Ato de desespero

Imposto sobre fortuna não é medida adequada para o momento

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

26 de março de 2015, 6h59

Fala-se numa possível instituição do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) para ajudar na recuperação fiscal do governo federal. O wealth tax (Imposto sobre a Riqueza), também conhecido como capital tax (Imposto sobre o Capital), é um tributo equivalente, de certo modo[1], ao que se chama no Brasil de Imposto sobre as Grandes Fortunas, previsto no artigo 153, inciso VII, da Constituição Federal[2]. A Constituição apenas outorga competências, mas o imposto precisa ser instituído e regulamentado pelo ente público competente, que, no caso, é a União Federal.

Deste modo, apesar de o IGF estar previsto na Constituição desde 1988, pouquíssimo se discutiu sobre ele no Brasil, enquanto muitos outros países já o instituíram, alguns dos quais continuam com ele e outros o aboliram algum tempo depois. Como qualquer discussão sobre tributos, decidir pela instituição ou não do IGF depende de inúmeros aspectos políticos, econômicos, sociais e outros.

Antes de tratarmos, então, desse tributo sobre a riqueza dos indivíduos, deve-se ter em mente o momento vivido pelo Brasil. O país tem hoje um dos piores sistemas tributários do mundo, com alta regressividade, o que impede a redistribuição de riquezas; tem grande quantidade de tributos e enorme complexidade, provocando incontáveis obrigações acessórias, que causam gastos e perda de eficiência pelos empresários; a população não acredita na tributação brasileira nem um pouco, de modo que não há o menor interesse em pagar tributos; dentre vários outros problemas que precisam ser resolvidos antes da criação de novas exigências tributárias.

A ideia central do IGF é gerar redistribuição de riqueza, conforme proposto por Thomas Pikkety e outros economistas bastante gabaritados, mas, como se sabe, o Brasil enfrenta um problema gravíssimo de desvio de verbas, que, como se pode imaginar, não deve ficar restrito à Petrobras. Ela é somente a ponta de um gigantesco Iceberg que mina a economia do país durante a sua história. Portanto, entendemos que a criação de qualquer tributo deveria vir dentro de um pacote mínimo de medidas com o intuito de sintetizar o sistema e desonerar tributariamente o consumo para, consequentemente, desonerar em maior proporção a classe mais baixa, que tem menores condições de consumir.

As tributações progressivas devem aumentar no Brasil e as regressivas precisam cair, devendo isso ser feito com olhos numa simplificação do sistema, e não num aumento. A criação de um novo tributo gera distorções econômicas e perda de tempo com mudanças de comportamento, preenchimento de declarações, pagamento, contratação de contadores, diligências à Receita Federal etc. No mínimo, a criação do IGF nesse momento de desconfiança geraria uma saída ainda maior do país de pessoas com boas condições financeiras, que são, em regra, as mais preparadas para produzir.

Dito isso, é preciso considerar ainda que a tributação da riqueza é um dos temas mais controversos da Optimal Taxation Theory[3], não sendo simples como a maior parte da sociedade pensa. Não se trata unicamente de fazer os ricos pagarem por terem mais patrimônio, envolvendo uma problemática de como quantificar a riqueza, sendo difícil avaliar, por exemplo, obras de arte, além de que vários bens podem ser omitidos de declarações ou transferidos para o nome de outras pessoas.

Por outro lado, não se pode deixar de considerar que, conforme os projetos de lei que já foram criados para instituir o IGF, ele tributaria apenas pessoas com patrimônio acima de alguns milhões de reais, o que representa parcela pequeníssima da população brasileira. A depender do número que se escolha, estar-se-á tributando 1% ou até menos da população, então as distorções econômicas não seriam grandes e, desde que realmente o objetivo fosse sustentar programas sociais e, principalmente, modificar a educação do país, o IGF poderia começar a fazer sentido.

De qualquer modo, entendemos que precisaria vir acompanhado de algum tipo de revisão da tributação regressiva, com um alívio da sociedade no PIS, na COFINS e no IPI, demonstrando um interesse do governo federal em se aproximar minimamente do caminho que vêm seguindo os países desenvolvidos, que procuram tributar menos o consumo, contudo tributam mais a renda e a riqueza, que podem ter efeitos progressivos.

Também não adianta criar um novo tributo, onerar a população, ainda que uma parte mínima e rica dela, para depois esses valores serem todos perdidos com ineficiência e corrupção. Antes de onerar ainda mais a população, é preciso corrigir os erros da administração pública, permitindo que seja satisfeito o princípio do equilíbrio tributário, para o qual a arrecadação deve manter um equilíbrio com o dispêndio. A limitação de propriedade da população precisa manter coerência com o que lhe é oferecido em retorno. 

Outro problema do IGF é que a sua experiência em outros países foi mal sucedida. Dentre os países da Europa, alguns sequer chegaram a criá-lo, mas, dentre os que criaram, vários deles depois o aboliram. Irlanda e Holanda, por exemplo, concluíram que a tributação da riqueza fazia com que ela saísse do país e afastava novos investidores.

Além disso, um fator que conta contrariamente ao IGF é o custo x benefício. Trata-se de tributo complexo, de difícil fiscalização, o que gera muitos gastos para o Estado. Esse foi um fator considerado pela Áustria para que também extinguisse o tributo. É muito curioso como, no Brasil, se olha muito pouco para essa questão da proporção entre arrecadação e gastos realizados na gerência de cada tributo. Como a população brasileira rica é pequeníssima, a arrecadação desse imposto, se criado, talvez não fosse tão relevante quanto se imagina.

O fabuloso trabalho coordenado por James Mirrlees, que é uma das bases de análise da série de textos que estamos publicando, nem sequer se aprofunda no wealth tax[4], pois o considera mal sucedido e também pelo fato de ele nem ser cogitado no Reino Unido, objeto principal da pesquisa do vencedor do Prêmio Nobel de Economia.

Ainda segundo Mirrlees e sua equipe, tributar a riqueza é muito semelhante a tributar os retornos sobre as economias dos contribuintes, de modo que levanta alguns problemas.

O caminho mais adequado para o Brasil, segundo nos parece, é seguir as diretrizes estabelecidas pelo trabalho de James Mirrlees e hoje defendida pela maior parte dos grandes economistas do mundo. Se isso fosse feito, em curto prazo o país veria um crescimento econômico e, portanto, aumento da arrecadação tributária.

No que toca ao assunto aqui em análise, estamos falando de, em vez de aumentar o sistema, reduzi-lo, ou seja, buscar a extinção de tributos sobre o consumo como PIS, COFINS, IPI e ICMS. A arrecadação seria, então, substituída por um sensível aumento do IR (para recompor perdas na arrecadação de PIS, COFINS e IPI) e do ITCMD (para recompor perdas na arrecadação do ICMS). Isso simplificaria o sistema por demais e possibilitaria uma tributação efetivamente progressiva, que não acontece hoje.

Um dos argumentos para que esse caminho seja tomado é muito simples. Temos experiências concretas de vários países desenvolvidos que o seguiram. Eles tributam muito mais do que o Brasil a renda e as transferências de riqueza, ambos progressivamente, e tributam muito menos o consumo. No Brasil, há muitos casos em que a tributação do consumo chega a 40%, enquanto que nos países desenvolvidos pode variar de 10% a 20%. A tributação da renda chega a 40 ou 50% em países bem desenvolvidos, mas no Brasil chega apenas a 27,5% na pessoa física e 34% na pessoa jurídica. A tributação das transferências de riqueza chegam a 40% em países desenvolvidos, como os países do Reino Unido, mas é, em regra, 4% no Brasil.

Para cada alteração nas alíquotas dos tributos, seria necessária uma profunda análise dos possíveis resultados sobre a economia, mas os dados brasileiros são, geralmente, pouco divulgados. Podemos, no momento, realizar apenas propostas mais genéricas com base na experiência dos países mais desenvolvidos.

Deste modo, não vemos gravidade em criar duas novas faixas do IRPF de modo a tributar mais os 5% mais ricos do país e o 1% mais rico. Por exemplo, poderia ser criada uma nova faixa de 32,5% para aqueles que ganham mais de R$ 15 mil e uma faixa de R$ 37,5% para aqueles que ganham mais de R$ 30 mil. A alíquota do IR sobre o ganho de capital poderia ser aumentada e se tornar progressiva, pois ela é uma alíquota fixa de 15% nos dias de hoje. O ITCMD, por sua vez, podia chegar a uma alíquota média de 10%, inicialmente, pensando-se em mais alguns aumentos no futuro, se fosse o caso.

Todas essas mudanças viriam em troca da redução drástica ou, o que seria melhor, da extinção de tributos como PIS, COFINS, IPI e ICMS, que, no melhor dos cenários, deveriam ser reunidos em único tributo federal, como acontece em vários países da Europa, e depois a sua arrecadação seria distribuída para os estados, eliminando-se, assim, complexidade, guerras fiscais e dezenas de outros problemas.  

Não é difícil perceber que seguimos a contramão dos países desenvolvidos e, talvez por isso, o nosso país seja um dos mais desiguais e um dos que menos crescem produtivamente. Os caminhos tributários para modificar esse cenário podem ser vários e complexos, mas há um conhecimento básico construído ao longo das décadas pelas experiências dos países desenvolvidos e pelas construções teóricas realizadas sobre elas.

Não conseguimos compreender porque os políticos brasileiros não iniciam uma trajetória em direção a essas experiências e estudos, mas, é claro, sempre considerando as peculiaridades do Brasil. Parece-nos que há um misto de falta de interesse com falta de conhecimento que nos levam a ter um dos piores sistemas tributários do mundo inteiro.

Enfim, a nossa conclusão é de que o IGF pode ser um imposto interessante para o Brasil em outro momento. Deve haver longa análise sobre ele, primeiramente, e exame da experiência de muitos outros países na tributação sobre o estoque de riqueza. É preciso resolver problemas muito mais elementares e fundamentais no sistema tributário brasileiro, dentre os quais a busca da sua sintetização, levando-nos à conclusão de que a criação de um novo tributo não deve ser a medida mais adequada no momento.

Para atingir o essencial objetivo de tornar o sistema como um todo efetivamente progressivo, há outros meios menos custosos do que a criação do IGF. No momento atual, criar esse tributo nos parece ser uma medida exclusivamente de desespero para equilibrar as contas, e não necessariamente de fazer uma maior redistribuição de riqueza no país.

Não é possível, no entanto, tratar com profundidade de um tema complexo como esse em um breve texto. Deixam-nos intrigados os textos brasileiros de poucas páginas, que não recorrem a trabalhos sobre Optimal Taxation Theory e que descem pouco em detalhes socioeconômicos, pretenderem analisar um tema com a complexidade do IGF. Ele precisa ser examinado em inter-relação com todos os demais tributos do sistema brasileiro, sobretudo com o ITCMD e com a tributação de retornos sobre as economias (savings), considerando, no mínimo, a forma como é feito o gasto da arrecadação, além do momento político, econômico e social do país.


[1] Um wealth tax pode ser desenhado de infinitas formas. Deste modo, deve-se ter cuidado com todo tipo de consideração genérica em seu favor ou contra ele. O IGF brasileiro é apenas uma previsão abstrata num texto constitucional que indica a possibilidade de instituição de um tributo sobre grandes riquezas, ou seja, um weath tax voltado para tributar os mais ricos, porém, mesmo assim, esse tributo poderia considerar inúmeras bases de cálculo e alíquotas diferentes. Em termos de Optimal Taxation Theory, nada pode ser genérico e superficial.

[2] “Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:

VII – grandes fortunas, nos termos de lei complementar”.

[3] “Taxation of wealth is a topic that excites strong passions. Some view it as the most direct means of effecting redistribution and key to achieving equality of opportunity. Others see it as the unjustified confiscation of private property by the state. Given these opposing viewpoints, it is not surprising that this is an area of taxation where international practice differs dramatically. Most OECD countries have taxes on income, spending, corporate profits, and so on, with recognizably similar goals. Practice with taxes on wealth varies widely. Some countries levy taxes directly upon wealth holdings, while others only tax transfers of wealth. There are some countries that do not tax wealth at all” (MIRRLEES, James et alli. Tax by design. Disponível em: <http://www.ifs.org.uk/docs/taxbydesign.pdf>. Acesso em: 27. fev. 2015, p. 347).

[4] “In this chapter, we focus specifically on the taxation of wealth transfers. Levying a tax on the stock of wealth is not appealing. To limit avoidance and distortions to the way that wealth is held, as well as for reasons of fairness, the base for such a tax would have to be as comprehensive a measure of wealth as possible. But many forms of wealth are difficult or impractical to value, from personal effects and durable goods to future pension rights—not to mention ‘human capital’. These are very serious practical difficulties. And where attempts have been made to levy a tax on a measure of current wealth—in France, Greece, Norway, and Switzerland, for example—practical experience has not been encouraging” (MIRRLEES, James et alli. Tax by design. Disponível em: <http://www.ifs.org.uk/docs/taxbydesign.pdf>. Acesso em: 27. fev. 2015, p. 347).

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