Opinião

A dinamicidade do cumprimento das condicionantes no licenciamento ambiental

Autor

  • Eduardo Fortunato Bim

    é procurador federal junto ao Ibama doutorando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito e especialista em Direito Ambiental pela Unimep. Autor do livro "Licenciamento ambiental" (4. ed. Belo Horizonte: Fórum 2018).

18 de novembro de 2015, 5h43

Na iminência de a Usina Hidrelétrica de Belo Monte entrar em operação, muito se tem discutido sobre as licenças ambientais e o cumprimento de suas condicionantes.

Frequentemente, o cumprimento das condicionantes é tomado como óbice à expedição da licença ambiental de instalação (LI) ou da de operação (LO). Em diversos empreendimentos de grande impacto ambiental, licenciados em licença trifásica (LP, LI e LO), há contestação da LI e/ou da LO devido ao entendimento de que todas as condicionantes previstas na licença prévia (LP) devem ser cumpridas antes da expedição da LI ou mesmo da LO.

Tal entendimento é equivocado porque deturpa o conteúdo da legislação e das decisões do Tribunal de Contas da União sobre a matéria, além de retirar das condicionantes a sua função, que é a de mitigar o impacto ambiental.

No licenciamento ambiental, as condicionantes são cláusulas da licença ambiental pela qual o órgão licenciador “estabelece as condições, restrições e medidas de controle ambiental que deverão ser obedecidas pelo empreendedor, pessoa física ou jurídica” (Resolução Conama 237/97, artigo 1º, II)[1].

Como as condicionantes têm a função de mitigar ou compensar os impactos ambientais do projeto, incorporando-se à dinâmica que caracteriza o processo administrativo de licenciamento ambiental, elas são cumpridas de acordo com os impactos adversos que elas visam mitigar. Assim, não existe relação entre o cumprimento das condicionantes e a expedição da próxima licença ambiental. O gerenciamento das condicionantes se relaciona com a existência do impacto ambiental, não com a fase tripartite do licenciamento ambiental. 

A ocorrência do impacto ambiental adverso vinculado a certa condicionante dificilmente coincide com o da expedição de alguma licença. As condicionantes não são degraus de passagem para outra fase, mas formas de mitigar o impacto do empreendimento conforme os impactos forem surgindo.

Aqui, o termo condicionantes não tem o sentido de condicionar a próxima fase da licença, mas o de condicionar a viabilidade ambiental do processo de licenciamento como um todo, sendo necessário aferir o impacto (e não a fase LP, LI ou LO) para averiguar a necessidade de seu cumprimento. Ressalte-se que algumas condicionantes somente são cumpridas após a expedição da LO. 

Dentro das fases do processo de licenciamento ambiental (LP, LI e LO), há divisões que variam de acordo com o projeto em curso e da forma no qual ele é desenvolvido, devendo o órgão licenciador considerar o impacto para firmar, com possibilidade de alteração, o cronograma das condicionantes.

As mais diversas razões podem motivar a alteração das condicionantes durante o processo de licenciamento. A dinamicidade do processo de licenciamento ambiental possibilita que essas questões, descobertas posteriormente, sejam trazidas para o processo decisório e, se for o caso, tenham impacto nas condicionantes, seja no cronograma de sua execução, seja em seu conteúdo. No licenciamento ambiental da UHE Belo Monte, houve a modificação das condicionantes ao ser considerada a dupla moradia dos ribeirinhos, algo não identificado inicialmente e que foi posteriormente incorporado pelo Ibama ao licenciamento, visto que o processo é dinâmico.

A legislação sufraga tal dinamicidade do gerenciamento dos impactos.

O artigo 19, I do Decreto 99.274/90, que regulamenta a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), é categórico ao preceituar que a licença prévia deve contar os requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização (a própria LP), instalação e operação[2], conceito que abrange as condicionantes. Por essa previsão já se pode constatar que as condicionantes podem ser cumpridas em qualquer fase do processo de licenciamento, desde que compatíveis com o gerenciamento de impactos a ser estipulado pelo órgão licenciador.

O Decreto 99.274/90 é confirmado pelo artigo 8o, I, da Resolução Conama 237/97, ao determinar que as condicionantes sejam atendidas nas próximas fases de implementação do empreendimento (“estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação”), o que é corroborado nos incisos II e III desse artigo. O inciso II cita as “demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante”, ou seja, a LI autoriza a implantação das condicionantes que é relacionada a essa fase, assim como o inciso III também cita as condicionantes na fase de operação[3].

Nada mais natural. O gerenciamento de impacto acompanha a sua concretização, variando conforme a fase prevista. Quando o inciso I do artigo 8°, I, da Resolução Conama 237/97 prevê “próximas fases”, ele deixa mais do que claro a existência de condicionantes que vão além da licença prévia, podendo ser executadas após esse momento, inclusive pós LO.

Essa exegese do artigo 8° da Resolução Conama 237/97 foi expressamente reconhecida como correta pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região ao asseverar que o dispositivo evidencia a veracidade do argumento do órgão licenciador, “de que não há necessidade de cumprimento de todas as condicionantes listadas na licença prévia para a emissão da licença de instalação inicial do empreendimento”[4].

Mesmo o cumprimento parcial (quase total) das condicionantes não é motivo para se suspender uma licença ambiental, se o órgão ambiental licenciador aduz que o gerenciamento dos impactos não foi prejudicado. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal encampou tal tese ao preceituar, no voto do ministro Menezes Direito, que o Ibama:

“apresentou parecer técnico deixando claro que praticamente todas as condicionantes específicas mencionadas na licença prévia foram cumpridas. Poucas não foram totalmente atendidas […], o que viabilizaria a concessão, agora, da licença de instalação. […] Observo que, realmente, das 31 condicionantes mencionadas no parecer, apenas seis foram parcialmente cumpridas, tendo as demais sido cumpridas na integralidade, o que seria suficiente para passar à fase seguinte do projeto”[5].

As condicionantes podem ser até mesmo deslocadas da fase inicialmente imaginada, quando isso estiver estabelecido na licença, desde que não seja inviabilizado o gerenciamento dos impactos.  Como destacou a ministra Cármen Lúcia, o procedimento de licenciamento, por ser dinâmico, é controlável[6].

Os acórdãos 1147/2005-P e 1869/2006-P do Tribunal de Contas da União
Recorrentemente, o acórdão 1869/2006-P do TCU[7] é citado como se exigisse o cumprimento de condicionantes antes da emissão da LI (item 2.2.2).  Essa decisão do TCU tratou do projeto de transposição do Rio São Francisco, sendo decorrência de outra, o acórdão 1147/2005-P[8].

O que foi decidido pelo TCU, ao analisar diversos aspectos da transposição do Rio São Francisco, é que não se pode transformar parte do diagnóstico, isto é, de como se encontra a área de influência antes da instalação do empreendimento ou atividade, em condicionantes da LP para a próxima fase. Isso porque, se a legislação ambiental exige o diagnóstico (Resolução Conama 1/86, art. 6º, I) para o EIA, fica difícil sustentar que há viabilidade ambiental do projeto sem que o diagnóstico seja completo. No caso, havia pendências em termos de diagnóstico.

Então, o que o TCU entendeu inadequado foi postergar a confecção do diagnóstico, essência do EIA, como condicionantes da LI, porque não haveria como se efetuar um estudo ambiental que atestasse a viabilidade ambiental cristalizada na LP[9]. Nada foi decidido, por exemplo, sobre a necessidade de as condicionantes serem cumpridas nessa ou naquela fase, antes ou depois da LI. E nem poderia, uma vez que estava sob julgamento questão que precedia a estipulação de qualquer condicionante, o cumprimento das exigências do EIA à luz da legislação ambiental.

Conclusão
Em suma, a definição do momento de atendimento das condicionantes não se fundamenta em atos procedimentais estanques, mas em uma análise concreta de compatibilidade entre o cronograma de implementação existente e a compatibilidade de gestão e monitoramento ambientais do projeto. Por essa razão, não existe a necessidade de cumprimento de todas as condicionantes constantes na LP para emitir a LI, ou das condicionantes previstas nessas para a emissão da LO.

Não se pode confiar no órgão licenciador somente quando ele estabelece condicionantes, mas também quando ele as modifica ou as revoga. Se é admitida a validade das condicionantes quando da sua previsão, qual é a razão de não ser quando de sua revisão ou revogação?

O TCU foi categórico ao decidir que, de acordo com a Resolução Conama 237/97 (artigo 8°), é “o órgão ambiental, no exercício de sua competência de controle”, quem “estabelece as condicionantes a serem atendidas pelo empreendedor em cada etapa do processo de licenciamento e também verifica o seu efetivo cumprimento”[10].


[1] Para aprofundamento sobre condicionantes do licenciamento ambiental, cf. BIM, Eduardo Fortunato. Licenciamento Ambiental. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015, cap. VII.
[2] Artigo 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I – Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo; (sem destaques no original).
[3] Art. 8º. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I – Licença Prévia (LP) – concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e concepção, atestando a viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação; II – Licença de Instalação (LI) – autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante; III – Licença de Operação (LO) – autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação. (sem destaques no original).
[4] TRF da 1ª Região, SLAT 0012208-65.2011.4.01.0000/PA, rel. Des. Fed. Presidente, j. em 03/03/2011.  Ainda constou da decisão: “A medida liminar, portanto, tem aptidão para causar grave lesão à ordem pública, pois invade a esfera da discricionariedade da administração e usurpa a competência privativa da administração pública de conceder licença de instalações iniciais específicas para ‘implantação de trecho novo do ‘Travessão 27’ e melhorias e obras de arte corrente no trecho já existente; realização de terraplanagem e instalação de estruturas de canteiro, no sítio Pimental e no sítio Belo Monte’ (fl. 374), emitida após a evolução das análises e avanços no atendimento das condicionantes (Pareceres Técnicos 88/2010 e Notas Técnicas 51/2010 e 08/2011). 
O material técnico juntado aos autos demonstra que o requerente tem monitorado e cobrado o cumprimento das diretrizes e exigências estabelecidas para proceder ao atendimento de requerimentos de licenças para a execução de novas etapas do empreendimento” (sem destaques no original). 
Essa decisão mantida pelo TRF da 1ª Região, Corte Especial, v.u., SLAT 0012208-65.2011.4.01.0000/PA, rel. Des. Fed. Presidente, j. em 20/09/2012, E-DJF1 04/10/2012.
[5] STF, Pleno, m.v., ACO 876 MC-AgR/BA, rel. Min. Menezes Direito, j. em 19/12/2007, DJe 31/07/2008, RTJ 205/02/548.
[6] STF, Pleno, m.v., ACO 876 MC-AgR/BA, rel. Min. Menezes Direito, j. em 19/12/2007, DJe 31/07/2008, RTJ 205/02/562.
[7] TCU, Plenário, v.u., Ac. 1869/2006 (TC 011.659/2005-0), rel. Min. Benjamin Zymler, j. em 11/10/2006.  O item 2.2.2 estipulou: “não admita a postergação de estudos de diagnóstico próprios da fase prévia para fases posteriores sob a forma de condicionantes do licenciamento, conforme prescreve o art. 6º da Resolução Conama nº 01/86”.
[8] TCU, Plenário, v.u., Ac. 1147/2005 (TC 011.659/2005-0), rel. Min. Benjamin Zymler, j. em 10/08/2005.
[9] “[…] 46. Ressalte-se que foram legados à etapa posterior, como condicionantes da Licença de Instalação, estudos de diagnósticos relativos aos meios sócio-econômicos, biológicos e limnológicos (relativos à água doce e seus organismos, sob o ponto de vista ecológico), na área de influência do Projeto, conforme ressaltado nos itens 101 e 102 da instrução transcrita no Relatório. Tais estudos, por óbvio, deveriam se fazer presentes anteriormente à concessão da Licença Prévia, porquanto necessários à avaliação prévia dos impactos ambientais do Projeto.  47. Conclui-se, portanto, que a Licença Prévia expedida pelo IBAMA teve por base um Estudo de Impacto Ambiental no qual se apresentaram lacunas que, em essência, comprometem o atestamento da viabilidade ambiental do Projeto” (TCU, Plenário, v.u., Ac. 1147/2005 (TC 011.659/2005-0), rel. Min. Benjamin Zymler, j. em 10/08/2005).
[10] TCU, Plenário, AC. 2.212/09 (TC 009.362/2009-4), rel. Min. Aroldo Cedraz, j. em 23/09/2009.

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