Decisão do STF sobre violação do domicílio indica posição prudencial
13 de novembro de 2015, 9h38
Em síntese, o STF, em sede de repercussão geral, definiu que o ingresso forçado em domicílios sem mandado judicial apenas se revela legítimo, em qualquer período do dia (inclusive durante a noite) quando tiver suporte em razões devidamente justificadas pelas circunstâncias do caso concreto e que indiquem que no interior da residência esteja a ocorrer situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade peal, cível e disciplinar do agente ou da autoridade, ademais da nulidade dos atos praticados, decisão proferida por maioria, vencido apenas o Ministro Marco Aurélio.
No caso concreto apreciado, de acordo com a descrição dos fatos no noticiário da ConJur, “trata-se de pessoa condenada por tráfico em virtude da apreensão de quase 25 kg de drogas caso envolve um homem condenado a sete anos de prisão depois que a Polícia Federal apreendeu mais de 8,5 kg de cocaína dentro de um carro estacionado na garagem de sua casa. Em 2007, depois de uma denúncia anônima, a PF passou a investigar uma transportadora de Rondônia e decidiu abordar um dos caminhões no momento em que seguia pela BR-364. Foram encontrados na carroceria 11 pacotes com quase 25 kg de droga. O motorista disse que só havia sido contratado para levar o produto até Goiânia, apontando o dono da empresa como responsável pelo fornecimento. Os policiais, sem mandado de busca e apreensão, foram então à casa do proprietário da transportadora, depois das 19h, onde encontraram mais cocaína e sacos de linhagem semelhantes aos flagrados no caminhão. Para o Ministério Público, autor da denúncia, ficou claro que os pacotes estavam guardados com o propósito de venda.”
Representando, em síntese, a posição da maioria, o ministro Celso de Mello sustentou, nos termos do artigo 33 da Lei de Drogas, a configuração de delito permanente na hipótese de manutenção de drogas em depósito, preenchidos os pressupostos do artigo 303 do Código de Processo Penal, de acordo com o qual se considera em situação de flagrância aquele que estiver cometendo crime de caráter permanente. Por sua vez, em seu voto divergente, o Ministro Marco Aurélio entendeu não existirem, salvo a palavra do motorista, provas suficientes no sentido de que na casa do condenado existissem drogas e que no caso seria indispensável prévia obtenção de mandado judicial.
Apresentada síntese dos fatos e das principais razões da maioria e do voto vencido, cumpre frisar que em causa está a interpretação do sentido da norma veiculada pelo artigo 5º, XI, CF, “a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”, para efeitos de sua aplicação concreta em hipóteses do ingresso forçado em domicílios sem prévia autorização judicial. Dito de outro modo e mais precisamente, na hipótese analisada no caso pelo STF, cuida-se de avaliar a extensão do conceito de flagrante delito como hipótese autorizativa da entrada em domicílios sem mandado judicial de busca e apreensão.
Além disso, trata-se de avaliar se e em que medida o ingresso na esfera domiciliar para apreensão de drogas em determinadas circunstâncias representa uma intervenção restritiva legítima do ponto de vista constitucional ou uma violação do direito fundamental em causa. Sobre o tema tive ocasião de, em coautoria com Jayme Weingartner Neto, desembargador junto ao TJ-RS e mestre e doutor em Direito, escrever artigo publicado na Revista Democracia e Direitos Fundamentais da Unibrasil, do qual nos permitimos extrair algumas passagens, ainda que vez por outra mediante algum ajuste[1].
Na esteira da decisão majoritária do STF ora comentada, a ilicitude do ingresso forçado na esfera domiciliar tem sido afastada pelo fato de que o tráfico de drogas (ou a posse de arma) configuram crime permanente, pelo que o ingresso dos policiais no interior do imóvel sem a devida autorização estaria juridicamente justificado, quando evidenciado o estado de flagrância.[2] Vale dizer, a (efetiva) falta de mandado judicial para o ingresso na residência não invalidaria a prova obtida, pois o réu estava em situação de flagrante delito, hipótese autorizada pelo artigo 5º, XI, da Constituição Federal, citando-se, inclusive, precedentes do STF (HC 86.082-6) e do STJ (HC 188.195), em abono da tese.
Cremos, todavia, que o critério capaz de deslindar a polêmica é, por óbvio, a verificação da situação fática que autoriza a severa restrição de um direito fundamental – a inviolabilidade do domicílio – que se opera no exercício do poder de polícia, ainda que de boa-fé. Se o contexto probatório não permitir ultrapassar o filtro constitucional/processua-penal, então vão comprometidas as provas da materialidade dos delitos de tráfico, receptação e porte ilegal de arma, por exemplo.
Além disso, quando da redação do artigo referido, adiantamos que o parâmetro a ser aferido, caso a caso, haveria de ser, sem descurar da natureza permanente do delito de tráfico de drogas (para ilustrar), as circunstâncias da abordagem do caso concreto devem evidenciar “ex ante” situação de flagrância a autorizar o ingresso na residência do réu, durante o dia e, mais ainda, à noite, sem permissão e sem mandado de busca a apreensão.
Com efeito, a CF não proíbe a entrada em casa alheia, ainda que à noite, para fazer cessar prática delitiva, em caso de flagrante — ou desastre, ou para prestar socorro, tudo isso sem determinação judicial (artigo 5º, LXI, CF). O crime de tráfico de drogas (hipótese ora comentada) é permanente, podendo a prisão em flagrante ocorrer, inclusive no período noturno, independentemente da expedição de mandado judicial, determinação judicial que, aliás, só pode ser cumprida durante o dia.
Para além da paráfrase do inciso XI do artigo 5º da Constituição Federal, é de recuperar que a regra é a inviolabilidade do domicílio, restringindo-se a tutela constitucional naqueles casos elencados no próprio dispositivo, que funcionam, então, como elementos excepcionais, como tais devendo ser interpretados e aplicados, sempre em harmonia com o programa normativo, que é de proteção do indivíduo. Vale dizer que, se há limites ao direito fundamental em tela, e há, também há limites para tais limites, de maneira que não reste esvaziado o conteúdo garantista do preceito.[3]
O ambiente vital, que confere horizonte de sentido à ordem jurídica em análise, é o Estado democrático de direito, que procura conciliar os dois corações do atual Estado Constitucional, o princípio majoritário (governo da maioria, com soberania popular), e a proteção aos direitos e garantias fundamentais, inclusive da minoria. Em traço largo, afirmados constitucionalmente os direitos fundamentais, limitá-los e restringi-los é tarefa cometida, a priori, ao legislador e, na dinâmica social, ao Poder Judiciário – em ambos os casos, mediante atenção aos critérios da proporcionalidade, não sendo demais lembrar que a dogmática da proibição de excesso decorre da necessidade de estabelecer parâmetros racionais de controle ao exercício do poder de polícia administrativo, questão datada e localizada nos estados germânicos ao longo do século XIX. Daí a noção de reserva de jurisdição para restrição de direitos fundamentais, nomeadamente as intervenções restritivas do processo penal. A privação da liberdade, a mais intensa intervenção estatal, em face da presunção de inocência, pressupõe trânsito em julgado de sentença condenatória. As exceções, prisão temporária e preventiva, passam, sempre, pelo prévio crivo jurisdicional. O flagrante, pela óbvia inviabilidade de controle anterior – verificado o perigo na demora, por qualquer do povo e mormente pelos agentes estatais no exercício do poder de polícia –, é imediatamente submetido ao juiz.
Importa, portanto, densificar critérios que devem reger a atividade policial (certamente submetida à proporcionalidade e num primeiro momento postos pelo legislador) e no sentido de objetivar o controle judicial, idealmente prévio, às vezes a posteriori, de atuação do Estado-Polícia, sobrecarregado, em nossa sensibilidade, entre deveres de atuação e prevenção na segurança pública, de um lado; e de produção de provas hábeis a instruir a persecução penal, por outro, já que é inteiramente legítima e decorre de um dever geral de proteção a perseguição penal dos delinquentes no interesse da comunidade, sempre, contudo, mediante o respeito às “regras do jogo” prescritas pela Constituição Federal.
Assim, se a intervenção do juiz em regra deve ser prévia à restrição, cabe-lhe igualmente “o controle da verificação dos pressupostos da situação de perigo na demora no caso de intervenção dos órgãos de investigação em sua substituição”. E há duplo risco de frustração da reserva do juiz de ingerência: (a) transformar a exceção (controle posterior) em regra; (b) emprestar excessiva ambiguidade e vagueza aos parâmetros legais que autorizam as intervenções.
Na esteira dessa premissa é de se voltar os olhos para as tensões fáticas. Em síntese, a inviolabilidade do domicílio é a regra; excepcionalmente, diante de “fundadas razões” (fatos indiciados e delimitados temporalmente), o juiz, previamente, determinará a busca domiciliar, que deve ser feita de dia; ainda mais excepcionalmente, diante do perigo na demora, agente estatal no exercício do poder de polícia, à noite, poderá ingressar na casa de alguém, quando se depare com flagrante delito – nesta última hipótese, a situação deve demonstrar-se com base em fatos concretos, só devendo validar-se a busca domiciliar correlata (que não é consectário necessário do flagrante) quando pudesse ser autorizada, naquelas circunstâncias específicas (avaliadas ex ante), pelo juiz.
Sempre, contudo, que os elementos presentes nos autos não forem suficientes para comprovar a ocorrência de situação de flagrante perceptível do ponto de vista dos policiais, que se encontravam fora da residência do réu, então a conclusão só pode ser pela ilicitude da prova material eventualmente colhida. Assim, reiteramos que o respectivo juízo cognitivo, para ser racional e controlável, só pode aceitar-se ex ante. Tampouco se cogita da licitude da diligência policial para realizar busca domiciliar, nos termos do artigo 240, § 1º, “a”, do Código de Processo Penal,[4] pois teria que ser previamente determinado pelo juiz.
Nessa perspectiva, é de se repudiar toda e qualquer hipótese em que o ingresso no domicílio é justificado pelos policiais com base em uma situação de mera suspeita (a habitual “atitude suspeita”) e que não encontra suporte em atos concretos, movimentação típica de comercialização de drogas ou pelo menos indicativos disso.
Além disso, tal tipo de diligência policial origina-se possivelmente de premissa inaceitável em nosso sistema constitucional, qual seja, o direito penal do autor, cujo mecanismo, simplificadamente, parte de informes pretéritos, no mais das vezes anônimos, que assentam a etiqueta de que o indivíduo “é” traficante. A seguir, quando aleatoriamente a polícia depara-se com “o” traficante, vislumbra “atitude” suspeita, que autorizaria, neste contexto, busca pessoal.
O que se observa, contudo, é que o marco constitucional-legal aponta via diversa, tendo como pedra angular o direito penal do fato. Assim, não a atitude suspeita, mas apenas “fundada suspeita de que alguém oculte consigo arma proibida ou objetos mencionados” autoriza busca pessoal, na exata dicção do § 2º do art. 240 do CPP. Implicando séria restrição da intimidade, direito fundamental (CF, art. 5º, inciso X), a rigor deveria, no plano ideal, também ser precedida de mandado judicial, mas o perigo na demora, a autorizar a diligência policial, já vai considerado pelo legislador no art. 244, nos casos de prisão, ou de (repete-se a locução) “fundada suspeita” de que esteja na posse de arma ou de outro corpo de delito, ou quando a medida for desdobramento de busca domiciliar.
Assim, a suspeita, para ser fundada, é intuitivo, precisa fundar-se, amparar-se em elementos objetivos — sem descurar nuances subjetivas, desde que externalizáveis (daí o direito penal do fato) —, ainda que indiciados. O foco, nesta hipótese, não seria “o” traficante, mas condutas e atos, minimamente circunstanciados e que, na experiência policial constituem motivação idônea, é dizer, racional, para a ingerência em direito fundamental. Ademais, o pressuposto para a busca pessoal autônoma, sem mandado, é que o sujeito objeto da medida esteja em via pública, salvo prisão e desdobramento de busca domiciliar, bem como, naturalmente, fuga da abordagem, o que pode substanciar “fundada suspeita”.
Quanto à busca domiciliar, a exigência é robustecida, somente sendo deferida quando fundadas razões a autorizem e para as finalidades elencadas nas alíneas “a” a “h” do citado artigo 240 do Código de Processo Penal. A motivação, agora, a par de idônea e racional, é necessariamente concreta e com grau apertado de fundamentação.
Já num terceiro patamar de intervenção, considerando o gravame, assomam os casos de flagrante delito, em que a urgência, o perigo na demora, faz com que o sistema constitucional delegue a qualquer do povo a possibilidade de restringir o direito fundamental de inviolabilidade do domicílio. Se a premência e a emoção da vida real nem sempre permitem juízo prudente e ponderação cautelosa, o mínimo que se exige, pena de esvaziar a garantia, é que a situação de flagrante seja percebida ‘ex ante’ pelo agente que vai operar a ingerência constitucionalmente autorizada. Do contrário, o que se tem são fundadas razões para solicitar mandado de busca domiciliar ou mera suspeita a indicar que se deve aprofundar a investigação. Em nenhum dos casos, todavia, o sistema constitucional autoriza a violação do domicílio.
A descoberta a posteriori de uma situação de flagrante, com o devido respeito aos que pensam diversamente, é mero acasoe não tem o condão de justificar o ingresso compulsório na esfera domiciliar. Da mesma forma, não pode o aleatório subsequente (eventual apreensão de drogas, ou de armas, por exemplo), determinar a licitude de provas produzidas durante intervenção que, à partida, não se amparava em permissivo constitucional.
Importa, portanto, mediante avaliação rigorosa do contexto fático, verificar se há elementos objetivos e racionais a caracterizar, ‘ex ante’, situação de flagrância, na perspectiva do quem está fora da residência, pois não sendo assim desautorizada estava a invasão da casa/domicílio, por qualquer um, aí incluídos os policiais, cujo ingresso, repetimos, autoriza-se apenas nas exceções permitidas pelo preceito constitucional (flagrante delito, desastre, prestação de socorro e cumprimento, durante o dia, de mandado judicial).
Nesse diapasão, a prova colhida sem observância da garantia da inviolabilidade do domicílio é ilícita, não necessariamente porque ausente mandado de busca e apreensão, mas sim, porque ausentes, no momento da diligência, mínimos elementos indiciários da ocorrência do delito cujo estado flagrancial se protrai no tempo em face da natureza permanente e, assim, autoriza o ingresso na residência sem que se fale em ilicitude das provas obtidas ou em violação de domicilio. Acresce que, sendo o perigo na demora vetor decisivo para que o flagrante autorize a entrada no domicílio, nos crimes permanentes a intensidade desta razão diminui, já que, em tese, viável socorrer-se de mandado judicial, diferente da intervenção para evitar-se a consumação de um delito instantâneo, como um homicídio.
Em síntese, a mera informação, de que o réu é traficante, situa-se na esfera das suposições. Da mesma forma, dizer que nos crimes de natureza permanente, tal qual o tráfico de drogas, o estado de flagrante se mantém, o que é dogmaticamente correto, não significa dizer que vaga suspeita de prática de crime de tráfico de entorpecentes coloca o suspeito em estado de flagrância e, assim, afasta o direito à inviolabilidade do domicílio. Diversamente, a situação de flagrante, mesmo de um crime permanente, é dinâmica, e demanda, para sua mínima caracterização, amparo em fatos concretos e atuais, que hão de ser, ao menos, passíveis de exteriorização e individuação.
Assim, à vista do exposto, é possível fazer uma leitura positiva da decisão do STF ora comentada, no sentido de evitar uma lógica do tudo ou nada e de, no âmbito das balizas do sistema jurídico-constitucional, estabelecer parâmetros racionais e justificáveis do sentido e alcance dos comandos constitucionais e legais incidentes na espécie, interpretando adequadamente a condição de flagrância nos crimes de natureza permanente e coibindo abusos nessa seara. De qualquer sorte, é preciso sublinhar que se trata de matéria controversa do ponto de vista jurídico, mas também difícil na perspectiva fática, a demandar uma prudencial análise das circunstâncias do caso concreto, na dúvida sempre pendendo a decisão para uma interpretação restritiva das hipóteses autorizativas do ingresso forçado em domicílio alheio.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang; WEINGARTNER, Jayme. A inviolabilidade do Domicilio e seus limites: o caso do flagrante delito, in: Revista Direitos Fundamentais e Democracia vol. 14, p. 544-562, 2013.
[2] O que decorre, também, da singela disposição do art. 303 do Código de Processo Penal, verbis: “Nas infrações permanentes, entende-se o agente em flagrante delito enquanto não cessar a permanência”.
[3] Pra uma noção conceitual da categoria conhecida como limites aos limites dos direitos fundamentais, vide SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, pp. 394-404.
[4] Art. 240, §1º, “a”, CPP. A busca será domiciliar ou pessoal. § 1o Proceder-se-á à busca domiciliar, quando fundadas razões a autorizarem, para: a) prender criminosos.
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