tanques Cascavel e Urutu iniciaram o ataque ao prédio, derrubando portas e paredes e obrigando os guerrilheiros a seguir para os andares superiores. Os comandos desembarcaram no teto do palácio em simultâneo e entraram em combate contra os guerrilheiros.

Iniciou-se um incêndio nos arquivos do tribunal. Vários processos foram incinerados. O presidente Betancur ordenou que fosse estabelecida uma negociação. Uma vez mais, os militares ignoraram as ordens e fuzilaram os guerrilheiros que resistiam. Doze magistrados do Corte Suprema de Justiça foram mortos no combate, incluindo seu presidente, o juiz Echandía. Posteriormente, em cadeia nacional de rádio e televisão, Betancur declarou que dera ordens para a invasão, de modo a não permitir que futuros ataques terroristas intimidassem o Estado colombiano.

Esse foi o primeiro ataque terrorista massivo às instituições do Estado colombiano. Posteriormente, bombas destruíram o Departamento de Segurança Nacional, um avião de carreira da Avianca explodiu em pleno voo, e diversas autoridades (juízes, policiais, políticos, ministros) e jornalistas foram assassinados em um dos períodos mais sangrentos da história da América do Sul. Por trás de todos esses episódios, estava Pablo Escobar e o cartel de Medelín. Os processos queimados na Corte Suprema de Justiça eram relativos a Escobar e seus comparsas. O incêndio evitou que eles fossem extraditados para os Estados Unidos por vários anos.

Esse episódio é simbólico da tentativa de destruição do Estado de Direito na Colômbia nos anos 1980-1990. A partir dele, fortaleceu-se a consciência sobre a importância das instituições jurídicas na Colômbia e ampliou-se a relevância do Direito na vida pública desse país sul-americano. Nesta coluna, estudar-se-ão as três principais profissões jurídicas colombianas: a magistratura, o Ministério Público e a advocacia.

2. A magistratura colombiana
Segundo dados de 2010 e 2011, o Poder Judiciário colombiano possuía um total de 23.952 servidores, dos quais 4.569 integravam a carreira de magistrado e 19.328 compunham as carreiras de apoio[1].

São interessantes os dados do concurso nacional para a magistratura colombiana de 2012: a) sexo dos nomeados para a magistratura: 38,56% do sexo feminino, e 61,44% do sexo masculino; b) idade dos nomeados para a magistratura: o mais jovem aprovado tinha 28 anos, e o mais idoso, 62 anos. As faixas etárias preponderantes foram dos nascidos antes de 1970, com idades entre 42 e 46 anos (41,16%) e dos nascidos entre 1970 e 1980 (50,73%)[2].

O ingresso na carreira dá-se por concurso público, o que foi estendido à magistratura de primeiro grau após a Constituição de 1991. A seleção dá-se por meio de uma prova de conhecimentos jurídicos e a posterior submissão a um curso de formação, de caráter eliminatório. A Corte Suprema de Justiça tem seus membros indicados a partir de uma lista de indicações da Presidência da República, da própria Corte e do Conselho de Estado. Neste caso, os membros da Corte Suprema têm mandato de oito anos[3].

A remuneração dos juízes colombianos historicamente sempre foi muito baixa, assim como em toda a América do Sul. Após haver alcançado a autonomia orçamentária, o Poder Judiciário conseguiu paulatinamente aumentar os valores pagos a seus magistrados. Conforme dados de 2013, um juiz em início de carreira recebia um vencimento básico de 4,4 milhões de pesos colombianos (equivalentes a US$ 1.403,39 ou a R$ 5.459,09), excluídas gratificações. Em 2018, esse valor chegará 8 milhões de pesos colombianos (equivalentes a US$ 2.600,89 ou a R$ 9.925,62)[4].

Considera-se a magistratura colombiana hierarquizada e verticalizada. Uma das hipóteses para isso está na substituição dos antigos mecanismos de nomeação de magistrados, que era totalmente vinculado à alternância de poder entre Conservadores e Liberais, pelo recrutamento feito intra muros pela cúpula do Poder Judiciário, o que ocorreu como uma reação ao modelo clientelista e de divisão equânime da máquina burocrática pelos partidos políticos tradicionais[5]. Chega-se a dizer que esse processo criou uma “elite judicial de conotações aristocráticas”[6].

Em 1991, criou-se a Corte Constitucional colombiana, que assumiu parte dos poderes da antiga Corte Suprema de Justiça. O novo tribunal passou a ter um papel de maior protagonismo, que muitas vezes tem sido criticado por seus excessos, ao exemplo do polêmico e muito controvertido “estado de coisas inconstitucional”, bem como pelo reconhecimento de que a Corte Constitucional interfere nos demais poderes e, em diversas situações, usa a própria constituição colombiana para, em seu nome, ignorá-la ou suprimir as instâncias de deliberação democrática. São exemplos desses excessos as interferências na execução orçamentária, nas decisões de discricionariedade política do Congresso ou em opções legítimas do Poder Executivo, os quais têm sido objeto de atuação superposta da Corte Constitucional[7].

A assimetria entre a magistratura tradicional, representada pela Corte Suprema de Justiça e os órgãos inferiores, e a “nova” magistratura, inspirada na Corte Constitucional, tem produzido efeitos ainda a serem devidamente examinados e compreendidos. É bem provável que o gosto pelo protagonismo e pela interferência nos demais poderes, com o tempo, contamine a magistratura de base, o que poderá criar um sério conflito institucional. Nesse aspecto, é de se notar o papel deletério de parte da academia colombiana, expresso por meio de produção bibliográfica, em dar suporte a essas aspirações de captura do processo decisório democrático. Uma das bases teóricas dessa nova atitude da magistratura é o neoconstitucionalismo ou, como se diz na Colômbia, o “novo Direito”.

3. O Ministério Público
Na Colômbia, o Ministério Público é uma instituição com características muito peculiares, se comparado a seu congênere brasileiro. Embora criado em 1830, o Ministério Público sofreu diversas transformações ao longo dos últimos 200 anos. Integram-no a Procuradoria-Geral da Nação, a Defensoria do Povo e as Personerias Municipales.

A chefia do Ministério Público cabe ao procurador-geral da Nação, escolhido pelo Senado a partir de uma lista tríplice formada por indicações do Poder Executivo, do Poder Judiciário e do Conselho de Estado. Seu mandato é de quatro anos, admitida a recondução irrestrita.

A Procuradoria-Geral da Nação, órgão autônomo e componente do Ministério Público, exerce funções de controle externo da administração pública e de defesa dos cidadãos contra abusos cometidos por governantes, servidores públicos, particulares no exercício de atividades públicas. Nele se concentram poderes que, no Brasil, caberiam ao Ministério Público (intervenção obrigatória em processos penais, ambientais, agrários, de família e laborais) e à Controladoria-Geral da União (funções disciplinares em face de servidores públicos).

Ressalve-se que a Controladoria-Geral da República colombiana tem funções parcialmente equivalentes a nosso Tribunal de Contas da União. Apesar do nome, não é integrante do Poder Executivo, e sim um órgão auxiliar do Congresso da República da Colômbia.

A Defensoria do Povo, igualmente inserida no conceito de Ministério Público, exerce funções da Ouvidoria de Justiça portuguesa e parcialmente do Ministério Público brasileiro. Cabe-lhe a defesa dos direitos humanos perante os órgãos administrativos e também de receber as representações dos cidadãos por ofensa a seus direitos. Não tem equivalência com a Defensoria Pública brasileira.

As Personerías são órgãos que atuam perante municípios e distritos, com funções de controle externo, além de defender os direitos humanos, velar pelo interesse público e fiscalizar a conduta de servidores desses entes.

Por sua vez, a Fiscalía General de la Nación exerce as funções que seriam, no Brasil, do Ministério Público quando este atua como titular da pretensão punitiva do Estado. Suas principais atribuições são: a) exercer a titularidade da ação penal; b) dirigir e coordenar as funções da polícia judiciária e; c) velar pela proteção das vítimas, testemunhas e intervenientes no processo[8].

A chefia do órgão cabe ao fiscal general da Nación. O atual titular da Fiscalía é um ex-juiz da Corte Constitucional, o que demonstra a relevância que o órgão assumiu desde sua criação em 1991. Note-se que a Fiscalía é um ente autônomo, embora com vinculação ao Poder Judiciário.

O ingresso na carreira dá-se por meio de concurso público nacional.

4. A advocacia
Um país com mais de 70 faculdades de Direito, o segundo curso mais procurado pelos estudantes que ingressam na universidade. Conforme dados de 2011, em termos proporcionais, uma pesquisa do Centro de Estudos da Justiça das Américas revelou que esse país tem 1 advogado para 354,4 habitantes. É o segundo maior número das Américas Central e do Sul, além do Caribe. Comparado com a Europa, equivale à Itália, o campeão continental, que possui 1 advogado para 354,4 habitantes[9].

Esse país não é o Brasil, e sim a Colômbia. Críticas e percepções tão corriqueiras no Brasil sobre o excesso de advogados, a baixa qualidade dos profissionais e as deficiências de formação também podem ser encontradas amiúde na Colômbia.

Além dessa semelhança, outro ponto une os dois países: a advocacia é tanto um meio de legitimação para o exercício de importantes funções do Estado, embora isso esteja paulatinamente sendo alterado, quanto um instrumento de aquisição de cidadania por milhares de pessoas oriundas das classes inferiores e que encontram no título de abogado uma forma de acesso ao status de cidadão.

O marco jurídico da advocacia na Colômbia é o Decreto 196, de 1º de março de 1971, que baixou o Estatuto do Exercício da Advocacia. Diferentemente do que ocorre no Brasil, advogado é o título de quem possui o título de bacharel em Direito e for inscrito nessa profissão. Daí ser muito comum o uso da palavra abogado para se referir ao equivalente brasileiro a um graduado em Direito. A inscrição como advogado é algo relativamente simples e dá-se perante o Poder Judiciário, abrindo-se um prazo para oposição de terceiros, que poderão levantar razões para o não deferimento do pedido.    

O ius postulandi é privativo dos advogados, salvo em relação a causas de valor ínfimo, ao direito de petição, a processos trabalhistas e outros casos menos relevantes.

Exige-se que, nos dois últimos anos do curso de Direito, as faculdades organizem núcleos de prática jurídica, de modo a que os alunos tenham atividades que lhes permitam ter experiência em matéria administrativa e judicial.

Não existe uma estrutura autárquica como a Ordem dos Advogados do Brasil. Seu equivalente mais aproximado é o Colégio Nacional de Advogados.

***

Encerra-se hoje o estudo da Colômbia, que apresenta tantos pontos em comum quanto assimétricos à realidade brasileira.

E, com isso, deixa-se a América do Sul, cujos dois representantes escolhidos — Chile e Colômbia —, cada um a seu modo, representam as duas mais bem-sucedidas experiência de formação jurídica em língua espanhola nos dias de hoje.

Na próxima coluna, a África será objeto de nosso estudo, por meio de uma nação-irmã e lusófona, Angola.


[1] DUMEZ ARIAS, Juan Manuel. El juez de la jurisdicción ordinária. Maestría em Derecho. Universidad Nacional de Colombia: Facultad de Derecho, Ciencias Políticas y Sociales, Bogotá, 2013. P. 57.
[2] DUMEZ ARIAS, Juan Manuel. Op. cit. p. 62-64.
[3]ENGELMANN, Fabiano; BANDEIRA, Júlia Veiga Vieira; PERES PERDOMO, Rogélio. Elites judiciais e independência do Poder Judiciário na América Latina: Uma proposta de análise. VIII Congresso Latino Americano de Ciência Política. Associación Latinoamericana de Ciencia Politica –ALACIP. Lima: julho, 2015.p.18. Disponível em: https://www.academia.edu/13510587/Elites_judiciais_e_independ%C3%AAncia_do_poder_Judici%C3%A1rio_na_Am%C3%A9rica_Latina_uma_proposta_de_an%C3%A1lise. Acesso em 17-11-2015.
[4] Dados extraídos de: http://www.eltiempo.com/archivo/documento/CMS-12517830. Acesso em 17-11-2015.
[5] ENGELMANN, Fabiano; BANDEIRA, Júlia Veiga Vieira; PERES PERDOMO, Rogélio. Op. cit. p.18-19.
[6] GUEVARA, Carolina. Independencia judicial. El caso de la Corte Suprema de Justicia Colombiana. Revista de Derecho: Universidad del Norte. Barranquilla, Colombia, n. 35, p.145-179, ene.-jun. 2011. p.160.
[7] GUEVARA, Carolina. Op. cit. p. 161-163.
[8] Disponível em: http://www.fiscalia.gov.co/colombia/la-entidad/funciones/. Acesso em 17-11-2015.
[9] Disponível em: http://www.cej.org.co/index.php/todos-los-justicometro/2586-tasa-de-abogados-por-habitantes-encolombia-y-el-mundo. Acesso em 17-11-2015.

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