Estado da Economia

O princípio da subsidiariedade e o autoritarismo

Autor

  • Gilberto Bercovici

    é advogado professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e professor nos programas de pós-graduação em Direito do IDP e da Uninove.

8 de novembro de 2015, 7h05

Spacca
O chamado “princípio da subsidiariedade” tem grande convergência com as propostas liberais e neoliberais, para quem o Estado, para ser legítimo, deve ser subsidiário (“Liberale Staatlichkeit ist daher nur legitim, soweit sie subsidiär ist”). Esta concepção ganha força com o discurso ideológico sobre o Estado ineficiente, incapaz[1]. O princípio da subsidiariedade busca limitar o Estado intervencionista, defendendo um “Estado subsidiário”, regulador e fiscalizador da economia. A subsidiariedade ordena as competências entre Estado e sociedade. Desse modo, o Estado atua como um igual, não como um ente superior ao setor privado. O Estado deve reconhecer, portanto, a primazia da “sociedade civil” (leia-se “mercado”), com a prevalência da iniciativa privada e a necessidade da garantia da propriedade.

Os autores costumam afirmar que o princípio da subsidiariedade foi enunciado pela primeira vez na encíclica Quadragesimo Anno, de 15 de maio de 1931, pelo Papa Pio XI. Alguns, ainda, em um equívoco histórico grosseiro, justificam o conteúdo da encíclica como um apelo à não ingerência estatal face à ascensão do fascismo na Europa. Na realidade, a ideia de subsidiariedade do papel econômico do Estado é positivada, pela primeira vez, justamente pelo fascismo, na célebre Carta del Lavoro, editada por Benito Mussolini em 1927, em seu item IX: “A intervenção do Estado na produção econômica tem lugar unicamente quando falte ou seja insuficiente a iniciativa privada ou quando estejam em jogo interesses políticos do Estado. Tal intervenção pode assumir a forme de controle, de encorajamento e de gestão direta”[2].

Além do fascismo de Mussolini, o princípio da subsidiariedade vai estruturar a iniciativa econômica pública de outros regimes autoritários, como a ditadura de Francisco Franco na Espanha (1939-1975)[3]. No caso brasileiro, essa concepção está inscrita na Carta de 1937[4] e nas cartas outorgadas pela ditadura militar. As Cartas de 1967 e 1969 dispunham que a livre iniciativa era o principal instrumento da política econômica, devendo o Estado dar preferência, estímulo e apoio à iniciativa privada, atuando de forma suplementar a esta (artigo 163 da Carta de 1967)[5].

Para o regime militar brasileiro, o Estado só poderia explorar diretamente a atividade econômica em caráter subsidiário à iniciativa privada. A crítica desse dispositivo está presente nos textos de Washington Peluso Albino de Souza, para quem, corretamente, o artigo 163 da Carta de 1967 (repetido no artigo 170 da Carta de 1969) adotou o princípio ideológico liberal originário, mas seus acréscimos o desfiguraram exageradamente. Desse modo, criaram-se instrumentos constitucionais que, na prática, consagraram o tradicional "capitalismo sem risco" brasileiro, sempre defendido pelos nossos ideólogos da iniciativa econômica privada, com a socialização dos prejuízos e a privatização dos lucros. O mesmo Estado que deve ser "subsidiário" ou "suplementar à iniciativa privada", deve também conceder "estímulo e apoio" às empresas privadas, abrindo inúmeras possibilidades de favoritismo a determinados grupos econômicos privados[6].

Para certa interpretação neoliberal da Constituição de 1988, o papel do Estado na economia estaria limitado negativamente pela livre iniciativa, princípio constitucional que vincularia “automaticamente” a intervenção estatal à subsidiariedade. O setor privado teria o principal papel na busca do desenvolvimento e da produção de riquezas. O Estado auxiliaria e supriria a iniciativa privada em suas deficiências e carências, só a substituindo excepcionalmente. A atividade econômica do Estado seria a exceção, ela não se autojustificaria, consagrando-se o princípio da subsidiariedade, que estaria previsto no artigo 173 da Constituição de 1988[7].

O texto constitucional, assim, teria reduzido as hipóteses de atuação do Estado, e as reformas da ordem econômica constitucional, a partir de 1995, teriam reforçado ainda mais o “Estado subsidiário”. A própria atividade reguladora do Estado também estaria submetida ao princípio da subsidiariedade, que serviria de parâmetro para conferir legitimidade à regulação estatal.

Na realidade, a Constituição de 1988 não incorporou, explícita ou implicitamente, o chamado princípio da subsidiariedade. O texto constitucional abriga, inclusive, inúmeros princípios ideologicamente contrapostos ao credo liberal. Por mais que alguns autores desejem, a ordem econômica constitucional brasileira não é liberal, tendo incorporado elementos liberais, sociais, intervencionistas, nacionalistas, desenvolvimentistas e cooperativistas, entre outros. A ideologia e o juízo político contrários ao intervencionismo ou ao Estado não podem ser transformados em uma imposição constitucional simplesmente pela vontade de seus defensores. O Estado não só pode como deve atuar na esfera econômica e social, legitimado por toda uma série de dispositivos constitucionais. Como bem destacam Cláudio Pereira de Souza Neto e José Vicente Santos de Mendonça, defender a existência e preponderância do princípio da subsidiariedade na Constituição de 1988 nada mais é do que uma “captura ideológica do texto”[8].

Não há na Constituição nenhum dispositivo que estabeleça que o Estado só pode atuar na esfera econômica em caso de desinteresse ou ineficiência da iniciativa privada, o chamado princípio da subsidiariedade. Pelo contrário, o texto constitucional deixa claro que a economia não é o terreno natural e exclusivo da iniciativa privada. O Estado também atua na economia, direcionado e limitado pelos dispositivos constitucionais. A necessidade de essa intervenção estatal ocorrer sob a justificativa da segurança nacional ou da perseguição a relevante interesse coletivo, conforme estabelece o artigo 173 da Constituição, não implica na subsidiariedade da atuação estatal. A limitação constitucional à atuação econômica do Estado não se refere à possibilidade de intervenção estatal, mas às modalidades de intervenção.

As reformas constitucionais da década de 1990 não excluíram o Estado da economia, nem poderiam. Em tese, elas permitiriam uma maior liberdade de decisão para o legislador ordinário, o que, no Brasil, consiste em uma meia-verdade, pois seus defensores buscam "blindar" a mudança de política econômica inserindo seus fundamentos e, às vezes, procedimentos no texto constitucional. Não foi substituído um modelo único por outro modelo único, a constituição econômica não é unidimensional. Os mesmos que criticavam a suposta falta de liberdade de opção de política econômica do texto constitucional original são os que defendem a “única interpretação possível” da constituição econômica reformada, como se o texto houvesse instituído uma economia de mercado “pura”.

Não existe, no sistema capitalista, nenhuma incompatibilidade entre a economia de mercado e a atuação econômica estatal, pelo contrário. A iniciativa econômica pública não pode impedir a iniciativa econômica privada, nem a iniciativa econômica privada pode bloquear a iniciativa econômica pública. Essa compatibilidade entre iniciativa econômica pública e iniciativa econômica privada também não significa equilíbrio. A Constituição legitima a atuação do Estado na economia, não existindo fronteiras espaciais ou temporais para esta atuação. O tamanho, abrangência e profundidade da atuação do Estado no domínio econômico é uma decisão política, que varia de acordo com o momento histórico.


[1] Josef ISENSEE, Subsidiaritätsprinzip und Verfassungsrecht: Eine Studie über das Regulativ des Verhältnisses von Staat und Gesellschaft, 2ª ed., Berlin, Duncker & Humblot, 2001, pp. 44-47, 137-143 e 346-349 e Gaspar Ariño ORTIZ, Principios de Derecho Público Económico: Modelo de Estado, Gestión Pública, Regulación Económica, 3ª ed., Granada, Comares, 2004, pp. 472-494.
[2] Carta del Lavoro, IX: "L'intervento dello Stato nella produzione economica ha luogo soltanto quando manchi o sia insufficiente l'iniziativa privata o quando siano in gioco interessi politici dello Stato. Tale intervento può assumere la forma del controllo, dell'incoraggiamento e della gestione diretta".
[3] Na ditadura de Franco, a instituição do "princípio da subsidiariedade" está presente no Fuero del Trabajo, de 1938, e na Ley de Principios del Movimiento Nacional, de 1958.
Fuero del Trabajo, XI, 4 e XI, 6: "4 ¾ En general, el Estado no será empresario sino cuando falte la iniciativa privada o lo exijan los intereses superiores de la Nación. (…) 6 ¾ El Estado reconoce la iniciativa privada como fuente fecunda de la vida económica de la Nación".
Ley de Principios del Movimiento Nacional, X: "Se reconoce al trabajo como origen de jerarquía, deber y honor de los españoles, y a la propiedad privada, en todas sus formas, como derecho condicionado a su función social. La iniciativa privada, fundamento de la actividad económica, deberá ser estimulada, encauzada y, en su caso, suplida por la acción del Estado".
[4] Artigo 135 da Carta de 1937: "Na iniciativa individual, no poder de creação, de organização e de invenção do indivíduo, exercido nos limites do bem público, funda-se a riqueza e a prosperidade nacional. A intervenção do Estado no domínio econômico só se legitima para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento dos interêsses da Nação, representados pelo Estado. A intervenção no domínio econômico poderá ser mediata e imediata, revestindo a forma do contrôle, do estímulo ou da gestão direta".
[5] Artigo 163 da Carta de 1967: "Às empresas privadas compete preferencialmente, com o estímulo e apoio do Estado, organizar e explorar as atividades econômicas. § 1º — Somente para suplementar a iniciativa privada, o Estado organizará e explorará diretamente atividade econômica. § 2º — Na exploração, pelo Estado, da atividade econômica, as empresas públicas, as autarquias e sociedades de economia mista reger-se-ão pelas normas aplicáveis às empresas privadas, inclusive quanto ao direito do trabalho e das obrigações. § 3º — A empresa pública que explorar atividade não monopolizada ficará sujeita ao mesmo regime tributário aplicável às empresas privadas". Este artigo foi reproduzido integralmente como artigo 170 da Carta de 1969.
[6] Washington Peluso Albino de SOUZA, Teoria da Constituição Econômica, Belo Horizonte, Del Rey, 2002, pp. 50-53, 69-70 e 94-96.[7] Artigo 173, caput: "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei".
[8] Cláudio Pereira de SOUZA Neto & José Vicente Santos de MENDONÇA, "Fundamentalização e Fundamentalismo na Interpretação do Princípio Constitucional da Livre Iniciativa" in Cláudio Pereira de SOUZA Neto & Daniel SARMENTO (coords.), A Constitucionalização do Direito: Fundamentos Teóricos e Aplicações Específicas, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2007, pp. 734-741.

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