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IVA único e federal deveria substituir a tributação indireta no país

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25 de março de 2015, 8h06

Spacca
Nas duas últimas semanas, tive o prazer de participar de dois eventos em que, coincidentemente,  fui instado a abordar temas distintos, mas complementares, sobre matéria tributária. O primeiro deles foi a aula que proferi, a convite dos eminentes professores Sacha Calmon e Valter Lobato, no ciclo de palestras introdutórias do curso de especialização em Direito Tributário da Faculdade Milton Campos, em que abordei o tema “O Sistema Tributário Nacional e suas Complexidades”. O segundo foi o debate de que participei na Fundação Getulio Vargas sobre reforma tributária, juntamente com os economistas Fernando Rezende (FGV/EBAPE), José Roberto Afonso (FGV/IBRE) e Luiz Villela (Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID), sob a coordenação de Joaquim Falcão e Melina Lukic.

São temas complementares porque, no primeiro, verificaram-se as incoerências e inconsistências que caracterizam o Sistema Tributário Brasileiro, se é que podemos dizer que temos um; e, no segundo, debateram-se os meios que, pelo menos em tese, eliminariam ou diminuiriam aquelas anomalias.

Vamos, primeiramente, às distorções que caracterizam o mundo tributário em que vivemos.

Foi em 1965, com a Emenda Constitucional 18 (à Constituição Federal então vigente, de 1946), que, pela primeira vez, instituiu-se um conjunto de normas constitucionais cuja função era a de sistematizar, nesse nível legislativo, os princípios básicos que regeriam as relações jurídicas entre o Estado e os contribuintes, no que concerne à arrecadação de tributos no país. Indiscutivelmente, foi um grande avanço, principalmente tendo em vista a ausência de sistematização que caracterizava o regime jurídico tributário anterior. Mas, nele, manteve-se formato de tributação indireta quase única no mundo, que era, e ainda se mantém, dividida entre os três entes políticos tributantes que compõem a federação: à União, coube o IPI; aos estados, o então ICM (atual ICMS); e aos municípios, o ISS.  Posteriormente, essa tributação indireta foi ainda ampliada para também abranger, entre outras, as contribuições para o PIS e Cofins.  Essa ampliação faz com que chegue ao número de cinco os principais[1] tributos indiretos no país, enquanto que, na imensa maioria das demais nações, essa tributação está resumida à incidência de um único IVA federal.

Essa diversidade de tributos contribui em muito para o agravamento dos principais problemas que demonstram a falência do Sistema Tributário Nacional: carga tributária elevada e crescente (que faz com que mais de 1/3 do ano de trabalho do contribuinte brasileiro seja dedicado exclusivamente ao pagamento de tributos), complexidade e onerosidade impostas pela legislação vigente, ambiente de insegurança jurídica, conflitos de competência, guerra fiscal, entre outros.

De fato, de acordo com o Instituto Brasileiro de Pesquisas Tributárias (IBPT), desde a data em que foi editada a Constituição Federal de 1988 até outubro de 2013, foram editadas 309.147 normas que regulam matéria tributária nas três esferas de tributação (29.939 federais, 93.062 estaduais e 186.146 municipais).  Isso equivale a 31 novas normas tributárias por dia, ou a 1,29 novas normas por hora; se impressas em papel A4 e letra tipo Arial 12, e postas de forma enfileirada, obteríamos uma longa lista de 5,9 quilômetros de regras fiscais. Afinal, além das regras relativas à incidência dos tributos federais, há, ainda, as regras referentes à incidência de tributos estaduais em 27 unidades da federação, e as relativas aos tributos instituídos pelos municípios, que já somam 5.564.

Tamanho número de normas, aliado à pouca clareza, inexatidão e complexidade das regras por elas veiculadas, faz com que, segundo aquele instituto, sejam gastos R$ 45 bilhões por ano para manter pessoal, sistemas e equipamentos para o acompanhamento das modificações dessa legislação.

E também coloca o país em um nada honroso, para não dizer vergonhoso, primeiro lugar na competição relativa ao número de horas gastas por contribuintes para o cumprimento de obrigações tributárias principais e acessórias.  Estudos da PWC e do Banco Mundial põem o Brasil no pódio dessa disputa, com 2,6 mil horas despendidas no exercício dessas atividades, sendo que a Nigéria, que ocupa o segundo lugar nesse pódio, apresenta número bem inferior à metade daquele alcançado no Brasil. De fato, os contribuintes nigerianos gastam 956 horas no cumprimento daquelas obrigações, seguidos dos argentinos (com 405 horas), mexicanos (com 334 horas), indianos (com 243 horas) e os suíços (com 63 horas).

Mas, se o dispêndio de todas aquelas horas, que poderiam ser dedicadas a atividades efetivamente produtivas, pelo menos conferisse ao contribuinte o conforto e a certeza de que as obrigações tributárias estariam sendo cumpridas de forma adequada aos mandamentos da legislação aplicável, seria muito menos mal.

Mas, não é o que ocorre.  Pelo contrário, o cenário em que se dão as relações jurídicas entre o fisco e os contribuintes é de extrema insegurança jurídica, e há algumas razões para isso.

A mais importante é a decorrente do fato de que a atribuição de competência para a instituição dos vários tributos que compõem a tributação indireta no Brasil (IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins) às três esferas de tributação (federal, estadual e municipal), aliada à má elaboração e complexidade das normas que regem essas incidências, faz com que ocorram diversas situações de conflito de competência entre os entes políticos tributantes, nem sempre resolvidas a contento por lei complementar (que é a norma constitucionalmente eleita para exercer esse papel), ou pela jurisprudência.

Houve vezes, aliás, em que a jurisprudência acabou, mesmo, por agravar esse conflito, como ocorreu na discussão relativa à incidência do ICMS e/ou ISS nas situações em que houvesse fornecimento de mercadorias juntamente com a prestação de serviços, em que, apesar de haver regras claras e objetivas instituídas por lei complementar para dirimir esse conflito, a jurisprudência o solucionou por meio do princípio da preponderância, cuja aplicação é pouco clara e subjetiva. O mesmo ocorreu na discussão relativa ao município competente para a cobrança do ISS nas situações em que o estabelecimento prestador estivesse localizado em um município e a prestação do serviço (fato gerador) ocorresse em outro. Nesse caso, apesar da clara regra estipulada em lei complementar de que o município competente seria aquele primeiro, em que localizado o estabelecimento prestador, a jurisprudência que prevaleceu por anos sobre a matéria foi no sentido de que competente, por força da discutível aplicação do princípio constitucional implícito da territorialidade, seria o município em que ocorresse o fato gerador.

Houve, ainda, a discussão já por mim abordada nesta coluna relativa à possibilidade de incidência do ISS na industrialização por encomenda, que é atividade histórica, sistemática e principiologicamente atribuída à competência federal, por meio do IPI.  Conforme procurei demonstrar naquela ocasião, a alteração promovida pela Lei Complementar 116/03 na redação da lista de serviços tributados pelo ISS fez com que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça fosse no sentido de que essas atividades poderiam ser tributadas pelo imposto municipal.  O Supremo Tribunal Federal entendeu inconstitucional essa incidência, mas o STJ, ainda assim, continua a decidir pela sua possibilidade.

Aliás, abrindo-se um parênteses, diga-se que o posicionamento em sentidos opostos por parte de ambos os tribunais (STF e STJ) relativamente a uma mesma matéria tributária leva, por vezes,  o contribuinte a situação de absoluta perplexidade.  Foi o que ocorreu, por exemplo, com a discussão referente à aplicação da regra de isenção da Cofins instituída pela LC 70/91 às sociedades prestadoras de serviços regulamentados. O STJ sumulou o entendimento de que tais serviços estariam isentos dessa contribuição (Súmula 276/08), mas, o STF, sem modular efeitos, entendeu que tal isenção teria sido revogada pela Lei 9.430/96 (Res 377.457 e 381.964), o que expôs os contribuintes que adotaram comportamento que se identificava com jurisprudência sumulada por tribunal superior ao risco de serem autuados por débitos relativos aos cinco anos anteriores.

Maior perplexidade, ainda, é causada pela insistência da administração tributária em autuar contribuintes pelo não recolhimento de tributos cuja incidência foi considerada ilegal/inconstitucionais por jurisprudência pacífica e, até mesmo, sumulada pelos nossos tribunais superiores, como ocorre nas situações em que lançamentos são efetuados pelo não recolhimento de ICMS nas transferências de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular, tributação essa que, nos termos da Súmula 166/96 do STJ, não é devida.

Esse comportamento configura excesso de exação, por estarem as autoridades cobrando tributo que sabem indevidos, e, como tal, deve ser punido. Da mesma forma, há que se estabelecer, como regra geral, que os tribunais administrativos devam obrigatoriamente adotar as conclusões alcançadas por decisões de mérito proferidas pelo STF e STJ, na sistemática de repercussão geral e recursos repetitivos.  Essa regra já foi adotada pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e deve ser seguida por todos os demais tribunais administrativos do país, estaduais e municipais. Tudo em prol de maior segurança jurídica e da otimização da utilização dos órgãos julgadores, judiciais e administrativos.

Fechando o parênteses, outro aspecto que demonstra a fragilidade do modelo de tributação indireta adotada pelo nosso sistema tributário nacional é a guerra fiscal, que se dá em nível estadual e municipal, por meio da criação de incentivos fiscais no âmbito do ICMS e do ISS com o objetivo de atrair novos investimentos privados para os respectivos territórios.

As desigualdades regionais no Brasil são flagrantes. Mais de 50% do PIB brasileiro (52,8%, para ser mais preciso) estão concentrados em apenas 3 das 27 unidades da federação (São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais).  No âmbito municipal, essa concentração é, proporcionalmente, ainda maior.  Dos 5.564 municípios, apenas 13 municípios têm participação equivalente a 31% do PIB brasileiro (apenas São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília representam 20% desse total).

Tais desigualdades socioeconômicas combinadas com a inexistência de infraestrutura apropriada nas regiões menos favorecidas propiciaram a instituição indiscriminada de benefícios fiscais ilegais.

Como tive a oportunidade de demonstrar nesta coluna, as tentativas de solução desse problema no âmbito estadual passaram pela edição da Lei Complementar 24/75 (que foi reiteradamente desrespeitada pelas diversas unidades da federação); por farta jurisprudência do STF contrária aos benefícios fiscais ilegalmente criados (inclusive, com a recentíssima decisão proferida no julgamento do ADIN 4.481, em que, pela primeira vez, modularam-se os efeitos da declaração de inconstitucionalidade da norma instituidora do respectivo benefício); pela intenção do mesmo tribunal de instituir súmula vinculante que regule a matéria; pela criação pelo Senado Federal de alíquotas reduzidas nas operações interestaduais com bens importados; pela edição pelo Confaz do Convênio ICMS 70/14, que não produziu qualquer efeito prático, além de demonstrar, em tese, quais são as intenções dos estados dele signatários no que concerne principalmente à forma como seriam concedidas remissão e anistia relativamente aos incentivos irregularmente criados.

No âmbito municipal, tratou-se da questão por meio de alterações no texto da Constituição Federal para determinar-se, em primeiro lugar, que lei complementar deveria fixar as alíquotas máximas e mínimas do ISS, bem como dispor sobre a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais seriam concedidos e revogados (Emenda Constitucional 3/93); e, em segundo lugar, que, enquanto essa lei complementar não fosse editada, a alíquota mínima do imposto seria de 2%, não sendo admitida a concessão de isenções, incentivos e benefícios fiscais, de que resultasse, direta ou indiretamente, alíquota inferior à acima referida (EC 37/02).

As regras acima, sejam as dirigidas aos estados sejam as aplicáveis aos municípios, não têm se mostrado suficientes para evitar os efeitos maléficos da guerra fiscal, e isso se deve principalmente ao fato de que efetivamente interessa a algumas das unidades federativas a possibilidade de criação de benefícios fiscais de forma unilateral, já que essa é, em muitos dos casos, a única forma de atrair novos investimentos.

Mas, que alternativa seria, então, decisiva na solução dos problemas relacionados à tributação indireta no Brasil, como aqueles abordados nesta coluna? O que poderia ser feito para evitar a complexidade e a onerosidade decorrente da multiplicidade de normas que atualmente regulam a incidência do IPI, ICMS, ISS, PIS e Cofins? Que medida poderia ser adotada para evitar, ou, pelo menos, diminuir sensivelmente, os conflitos de competência  entre as diversas unidades da federação? O que poderia ser feito para extinguir o problema da guerra fiscal no Brasil? Que medida nos colocaria alinhados com a sistemática de tributação vigente na maior parte dos países com que nos relacionamos.

A resposta é a substituição de todos esses tributos indiretos por um só, de competência federal: o Imposto sobre Valor Agregado (IVA).

Nos debates de que participei sobre essa matéria, já ouvi algumas vezes ser dito que que essa alteração é politicamente inviável porque nem os estados nem os municípios estariam dispostos a aceitar mudanças estruturais tributárias que gerassem como consequência a necessidade de que eles passassem a sobreviver de meros repasses financeiros feitos pela União Federal.

Mas, não é isso que proponho. A minha sugestão é a de que a competência tributária propriamente dita (ou seja, o poder jurídico de instituição desses tributos indiretos) seja transferida à União, mas que seja mantida a repartição da respectiva receita entre os entes da federação, como atualmente ocorre com os valores recolhidos pela sistemática do Simples Nacional, que, como todos sabem, são repassados aos estados e municípios pela própria rede bancaria responsável por receber os respectivos pagamentos, tudo nos termos do artigo 146, parágrafo único, inciso III, da Constituição Federal. Dessa forma, não haverá que se falar em estarem os estados e os municípios em qualquer situação de fragilidade ou dependência da União Federal no que concerne ao repasse dos valores que lhes sejam devidos.

Com o IVA federal, teremos uma só legislação; um só regulamento; um só tribunal administrativo para o julgamento dos lançamentos a ele relativos; teremos a eliminação dos atuais conflitos de competência, redução das controvérsias sobre não cumulatividade e a extinção da própria guerra fiscal. Isso, para não falar da solução que seria dada a problemas relacionados com a tributação das operações interestaduais, bem como com a utilização e repasse a terceiros de créditos do imposto que se mantenham em decorrência de exportação (atualmente, os estados se recusam a facilitar essa transferência porque tais créditos, na maioria das vezes, referem-se a ICMS recolhido a estados diversos).  

Mas, para que isso ocorra e que, consequentemente, o Brasil esteja alinhado com outros 160 países, terá que haver vontade política.


[1] De fato, há outros tributos que também têm essa natureza. É o caso, por exemplo, da Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB), instituída de forma obrigatória pela Lei 12.546/11, para determinados setores econômicos.

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