Gasto federal

Regime previsto na EC 86/2015 deve ser piso e não o teto de gasto em saúde

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24 de março de 2015, 8h54

Não obstante a conquista de um novo piso para o gasto mínimo federal em saúde com a promulgação da Emenda Constitucional 86, de 17 de março de 2015, se verifica um justificado sentimento de perda entre os que defendem histórica e consistentemente a máxima eficácia e efetividade do direito à saúde no Brasil, tal como estabelecido pela Constituição Federal de 1988 (artigo 5º, parágrafo 1º, combinado com artigo 6º e artigo 196 e subsequentes) e pelos tratados internacionais de direitos humanos, com destaque para o Pacto Internacional de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, que estabelece um dever de progressividade na realização, pelos Estados signatários, dos direitos consagrados no Pacto, incluindo o direito humano à saúde.

A aludida Emenda é oriunda da PEC 358/2013, também designada de “PEC do Orçamento Impositivo”, o que, de certo modo, auxiliou a impedir que fosse enfrentada, com seriedade e densidade, a raiz do subfinanciamento crônico[1] da saúde pública brasileira.

Para além do complexo debate sobre as relações entre os Poderes Legislativo e Executivo dentro dos processos de elaboração, execução e controle do Orçamento Geral da União, fato é que a Emenda do Orçamento Impositivo esvaziou, direta ou indiretamente, o escopo da iniciativa popular que lastreou o Movimento Saúde +10[2], o qual consistentemente questionava o regressivo critério de gasto mínimo federal no setor (mera correção do gasto do ano anterior pela variação nominal do PIB).

A diferença entre a Emenda Constitucional (15% da receita corrente líquida federal, piso esse a ser alcançado de forma escalonada ao longo dos próximos 5 anos) e o citado projeto de iniciativa popular (10% da receita corrente bruta da União) não reside apenas nos porcentuais e nas bases de cálculo do quanto a União deveria ser chamada a verter em favor das ações e serviços públicos de saúde.

Além da redução drástica da equação[3] de financiamento, o novo arranjo constitucional inscrito no artigo 198, parágrafos 2º e 3º, incide fundamentalmente no horizonte de progressividade ou estagnação que se está a fixar para o avanço do SUS em nosso país. Isso porque o artigo 3º da EC 86 determina que até mesmo os recursos oriundos da exploração do petróleo e gás natural sejam contabilizados como gasto mínimo da União, ao invés de operarem como acréscimos ao mesmo.

Trata-se de uma sutil, mas muito prejudicial reversão do regime[4] conquistado após as manifestações de junho de 2013, segundo o qual seria destinado à saúde pública, em acréscimo ao patamar mínimo constitucional, o montante de 25% das receitas oriundas da exploração do pré-sal.

Hoje, ao invés de celebrarmos a vinda da EC 86/2015, estamos a quantificar perdas[5], ademais de imprimir um ritmo menor aos avanços na conquista de novas fontes de recursos federais para o SUS, tal como implicado pela troca de critérios ora levada a efeito.

Nesse contexto, importa frisar que a vulnerabilidade fiscal dos direitos sociais, e, em especial, do direito à saúde, tem sido um óbice concreto à sua plena efetividade desde o raiar da Constituição de 1988, resultado de um conjunto de medidas e omissões que ora apenas tendem a se agravar.

Não se trata, portanto, de um cenário atrelado a determinado ciclo de governo, mas de um claro conflito distributivo entre direitos sociais e política econômica que segue fora do juízo de conformidade constitucional, por estar, em maior ou menor medida, resguardado pela falta de limites para as dívidas consolidada e mobiliária federais (a despeito do prazo fixado pelo artigo 31 da LRF e dos comandos dos artigos 48, inciso XIV e 52, inciso VI da CR/1988), bem como por ser encoberto pela tergiversadora desvinculação de receitas da União – DRU, mantida há 21 anos por meio de norma excepcional e transitória no ADCT, que vem sendo prorrogada por meio de 6 (seis!) emendas sucessivas[6]. Que a própria utilização sucessiva de normas constitucionais transitórias para tal finalidade por si só já reclamaria uma análise do ponto de vista de sua legitimidade constitucional aqui não será avançado, mas representa um desafio a ser enfrentado.

Enquanto não discutirmos o custeio dos direitos sociais à luz da DRU[7] e do custo do serviço da dívida pública federal[8], prosseguiremos, em face de respostas pontuais e casuísticas e não devidamente analisadas e pactuadas, para um desarranjo sistêmico, cujo reflexo mais recente tem assumido a feição de volumosas ações judiciais na defesa do direito à saúde.

É preciso, pois, contextualizar a nova normativa à luz da histórica regressividade proporcional do gasto federal em saúde, a qual pode ser numérica e estatisticamente aferida à luz de qualquer dos seguintes quesitos de análise:

  1. participação relativa da União no volume total de recursos vertidos pelo Poder Público ao SUS (caiu de 59,8% em 2000 para 44,7% em 2011, segundo estudo do IPEA[9]);
  2. peso proporcional do gasto da União em saúde em face da sua própria receita global de 8% para 6,9% nos últimos 11 anos[10];
  3. peso proporcional do gasto da União em saúde em face do total de recursos aplicados no Orçamento da Seguridade Social (OSS), o que corresponde ao critério de proporcionalidade estabelecido no art. 55 do ADCT (conforme noticia a Associação Nacional do Ministério Público de Defesa da Saúde – AMPASA [11]).

Em face desse horizonte é que estamos a firmar a perspectiva de que o novo regime trazido pela EC 86/2015 deve ser lido em nosso ordenamento constitucional como piso que admite absorção de novos acréscimos, mas não como teto[12] do gasto federal em saúde, tal como vinha ocorrendo com a regra fixada a partir da EC 29/2000.

Isso se impõe para que não voltemos a conviver com o cenário trágico de que, a despeito de haver dotação autorizada nas leis orçamentárias da União, o governo federal raramente gastava acima do piso em saúde, para não majorá-lo no ano seguinte[13]. O próprio Tribunal de Contas da União já havia apontado tal distorção nos autos do TC 032.624/2013-1 (R$20,4 bilhões não gastos de 2008 a 2013, a despeito de previstos).

Não é demasiado reiterar aqui que essa não é uma opção fiscal apenas do atual ciclo de gestão. Muito antes pelo contrário, a história revela uma trajetória de vulnerabilidade fiscal do direito à saúde durante o próprio processo de aprovação da EC 29/2000, durante a vigência atribulada da CPMF e mesmo ao longo da consolidação do SUS no pós-1988.

Precisamente porque se trata de problema longevo e sistêmico e porque já chegamos a quase três décadas de fixação do direito à saúde como direito fundamental do cidadão e dever constitucional inconteste do Estado brasileiro (o que tem dado causa a uma intensiva demanda social, inclusive em sede judicial), não podemos mais nos contentar apenas em contabilizar perdas e retrocessos no custeio constitucionalmente adequado das ações e serviços públicos de saúde.

Ora, eis o conjunto de razões que nos levam necessariamente a debater a necessidade de revisitar tanto o princípio da vedação de retrocesso, quanto as consequências do dever jurídico-constitucional de proteção e promoção da saúde. Nossa proposta, em face da EC 86/2015 e de todo o arcabouço jurídico que dá sustento ao dever estatal de assegurar um sistema único de saúde universal e integral, reclama que toda e qualquer ação ou omissão que estabeleça um patamar de proteção efetiva da saúde situado aquém da garantia de um mínimo existencial implique censura com base na proibição de proteção insuficiente. Além disso, tendo em conta o dever de progressividade na matéria, faz sentido também seja considerado retrocesso vedado constitucionalmente, além da extinção do arranjo protetivo do direito, a estagnação imotivada, bem como a interpretação restritiva que retire a possibilidade fática e jurídica de o direito fundamental à saúde ser realizado em caráter progressivo.

Eis o debate que necessariamente haveremos de travar quando, dentre outros aspectos, estivermos diante de quaisquer tentativas de prorrogação da DRU para além da sua vigência estipulada até 31/12/2015 pela EC 68/2011: afinal, quanto nos custará para assegurar a possibilidade de fonte de custeio progressivo do SUS manter a desvinculação de 20% dos recursos da seguridade social?

Assim, fica, desde já, a inquietação diante de um evidente retrocesso em matéria fiscal, no sentido de virmos a ter, em 2016, um “piso” de 13,2% da receita corrente líquida da União, que é histórica e proporcionalmente inferior aos 14% da RCL federal que eram gastos em 2000, quando promulgada a Emenda nº 29.

O que se está a descortinar, na quadra atual e de modo cada vez mais evidente, é a ocorrência de uma progressiva estagnação no que diz com o gasto federal em saúde pública, de modo a desnudar — ainda mais com o novo regramento introduzido pela Emenda 86/2015 — que o que deveria ser o piso em verdade sempre funcionou primordialmente como teto. Que o direito fundamental à saúde merece mais é algo que nos parece evidente e está na hora de abrirmos os olhos para tal fenômeno.


[1] Tal problema é alvo do Inquérito Civil Público nº 1.34.001.003510/2014-07 instaurado pela Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão da PR-SP/MPF, conjuntamente com o Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo. Vale lembrar que, no âmbito desse Inquérito foi realizada, em 05/09/2014, audiência pública onde restou faticamente diagnosticado o subfinanciamento federal das ações e serviços públicos de saúde desde a EC 29/2000, como se pode ler a partir do seguinte endereço http://www.prsp.mpf.mp.br/prdc/sala-de-imprensa/noticias_prdc/08-09-14-audiencia-publica-debate-subfinanciamento-e-baixa-qualidade-de-atendimento-no-sus. Para assistir aos vídeos da audiência, recomenda-se acessar os endereços http://www.tvmpf.mpf.mp.br/videos/672 e http://www.tvmpf.mpf.mp.br/videos/675 )

[3] A conta poderia chegar, segundo uma estimativa aproximativa, a uma perda de R$200 bilhões nos próximos cinco anos, em desfavor do SUS, na troca feita pelo Legislativo em acordo com o Executivo.

[4] Como se lê na interpretação conjugada do art. 2º, § 3º com o art. 4º da Lei nº 12.858, de 9 de setembro de 2013.

[5] Interessante notar que o primeiro exercício financeiro após a promulgação da EC 86/2015 será 2016, quando a União aplicará 13,2% da receita corrente líquida, por força do art. 2º, inciso I da Emenda, mas, em 2000, quando foi editada a Emenda Constitucional nº 29, a União aplicava 14% da RCL federal. Temos aqui proporcionalmente mais um retrocesso histórico de 0,8% em face da receita corrente líquida da União.

[6] A saber, instituição pela Emenda Constitucional de Revisão nº 1/1994 e prorrogação por meio das Emendas Constitucionais n.º 10/1996, 17/1997, 27/2000, 42/2003, 56/2007 e 68/2011.

[7] Vale lembrar, por oportuno, que para o cumprimento do direito fundamental à educação (artigo 212, C.F.), já se corrigiu esta forma prejudicial de subfinanciamento, decorrente da DRU, na forma dos §§2º e 3º do art. 76 do ADCT, desde a EC 59/2009, o que evidencia que essa metodologia de desvinculação (originariamente “transitória”, mas que tem sido reeditada há 21 anos) também é equivocada para a saúde.

[8] Cujo expressivo montante somente seria evidenciado publicamente se a União adotasse como meta fiscal, para fins do art. 4º da LRF, o resultado nominal e não apenas o resultado primário das suas contas anuais.

[9] PIOLA, Sérgio; PAIVA, Andrea Barreto de; SÁ, Edvaldo Batista de; SERVO, Luciana Mendes Santos. Financiamento público da saúde: uma história à procura de rumo. Brasília: IPEA, julho de 2013. Texto para Discussão nº 1846, p. 14. Disponível no endereço http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_1846.pdf e acessado em 21/05/2014.

[10] Segundo notícia constante do endereço http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/09/1524589-saude-disputa-verbas-com-programas-sociais-e-perde-espaco-no-orcamento-da-uniao.shtml (acessado em 06/10/2014), a participação do gasto em saúde no total de receitas da União caiu de 8% para 6,9% nos últimos dez anos. Igual teor analítico pode ser lido em http://www1.folha.uol.com.br/infograficos/2014/09/117268-ainda-pede-socorro.shtml (acessado em 06/10/2014).

[12] Como a leitura do art. 2º da Emenda sugere tratar-se de um teto fiscal, ao invés de um piso de custeio do direito social à saúde. Senão vejamos que o escalonamento de porcentuais abaixo dos 15% da receita corrente líquida da União ao longo de 5 anos, não só permite que o Governo Federal promova um cumprimento dito “progressivo” de percentuais abaixo do mínimo inscrito no art. 198, §§2º e 3º da CR/1988, como também afirma que este é máximo, justamente por não poder ser atingido desde logo, no presente.

[13] Como se lê na notícia: http://politica.estadao.com.br/noticias/eleicoes,saude-deixou-de-usar-r-131-bilhoes-entre-2003-e-2014-afirma-cfm,1580977 (acesso em 10/12/2014).

Autores

  • É procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, associada à Associação do Ministério Público de Defesa da Saúde (AMPASA), Pós-Doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da FGV/RJ e doutora em Direito Administrativo pela UFMG.

  • é professor Titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUCRS. Juiz de Direito no RS e Professor da Escola Superior da Magistratura do RS (AJURIS).

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