Olhar Econômico

Sofisticação orgânica e aperfeiçoamento legislativo concorrenciais andam juntos

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

12 de novembro de 2015, 7h00

Spacca
João Grandino Rodas [Spacca]O direito concorrencial, como ramo do direito interno, surgiu na América do Norte no final do século XIX; e, em menos de 150 anos, encontra-se presente em, aproximadamente cem países. Há mais similitudes entre os diferentes direitos antitruste internos do que entre outros ramos, no referente a regras jurídicas, a doutrina e a precedentes jurisprudenciais. Outra importante semelhança reside no fato de apreciável número de Estados possuírem órgãos próprios para a respectiva aplicação e controle. Isso acontece tanto no direito antitruste dos ordenamentos internos, quanto no das organizações regionais de integração econômica.

A proto-história do direito concorrencial no Brasil iniciou-se com o Decreto Lei 7.666/1045, conhecido como Lei Malaia, que objetivava “atos contrários à ordem moral e econômica”, que criou a Comissão Administrativa de Defesa Econômica (Cade), para dar cumprimento às suas disposições. Embora não tenha sido implementado, influenciou os constituintes, a ponto de a Constituição de 1946 consagrar “a repressão ao abuso do poder econômico” (art. 148). Legislação ordinária sobre o assunto, somente viria a ser promulgada em 1962. A Lei 4.137 desse ano arrolou exemplos de abuso de poder econômico, criou um órgão de Estado, o Conselho Administrativo de Direito Econômico, incumbindo-lhe de apurar e reprimir tais abusos, além de conter normas administrativas processuais. Durante a vigência dessa lei, procedeu-se a inúmeras averiguações preliminares, não tendo sido, entretanto, alto o número de processos que chegaram ao Cade para julgamento. As Constituições de 1967 e 1969 mantiveram a repressão ao abuso do poder econômico como princípio constitucional, tendo a Lei 4.107/1962 sido recepcionada pelas citadas leis maiores e continuado em vigor. Durante a vigência dessa lei, o Cade começou a aumentar em número, em qualidade e em importância suas decisões, que passaram ao conhecimento do grande público, face à sua importância intrínseca e ao interesse dos meios de comunicação.

A Constituição federal de 1988, em seu capítulo sobre a ordem econômica e financeira, expressamente, elencou a livre concorrência entre os princípios da ordem econômica (art. 170, IV), tendo determinado que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação de mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (art. 173, § 4).

Em inícios da década de 1990, grandes inovações ocorreram, ao mesmo tempo em que a economia brasileira abria-se ao mundo, acabava-se o controle de preços e iniciava-se o processo de privatização das empresas estatais. A estrutura orgânica começou a tornar-se complexa com a publicação do Decreto 99.244/1990 e com a edição da Lei 8.158/1991, que, embora mantendo, expressamente, grande parte da Lei 4.137/19162 sobre abuso do poder econômico, definiu a infração à ordem econômica e criou um órgão de Governo, a Secretaria Nacional de Direito Econômico (SNDE), vinculada ao Ministério da Justiça e dotada de ampla competência. No referente ao direito concorrencial, possuía poderes de apuração (art. 1º), podendo atuar inclusive ex officio (art. 4º), bem como aplicar sanções (art. 7º), além de impor medidas preventivas. Esta última competência era concorrente com o Cade (art. 12), ao qual restou a competência privativa de julgar (art. 8º). Era nítida a intenção de minimizar o Cade, que de “órgão de deliberação coletiva do Ministério da Justiça” passaria a depender funcionalmente da SNDE, “que lhe dará suporte pessoal e administrativo” (art. 14). Em suma, pode-se dizer que a competência de apurar e reprimir o abuso do poder econômico, antes integralmente do Cade, foram repartidas entre ele e a SNDE. Provavelmente, a dualidade de regras de concorrência — Lei 8.158/1991 coexistindo com os dispositivos não revogados da Lei 4.137/1962 — provocaram discussões e estudos que possibilitariam o advento da Lei 8.884/1994, que expressamente revogou as duas leis referidas anteriormente.

Embora o objetivo tivesse sido aperfeiçoar e consolidar a legislação concorrencial, bem como estabelecer modelo institucional novo, a própria exposição de motivos assinala ter tentado um refinamento dos textos então vigentes. Em grandes linhas, as novidades trazidas foram:

  •  a transformação do Cade em autarquia federal, que lhe proporcionou maior independência, minimizou sua carência estrutural e possibilitou que o órgão passasse a ter procuradores, para colaborar com o Procurador-Geral.
  • discriminação das competências do Cade, da SDE, e da Secretaria de Acompanhamento Econômico-Seae.
  • outorga à Secretaria de Direito Econômico de competência para fiscalizar os setores monopolizados e oligopolizados, com poder de requisitar informações.
  • as decisões administrativas do CADE passaram a ser finais no âmbito do Executivo, podendo ser judicialmente executadas.
  • disciplinamento do compromisso de cessação e das multas.
  • tipificação do aumento abusivo de preço, como forma de abuso de poder econômico.

Por força da Lei 8.884/1994, a Secretaria de Acompanhamento Econômico, vinculada ao Ministério da Fazenda ingressou no âmbito dos órgãos antitruste brasileiros, nascendo a trilogia — Cade, SDE e Seae — que passou a ser conhecida como Sistema Brasileiro de Direito da Concorrência (SBDC) e como “os três guichés da concorrência”. No decorrer de sua vigência a lei em comento teve vários de seus dispositivos alterados e acrescentados, tendo a mais significativa mudança sido operada pela Medida Provisória 2.055/2000, que se transformou na Lei 10.149/2000. Na mensagem ministerial que encaminhou a Medida Provisória, aparece pela primeira vez, em documento oficial a expressão SBDC, para referir-se conjuntamente aos três órgãos com competência na área concorrencial: Cade, SDE e Seae. Depreende-se da mensagem em questão que a mudança buscava mecanismos mais efetivos de atuação, além de aperfeiçoamento dos dispositivos de repressão às infrações. Sua mais notável inovação foi a introdução no Brasil do instituto, hoje famoso, do acordo de leniência, também conhecido como política de delação premiada. Sublinhe-se ainda outras, como tornar possível a notificação e a intimação de empresas estrangeiras, por meio de seu representante operacional no Brasil; e incrementar os poderes investigativos da SDE e Seae.

Inobstante as deficiências da Lei 8.884/1994, operou-se durante sua vigência a consolidação do direito concorrencial no Brasil, criando a sensação nacional e internacional de que o Brasil possuía “autoridade antitruste”. O que se viu, durante os anos de vigência dessa lei, foram os órgãos antitruste — Cade, SDE e Seae — buscando minimizar tanto os inconveniente derivados da tripartição orgânica do SBDC, quanto as imperfeições da lei concorrencial, por meio da adoção do rito sumário por parte do Cade, do Guia para Análise de Atos de Concentração, pela SDE e Seae; e de procedimento sumário para a análise de atos de Concentração pela SDE e Seae.

Com a Lei 8.884/1994, o Cade alcançou posição de órgão judicante administrativo e natureza jurídica de autarquia federal, com a inaugural competência de controlar as estruturas econômicas nacionais. Desde então, cresceu em importância, visibilidade, deferência internacional, além de se ter legitimado no papel de prevenir e reprimir as infrações contra a ordem econômica.

Desde o início deste século, interessados no direito concorrencial vem discutindo e preparando anteprojetos para atualizar e modernizar o direito positivo antitruste brasileiro. Esse esforço frutificou com a promulgação da Lei 12.529/2011. As duas mais importantes modificações trazidas por ela foram o controle prévio dos atos de concentração e uma nova estrutura para o SBDC. Este passou a ser composto pelo Cade e pela Seae. O primeiro vinculado ao Ministério da Justiça e o segundo como pasta integrante do Ministério da Fazenda. O Cade permanece como entidade judicante com jurisdição em todo o território nacional, que se constitui em autarquia federal, com sede e foro no Distrito Federal, passou a ser constituído pelo Tribunal Administrativo de Defesa Econômica (que corresponde ao antigo Cade da Lei 8.884/1994), pela Superintendência-Geral (que equivale à antiga SDE), e o pelo Departamento de Estudos Econômicos.

O Departamento de Proteção e Defesa Econômica da Secretaria de Direito Econômico foi incorporado à nova estrutura. A Secretaria de Acompanhamento Econômico, do Ministério da Fazenda, embora mantida, deixou de instruir os processos, para concentrar-se na competition advocacy, junto a outros órgãos do governo e agências reguladoras.

No que tange às condutas anticompetitivas, a exemplo do que ocorre em outras jurisdições, continua havendo a previsão de não condenação dos ilícitos per se, mas de análise casuística, levando-se em conta a regra da razão. Por seu turno, o rol de condutas continua a ser meramente exemplificativo e não taxativo.

Contudo, alterou-se substancialmente a forma de punir. Os valores das multas, que, anteriormente, variavam entre 1 a 30% do faturamento bruto da empresa no exercício anterior ao da prática, agora situam-se entre 0,1 a 20% do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração.

Com o intuito de mitigar a duplicação de trabalhos no SBDC e torná-lo mais eficiente, o controle das estruturas passou a ser prévio. Nesse sentido, o CADE aprovou a Resolução 2/2012, que regulamenta o procedimento sumário para atos de concentração (fast track), bem como elaborou diretrizes explicitando as informações que deverão ser apresentadas pela empresas por ocasião da subsunção do controle de estruturas. Houve, ademais, revisão das normas infralegais do Sistema, estabelecendo critérios objetivos relativamente à confidencialidade de documentos a serem apresentados pelas empresas, tratamento sigiloso, definição dos ramos de atividade econômica dos agentes, submissão de transações realizadas em bolsas de valores com fundos de investimento e ofertas públicas de ações.

O direito comparado demonstra que os Estados primeiramente legislam, de maneira específica, sobre o direito, para a seguir estabelecer órgãos destinados à sua aplicação. Além disso, a sofisticação orgânica e o aperfeiçoamento legislativo andam juntos. Como se viu, o Brasil não fugiu à essas regras.

É preciso lembrar, como conclusão, que as Constituições brasileiras republicanas perfilharam o princípio da unidade jurisdicional, não possibilitando que a “justiça” administrativa exare decisões definitivas. A Constituição de 1988, vigente, ao rezar, em seu artigo 5º, XXXV, “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, possibilita a intervenção do Judiciário para proteção dos direitos coletivos e individuais, inclusive com tutela preventiva. Dessa maneira, qualquer decisão do Cade, por ser de natureza administrativa, está sujeita à primeira instância da Justiça Federal.

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    é professor titular da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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