Cartas marcadas

Nos EUA, arbitragem religiosa livra empresas de julgamentos em tribunais

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4 de novembro de 2015, 9h31

Há várias gerações, tribunais religiosos operam nos Estados Unidos com o objetivo de solucionar disputas familiares e conflitos de ordem espiritual. Mais recentemente, organizações com base religiosa vêm usando a arbitragem, para solucionar problemas típicos dos leigos, como fraudes financeiras, questões trabalhistas e até mesmo responsabilização civil por morte (wrongful death).

A escolha da arbitragem, no caso, não é resultante de um acordo prévio entre as partes, estabelecido voluntariamente, de boa-fé. É uma cláusula embutida em um longo contrato que, na maioria das vezes, não é lida por uma das partes. Ou, se é lida, coloca a parte na triste situação de “pegar ou largar”. Por exemplo: “se quiser o emprego, assine o contrato; se não quiser assinar, procure emprego em outro lugar”.

A artimanha se assemelha a de empresas que forçam arbitragens para acabar com ações coletivas nos EUA. Só que é mais contundente: os contratos de organizações que adotam a arbitragem religiosa proíbem qualquer tipo de ação na Justiça comum. E as disputas serão resolvidas não com base na legislação do país, mas de acordo com as “Escrituras Sagradas” — ou a Bíblia ou “princípios bíblicos”.

A prática se alastrou pelo país, de acordo com a segunda parte de um “Relatório Especial”, que vem sendo publicado pelo jornal The New York Times. É muito usada por instituições religiosas, com destaque para as cristãs, organizações ou entidades controladas por religiosos, por escolas particulares e por empresas cujo único vínculo com a religião é a fé (verdadeira ou suposta) do proprietário.

O jornal relata alguns casos de empresas privadas. No estado de Washington, por exemplo, o contrato de venda da Higuera Hardwoods, especializada em produtos de madeira, determina que qualquer disputa deverá ser levada a um árbitro cristão.

“A arbitragem deve ser feita por um único árbitro, experiente nas matérias em questão e escolhido pelo representado e representante, de acordo com as Regras do Procedimento da Conciliação Cristã do Instituto para Conciliação Cristã, uma divisão dos Ministros da Pacificação”, diz o contrato da Higuera Hardwoods, segundo o New York Times.

A Carolina Cabin Rentals, que aluga imóveis de temporada de alto padrão nas Blue Ridge Mountains, na Carolina do Norte, estipula no contrato que “quaisquer disputas serão resolvidas de acordo com princípios bíblicos”. Contratos desse tipo existem até para o torneio de pescaria no Havaí.

“As cláusulas de arbitragem religiosa têm se comprovado impermeáveis a ações judiciais”, diz o jornal. Com raras exceções, os juízes têm receio de interferir nos preceitos religiosos, se forem obrigados a analisar a causa, e, com isso, violar o direito à liberdade religiosa, previsto na Primeira Emenda da Constituição do país. Assim, simplesmente trancam as ações. E remetem o caso à arbitragem, nos termos do contrato.

Cura gay
Um dos casos mais célebres foi o do adolescente Nicklaus Ellison, condenado por dirigir embriagado, bater em quatro carros em um estacionamento, que recebeu suspensão condicional da pena, mas a violou. O juiz de lhe as opções de um ano de prisão ou de internação em uma organização chamada Teen Challenge.

Foi um caso único em que uma organização religiosa se saiu mal. A Teen Challenge, prestigiada pelo ex-presidente Bush, tem um programa para curar dependentes de drogas e de álcool.

Antes de morrer em decorrência de uma mistura tóxica de álcool, remédio para tosse e metadona (um narcótico usado no tratamento de dependentes químicos), ele escreveu uma carta à irmã, dizendo que a instituição não o curou da dependência de álcool e drogas, mas a cura gay, a qual foi submetido, funcionou. Ele pensava que não era mais gay.

O adolescente teve acesso a bebidas alcoólicas porque ele havia sido expulso da instituição, por não obedecer às regras. Uma das regras era a de que os internos deveriam trabalhar ("porque o trabalho faz bem"). Assim, Teen Challenge os empregava em empresas da cidade e coletava seus salários, para ajudar nas despesas. Os internos trabalhavam de graça.

A mãe do adolescente processou a instituição, com o objetivo de descobrir o que realmente aconteceu. Para ela, a suposta cura gay só agravou o problema do filho. Houve um período de hesitação, por causa do contrato que previa a arbitragem religiosa. Porém, um advogado a advertiu de que o contrato fora assinado pelo filho e não por ela. Nada a impedia de processar a instituição. No fim da história, ela obteve uma explicação e um acordo satisfatório de indenização.

Derrota na certa
São milhares de casos em que os demandantes perdem o direito de levar seu caso à Justiça — e consequentemente, desistem da causa, porque o resultado adverso é previsível, ou decidem ver o que acontece. E veem: perdem a arbitragem em tem que arcar com os custos.

Os adeptos da arbitragem religiosa não abrem mão desse expediente, a não ser que a decisão seja contra eles. E isso pode acontecer. Foi o caso, por exemplo, da professora Pamela Prescott, que foi demitida pela escola sem qualquer explicação. Ela entrou na Justiça, mas a ação foi trancada por causa da cláusula contratual. E ela, para não desistir de uma luta de dois anos, resolveu enfrentar a arbitragem religiosa.

O advogado Bryce Thomas que, segundo ele, se tornou árbitro porque Deus lhe pediu pessoalmente para fazer isso, refutou todas as acusações da professora contra a escola, incluindo de demissão por discriminação e assédio sexual pelo administrador. Mas, decidiu que a escola violou um preceito religioso, ao demiti-la sem qualquer explicação.

Ele citou o trecho da Bíblia, em Mateus 18:15: "Os cristãos devem se confrontar antes de levar seus problemas a quem quer que for". Assim, o árbitro decidiu que a escola deveria pagar à professora uma indenização de US$ 157 mil, dos quais ele coletou US$ 8 mil a título de “custos jurídicos”.

Cartas marcadas
De uma maneira geral, porém, a arbitragem religiosa é um jogo de cartas marcadas, porque o árbitro é um membro da comunidade da instituição demandada. Esse é o caso, ainda em andamento, do americano Luis Garcia. Ele abandonou a Cientologia, depois de chegar aos altos escalões da seita, porque uma de suas promessas não se cumpriu: a de que teria acesso às vidas passadas, ao chegar à iluminação.

Ele foi à Justiça para cobrar da seita dezenas de milhares de dólares, por cursos que pagou e nunca fez, entre outras razões. Um juiz federal da Flórida decidiu que a cláusula religiosa era válida e ele teria de se submeter à arbitragem da seita.

A arbitragem, no entanto, será feita por um painel de cientologistas. A seita proíbe seus seguidores de se associar, de qualquer forma, com ex-membros que foram declarados “pessoas supressivas” — são pessoas antissociais que, por seu comportamento e atitudes, suprimem as demais pessoas e agem de forma tirana.

O exemplo de pessoa supressiva, que os seguidores da seita devem mirar para entender a expressão, é Hitler. Garcia foi declarado “pessoa supressiva” (uma espece de excomunhão). E, no final das contas, será “julgado” por pessoas que o consideram um pária. E o excomungaram.

Para o New York Times, tanto as empresas que usam cláusulas contratuais para acabar com as ações coletivas, como as organizações que usam a arbitragem religiosa para impedir que as pessoas movam qualquer tipo de ação judicial, estão criando um sistema alternativo de Justiça.

É um sistema de privatização da Justiça, diz o jornal, que tem menos a ver com as crenças religiosas dos cidadãos do que com artimanhas para controlar os resultados de procedimentos jurídicos.

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