Fim dos tempos

Magistrados reunidos aprovam enunciado contra o direito de defesa e o contraditório

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3 de novembro de 2015, 5h06

Entre os dias 26 e 28 de agosto, a Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (Enfam), promoveu seminário nacional intitulado “O Poder Judiciário e o novo CPC”, em que foram analisadas as novéis regras do Código de Processo Civil, com vistas a auxiliar juízes e servidores da Justiça a aplicá-las.[1] O seminário contou com a presença de cerca de 500 integrantes do Poder Judiciário, que, após discussão e deliberação, emitiram 62 enunciados relacionados à aplicabilidade das regras introduzidas pela Lei 13.105/2015.

Uma das inovações promovidas pelo novo CPC é o Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ). Trata-se de procedimento previsto nos artigos 133 a 137, que disciplinam a possibilidade de, na petição inicial ou incidentalmente, inclusive no cumprimento de sentença e na execução de título extrajudicial — que é precisamente o caso da CDA —, requer-se a desconsideração da personalidade jurídica para alcançar o patrimônio pessoal de sócios-gerentes, facultando-lhes demonstrar, após dilação probatória, a impertinência da pretensão do credor.

A instauração do IDPJ, em primeiro ou segundo grau de jurisdição, impõe a suspensão do processo até que seja decidida definitivamente a possibilidade ou não da responsabilização pessoal dos administradores, por incursão na hipótese prevista no artigo 50 do CC[2], qual seja, o abuso de personalidade jurídica por confusão patrimonial ou desvio de finalidade.

O novo CPC busca estabelecer uma Teoria Geral do Processo, em decorrência da qual aplicar-se-ão suas regras não só ao Processo Civil, mas também aos processos judiciais atinentes a outros ramos do Direito, entre eles o Tributário, o que se conclui, inclusive, pela dicção do artigo 15, que prevê a aplicação subsidiária e supletiva das normas do CPC aos processos administrativos, eleitorais e trabalhistas[3].

Considerada ainda a previsão expressa no artigo 1º da Lei 6.830/80, no sentido de que se aplicam subsidiariamente às execuções fiscais as regras do Processo Civil, é possível afirmar, com segurança, que o IDPJ é de todo aplicável ao Direito Tributário, em especial às hipóteses de redirecionamento das execuções fiscais[4].

Ocorre, no entanto, que os magistrados reunidos no referido seminário, decidiram por maciça maioria de votos (77% a favor e 23% contra[5]) pela não aplicação do IDPJ às execuções fiscais e o fizeram nos termos do Enunciado 53: “O redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente prescinde do incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto no artigo 133 do CPC/2015.”

Conforme se verifica na reprodução do referido Enunciado, ficou sedimentado o entendimento de que é dispensável a instauração do IDPJ para que se promova o redirecionamento da execução fiscal e a inclusão dos sócios-gerentes no polo passivo da demanda executiva.

O fundamento para tal entendimento não foi essencialmente jurídico, mas pragmático. Segundo ponderou o relator da proposta, o motivo que os conduziu à referida compreensão é a incompatibilidade do IDPJ com a “sistemática e a celeridade” que devem ter as execuções fiscais, as quais, segundo esclareceu, totalizam 30% dos processos em tramitação no Brasil. Justificou ainda a proposição invocando peculiaridades do rito do IDPJ, em especial a suspenção do processo executivo com vistas à produção de provas, o que seria, segundo afirmou, um motivo a mais para impedir a aplicação do Incidente às execuções fiscais.[6]

É definitivamente surpreendente, para não dizer decepcionante, a decisão a que chegaram os magistrados presentes ao seminário, em especial diante dos fundamentos adotados para amparar seu entendimento vertido no Enunciado 53.

Convenhamos, deixar de aplicar um rito procedimental que realiza o contraditório, a ampla defesa e consequentemente a segurança jurídica, não é, definitivamente, intelecção compatível com um Estado que se pretende democrático e de direito.

É de se indagar: Por que o medo do contraditório? E da ampla defesa? E ainda, o fato de 30% das ações que tramitam no Brasil serem execuções fiscais, autoriza o atropelo de direitos consagrados na Constituição Federal?

Sem dúvida, os fundamentos adotados para a formulação do Enunciado são inaceitáveis sob o ponto de vista da observância das garantias constitucionais, sobretudo porque desvestidos de natureza jurídica.

Incompatível com o rito das execuções fiscais? Não, decisivamente o IDPJ não é incompatível com o rito das execuções fiscais. O que é certamente incompatível com o rito das execuções fiscais e também com o de todos os demais processos judiciais é a inobservância de garantias fundamentais, entre as quais o direito ao contraditório, o direito à ampla defesa e o direito à segurança jurídica. É, sem dúvida, o “fim dos tempos”.

É inaceitável que se redirecione a execução fiscal para o sócio-gerente sem comprovação cabal de que se trata de hipótese autorizadora para tanto, pior, que se lhe impinja o ônus de fazer prova negativa de que não infringiu à lei, contrato social ou estatutos.

Ao realizar o pedido de redirecionamento da execução fiscal para o administrador com poderes de gerência, a exequente deve, de antemão, comprovar os fatos constitutivos de seu direito, pois a mera alegação da ocorrência de infração à lei, ao contrato social ou aos estatutos não é bastante em si mesma para autorizar a responsabilização pessoal do respectivo agente. Tais fatos, por serem constitutivos do alegado direito do sujeito ativo, devem ser amplamente comprovados quando da formulação do referido pedido de redirecionamento.

Para a aplicação da norma prevista no artigo 135 do CTN, a autoridade fazendária está obrigada a demonstrar a efetiva prática das violações nela previstas e mais, há de evidenciar que foram desencadeadoras do nascimento da relação jurídica tributária. Ao sujeito passivo, por sua vez, incumbirá a prova de que foi diligente na administração da empresa, cumprindo todos os deveres decorrentes de tal múnus e que não praticou atos abusivos da personalidade jurídica. O executado deve, portanto, fazer prova positiva da sua ação responsável e não prova negativa de uma atuação dolosa. Não é, no entanto, o que ocorre na prática.

Concretamente, quando exequentes pedem o redirecionamento da execução fiscal para sócios-gerentes, em grande parte das vezes, não provam desde logo a incursão destes nas hipótese do artigo 135 do CTN, o que é acatado por alguns dos juízes de primeiro grau de jurisdição, mantido por um sem número de magistrados integrantes de tribunais intermediários e afinal confirmado, com não rara frequência, por ministros do STJ. Ao admitir a responsabilização pessoal do sócio-gerente, independentemente de o débito inadimplido ter nascido em decorrência das infrações descritas no artigo 135 do CTN, tais decisões não observam rigorosamente os critérios impostos pelo legislador para tanto.

Segundo entendimento assente na jurisprudência pátria, não encontrados bens da empresa para satisfazer o débito tributário e havendo pedido do procurador da fazenda pública em tal sentido, a ação de execução fiscal pode ser redirecionada para o sócio-gerente. Em quase todas as oportunidades em que se opera o redirecionamento da ação executiva, o referido  dispositivo legal é invocado como fundamento de validade[7], inclusive e especialmente nos casos de dissolução irregular da sociedade.

Embora não prevista expressamente no artigo 135 do CTN, a dissolução irregular é admitida como hipótese de infração à lei, entendimento estes sumulado pelo STJ.[8]

Diante de tal circunstância, o que se verifica de fato no mundo fenomênico, é a responsabilização pessoal dos administradores, sem que tenham efetivamente praticado qualquer das infrações capituladas no artigo 135 do CTN, o que nos permite concluir que a instauração do IDPJ atribuirá maior segurança jurídica às partes envolvidas no processo de execução fiscal, que poderão, após dilação probatória, demonstrar a subsunção ou não das práticas gerenciais às hipóteses descritas no dispositivo legal em questão.

Sendo certo que a verificação dos pressupostos necessários à desconsideração da personalidade jurídica em matéria tributária envolve, necessariamente, a produção de provas, muitas vezes o executado não consegue ilidir a sua responsabilidade de imediato e a solução acaba se verificando de forma definitiva no âmbito do STJ, momento em que, não raramente, já houve constrição patrimonial indevida.

Com a entrada em vigor do novo CPC, a desconsideração da personalidade jurídica só se dará, se assim o permitirem os juízes, rejeitando o entendimento objeto do referido Enunciado 53, após decisão judicial que acolher definitivamente o respectivo pedido.

Não é novidade que diante do redirecionamento da execução fiscal, com vistas a evitar a constrição indevida de seus bens, sócios-gerentes empreendem todos os esforços para obter decisão suspensiva do feito, o que fazem com apresentação de exceção de pré-executividade, instrumento que, quando acatado e deferido pela autoridade judiciária, resulta na suspensão da execução fiscal.

A exceção de pré–executividade é fruto de construção pretoriana. Não está, portanto, expressamente contemplada na legislação processual em vigor. Embora não positivada, é largamente utilizada e aceita como meio de defesa, e é em si apta a promover a suspensão da execução fiscal, como também o é o IDPJ.

Diante de tal dado pensamos que o fundamento que embasou a formulação do Enunciado 53, consistente na incompatibilidade do IDPJ com a celeridade que se busca no processo executivo é, em tudo e por tudo, contraditório, já que a suspensão da execução pode ocorrer, como de fato ocorre, quando a exceção de pré-executividade é recebida e o respectivo pedido é deferido pelo juiz da causa.

A inserção no ordenamento jurídico positivo do IDPJ evitará que a matéria continue sendo discutida em sede de exceção de pré-executividade

O IDPJ é, portanto, um avanço que imprimirá maior segurança e certeza às relações entre a fazenda pública, sujeito ativo, e o sujeito passivo da relação jurídica tributária, seja ele contribuinte ou responsável, garantido que a chamada teoria maior — aquela que só autoriza a desconsideração da personalidade jurídica se comprovado o abuso tendente à prática do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, tal qual estabelecido no artigo 50 do CC — prevaleça sobre a teoria menor — segundo a qual, o mero inadimplemento autoriza a desconsideração da personalidade jurídica.

É certo que os enunciados do seminário promovido pela Enfam não têm efeito vinculante, assim para os juízes como para as partes envolvidas nos processos judiciais, no entanto, em especial o 53, que trata da não aplicabilidade do IDPJ às execuções fiscais, sobretudo pelo fato de ter sido aprovado por absoluta maioria de votos dos presentes, causa preocupação com o que está por vir a partir da entrada em vigor do novo CPC.

Sem dúvida, em especial em relação ao IDPJ, é possível enxergar o fim do túnel e certamente não há luz no final dele.

 


[1] Disponível em http://www.enfam.jus.br/o-novo-cpc/. Acessado em 29/10/2015

[2] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

[3] Art. 15.  Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.

[4] Art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo CPC.

[5] Disponível em: http://www.enfam.jus.br/wp-content/uploads/2015/09/Resultado-das-Votações-Enunciados-Aprovados_portal.pdf Acessado em 29/10/2015     

[6]https://www.youtube.com/watch?v=rM3ckfgbOFc&list=PLHvsuDTAmOfNsMJwAuwmRnsmCMFuK1YUk&index=1

[7] Como regra o pedido de redirecionamento tem fundamento no artigo 135 do CTN, mas em algumas hipóteses o fundamento invocado é o artigo 137 do CTN. Ambos os dispositivos  não se prestam a amparar a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica. Quanto ao artigo 135 do CTN quando o nascimento da relação jurídica tributária não tiver sido desencadeada pela prática das infrações nele descritas e, no caso do artigo 137 do CTN, quando as atividades gerenciais não forem tipificadas legalmente como crime.

[8] SÚMULA N. 435-STJ: Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente.  

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