Opinião

Repatriar recursos oriundos do crime pode fazer Lava Jato acabar em pizza

Autores

  • Allan Titonelli

    é procurador da Fazenda Nacional membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública do CFOAB ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

  • Vladimir Belmino de Almeida

    é advogado assessor legislativo no Senado Federal membro da Comissão Especial de Estudo da Reforma Política do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e membro fundador da Abradep.

2 de novembro de 2015, 6h30

Estamos vivenciando um momento no país em que vários projetos são lançados com o objetivo de arrecadar recursos para fazer jus ao déficit fiscal existente nas contas da União. Na pauta da Câmara, por exemplo, temos alguns projetos polêmicos, relevante destacar o PL 2960/2015, que trata da repatriação de ativos enviados para fora do país fruto da sonegação. Todavia, após alterações legislativas ele poderá permitir, inclusive, que valores oriundos do crime sejam legalizados, fato esse que não deveria passar desapercebido, pois no momento em que a operação Lava Jato revela que vários casos de corrução tiveram como fato criminoso a lavagem desse dinheiro no exterior, essa medida poderá provocar uma anistia à posterior para os crimes cometidos, o que, em alguns casos, pode até evidenciar legislação em causa própria.

De outro lado, estudo publicado pelo Sinprofaz (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional), nominado como “Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação”[1] constatou que, levando-se em conta a média dos indicadores dos tributos que têm maior relevância para a arrecadação (ICMS, Imposto de Renda e Contribuições Previdenciárias) poder-se-ia estimar um indicador de sonegação de 27,6% da arrecadação, o que representaria em torno de 10,1% do PIB e uma perda de arrecadação de R$ 518,2 bilhões, com base no PIB do ano de 2014.

A título comparativo podemos ainda dizer que o desvio provocado pela sonegação é muito maior do que a corrupção, onde estudos da Fiesp constataram que o custo médio anual da corrupção no Brasil pode ser calculado entre 41,5 bilhões a R$ 69,1 bilhões, representando aproximadamente de 1,5% a 2,6 % do PIB.[2] Contudo, considerando os desdobramentos da operação Lava Jato podemos dizer que invariavelmente muitos dos desvios ligados à corrupção estão atrelados à lavagem de dinheiro.

Ocorre que para a construção de um país mais igualitário é primordial que todos contribuam, na medida de suas possibilidades. Entretanto, sempre haverá aqueles que deixam de cumprir com suas obrigações, deixando de pagar deliberadamente os tributos. Fato esse cada vez mais contumaz, vide as recentes declarações do Ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, dizendo que as empresas estão deixando de pagar seus tributos em face da crise econômica que vivenciam, uma vez que estão incluindo em seus “planejamentos” acertar as contas com o fisco em um próximo parcelamento, os quais já se tornaram corriqueiros.[3]

Somado a isso, e diante da regressividade do sistema tributário brasileiro, tendo em vista a prevalência da matriz tributária sobre o consumo, a sonegação é ainda mais nefasta para com os mais pobres, os quais, por consumirem praticamente toda sua renda, não possuem meios para sonegar, pagando ainda, proporcionalmente, maior tributação. Isso se comprova pelo fato de que quem ganha até dois salários mínimos paga quarenta e nove por cento dos seus rendimentos em tributos, mas quem ganha acima de trinta salários paga vinte e seis por cento. Portanto, o contribuinte de baixa renda além de não ter mecanismos para promover a sonegação, uma vez que grande parte da incidência de sua tributação é sobre o consumo, ainda tem de arcar com o peso da sonegação dos outros.

Retomando o tema dos parcelamentos, temos visto recorrentemente através da imprensa, que diversos setores da economia nacional ou grupos organizados pressionam frequentemente o Governo para que sejam editados parcelamentos objetivando regularizar sua situação fiscal, com descontos de toda a espécie. No âmbito federal foram mais de dez parcelamentos excepcionais (Refis 1, PAES, PAEX, Simples Nacional, Funrural, Timemania, Refis da Crise, entre outros) nos últimos vinte anos, e mesmo assim, em regra geral, os devedores não conseguiram se organizar para regularizar a situação fiscal perante a União. Sem falar que em grande parte desses parcelamentos pagam-se quantias módicas (no Refis da crise pagou-se entre R$ 50,00 e R$ 100,00) por um período significativo de tempo até que os débitos fiscais sejam consolidados (quando há a apuração dos débitos totais e o número de parcelas restantes, gerando os valores reais a serem pagos), momento em que os aderentes deixam de efetuar seus pagamentos, sendo, assim, excluídos do parcelamento mais de 50 % daqueles, confirmando-se o intento estritamente protelatório da adesão.

Esses parcelamentos cíclicos provocam o aumento da sonegação, na medida em que projetam “planejamentos tributários” onde os sonegadores podem, de tempos em tempos, regularizar sua situação fiscal, protraindo o pagamento dos débitos. Nesse contexto, pode-se tomar como referência um dos últimos parcelamentos excepcionais editados pelo Governo Federal, o Refis da Crise. Assim, se um devedor tivesse adotado a prática deliberada de sonegar, aplicando o valor do tributo não pago em renda fixa ou outro investimento similar, e tivesse optado pelo referido parcelamento adotando o pagamento à vista, com desconto de multa, juros e encargos, teria tido lucro com tal operação.[4]

Além do que, uma das variantes que serve como premissa para o estudo do Sinprofaz (Sonegação no Brasil – Uma Estimativa do Desvio da Arrecadação), segundo bases teóricas e pesquisa de campo, determina que quando a carga tributária é alta e a probabilidade de detectar a sonegação é baixa, é economicamente racional para pessoas físicas e jurídicas sonegar. Portanto, é fundamental fortalecer o combate à sonegação para impor uma reversão do quadro hoje existente, de alta carga tributária e elevada sonegação.

Diante desse quadro uma das principais medidas a serem adotadas para diminuir drasticamente esse círculo vicioso seria acabar com a extinção da punibilidade dos crimes tributários pelo pagamento ou parcelamento do débito, fator que não existe em países onde o combate à sonegação é elemento inibidor da lavagem de dinheiro, como EUA, Alemanha e Espanha, mas poderíamos citar muitos outros.

Nesse pormenor, relevante destacar que a diferenciação entre um ilícito administrativo, civil ou penal depende da escolha feita pelo Estado em reprimir determinado tipo de conduta. Elegendo, os ilícitos penais como aquelas condutas de maior reprovação perante a sociedade.

De um modo geral, o ilícito tributário, no Brasil, não se destina à reprovação da conduta por ação ou omissão, mas sim ao recebimento do tributo.  Isso porque, na maior parte do tempo existiram hipóteses de extinção da punibilidade para o ilícito tributário, as quais quase sempre estavam condicionadas ao pagamento e/ou parcelamento da dívida. Some-se a isso, o fato de que a legislação referente aos ilícitos tributários, atualmente, abrange, na maior parte de seus delitos, os crimes materiais, ou de resultado, em que somente estará consumado o delito se houver a supressão ou a redução do tributo devido.

Fazendo um breve escorço histórico do pagamento como causa extintiva da punibilidade nos ilícitos tributários, podemos dizer que o art. 2º, da Lei nº 4.729/65 introduziu o pagamento como causa de extinção da punibilidade acaso esse fosse feito antes do início da ação fiscal. Entretanto, o art. 98, da Lei nº 8.383/91 revogou todos os dispositivos que extinguiam a punibilidade nos ilícitos tributários em razão do pagamento. Contudo, o art. 34, da Lei nº 9.249/95 reintroduziu o pagamento como causa extintiva da punibilidade, condicionando, porém, que o mesmo fosse efetuado antes do recebimento da denúncia. Por fim, o art. 9º, da Lei nº 10.684/03 manteve o pagamento como causa extintiva da punibilidade, sem impor qualquer restrição temporal para que esse fosse feito. Sendo certo que as legislações posteriores repetiram esse conceito.

Em relação ao parcelamento como causa extintiva da punibilidade nos ilícitos tributários podemos ser mais sucintos e dizer que essa possibilidade foi introduzida pela Lei nº 9.964/00, repetida na Lei nº 10.684/03 com alterações, entre elas aquelas advindas na Lei nº 12.382/11 e demais subsequentes.

Ocorre que os sucessivos parcelamentos acabam provocando um verdadeiro jogo de gato e rato no pagamento do débito ou persecução criminal, na medida em que a pretensão punitiva estará suspensa enquanto vigente o parcelamento, e aquela somente poderá ser retomada com a exclusão do parcelamento. Todavia, com tantos parcelamentos essa adesão e exclusão acaba ocorrendo ao planejamento do devedor, perdendo assim o caráter inibitório da conduta.

Além do que, com a nova Legislação sobre a Lavagem de Dinheiro (as alterações na Lei 9.613/98 introduzidas pela Lei 12.683/12), o referencial antecedente passou a ser qualquer infração penal, havendo uma antinomia de conceitos a ser superada, pois enquanto trabalha-se a punibilidade sem atrelamento ao aspecto econômico, os crimes tributários (e portanto possíveis crimes antecedentes para tipificação da prática de Lavagem de Dinheiro), ainda possuem essa diretriz como parâmetro, já que possibilitam a extinção da punibilidade pelo parcelamento ou pagamento do tributo. Assim, poderá ensejar a extinção da punibilidade pelo crime antecedente, por meio do pagamento ou parcelamento do débito, o que ultimaria consequências (ou não) na tipificação de Lavagem. Nesse sentido, alertando para essa antinomia escreveu Heloisa Estellita e Pierpaolo Cruz Bottini, “Lei de Lavagem dá nova dimensão ao crime tributário”[5].

Portanto, se não mudarmos essa realidade, e o PL 2960/2015 não for alterado, poderemos ver muitos dos crimes julgados na operação Lava Jato serem extintos por uma alteração legislativa posterior.

[1] Disponível em: < http://www.quantocustaobrasil.com.br/artigos/sonegacao-no-brasil%E2%80%93uma-estimativa-do-desvio-da-arrecadacao-do-exercicio-de-2014> Acesso em: 20.07.2015.

[2] Disponível em: <http://www.fiesp.com.br/competitividade/downloads/custo%20economico%20da%20corrupcao%20-%20final.pdf>  Acesso em 23.10.2012.

[3] Disponível em: < http://g1.globo.com/politica/blog/cristiana-lobo/post/lava-jato-contribui-para-frear-economia-avalia-governo.html> Acesso em: 20.07.2015.

[4] PLUTARCO, Hugo Mendes. Tributação, assimetria de informações e comportamento estratégico do contribuinte: uma abordagem juseconômica. Dissertação (Mestrado em Direito). Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília, 2012, 125 f.

[5] Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2014-mar-25/direito-defesa-lei-lavagem-dimensao-crime-tributario>  Acesso em 11.09.2015.

Autores

  • Brave

    é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública do CFOAB, ex-presidente do Forvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

  • Brave

    é advogado, conselheiro federal suplente pela OAB-AP, presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB-AP, secretário adjunto do Colégio de Presidentes de Comissões Eleitoral do CFOAB e ex-diretor presidente da Companhia de Trânsito e Transporte de Macapá.

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