Direito do autor

O que é, é! O que não é, não é! O que é, não pode ser o que não é!

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20 de março de 2015, 6h52

Tenho defendido que a originalidade deve receber a sua caracterização como uma das condições de possibilidade do direito de autor[1]. Há outras condições: a criatividade e a exteriorização. Há quem as nomeie por requisitos[2], mas poderiam também ser denominadas pressupostos ou fundamentos. Entendo que se trata de condição de possibilidade pois empresto esta identidade mais própria da filosofia ao ambiente autoralista. Sem originalidade, não se aplica o direito de autor. Este é meu entendimento, que obviamente não é inédito no sentido de exigir a anterioridade da originalidade, mas o é na nomenclatura utilizada. Até onde sei, deixo claro. Pretendo evitar o plágio mesmo inconsciente. Se descobrir posteriormente um uso que lhe tenha sido anterior, indicarei. Em respeito à comunidade científica da qual faço parte e, evidentemente, aos meus leitores.

Portanto, previamente se pode concluir que uma obra artística ou científica que não contenha um mínimo de originalidade não pode sequer ser protegida por direito de autor. Pode, eventualmente, ser considerada um resultado obreiro, no sentido do esforço para a sua “construção” ou composição, mas não “adquire” ou “alcança” a sua principal condição de possibilidade. Ou seja, para os olhos do direito de autor, uma obra “não original” não merece a consideração como obra protegível! Nega-se-lhe a entrada nos céus em que estaria protegida: não poderá ingressar no universo protegível do domínio das artes, da cultura e das ciências!

Daí que a transformação de obra ou concepções anteriores em algo original impõe os limites de quanto esta nova criação poderá fazer uso de (ou será moldada por) outras previamente concebidas.

A originalidade nem sempre é utilizada como expressão doutrinária para nomear o grau de diferenciação entre obras. Oliveira Ascensão, por exemplo, prefere utilizar a expressão novidade, caracterizando-a como novidade subjetiva:

“ (…) a tarefa da criação, sempre pessoal, implica que o contributo do espírito fique na obra criada. Nisto consiste a originalidade. Tarefas mecânicas, servis ou banais de conjugação de elementos não representam criação e neste sentido não apresentam originalidade.[3]

No meu entender, criatividade é a constatação da condição do sujeito que, por ser criador, é tautologicamente, criativo (todos somos potencialmente criativos!).

Fora das fronteiras do direito de autor, um “sujeito criativo” é aquele que traz novidades, inovações, contributos diferentes de outras obras (ou criações, genericamente) que lhes sejam anteriores. Fulano é tão criativo! Ocorre porém que, quem cria, é, desde já, criativo. Este sujeito merece a potencialidade da proteção autoral. Desde que — portanto, justifica-se a expressão condição de possibilidade — crie uma obra original. Traga um contributo original à sua área de criação. Não se trata de analisar o mérito da originalidade, porém. Basta que não seja uma cópia de obra que lhe é anterior.

A originalidade, portanto, é conceito altamente relativizável, pois o direito de autor protege a forma não anteriormente criada. Daí que esta falta de limitação fronteiriça cria uma espécie de “Curdistão do direito de autor”.

Isto significa também que, independentemente do acesso a obras previamente concebidas, o sujeito-criador pode e deve criar sem que faça uso das concepções de outros autores que lhe antecederam. É evidente que o direito de autor não permite uma exclusividade sobre as ideias, e, pelo contrário, permite que elas sejam livres para sua reformulação. Isto porém não significa que se possa (re)formular as mesmas ideias, travestidas de novas e, muitas vezes, sequer travestidas de novas, mas somente pelo fato de que, por não se constituírem em cópia expressa de partes de obras anteriores irão adquirir, com isto, uma espécie de “originalidade de segundo nível”. Isto é bastante relevante no universo científico e acadêmico. 

Tudo isto não significa dizer de modo algum que o direito de autor pode e deve ser considerado um opositor clássico do processo criativo livre, pois isto não é uma realidade alcançável como aferição sob a forma de verdade absoluta. Há circunstâncias em que o direito de autor é bastante limitador. Há outras que não. É verdade que a lei brasileira necessita de urgentes reformulações especialmente para que possa ser aumentado o escopo de permissão para novas criações e o pouco extenso rol dos limites do direito de autor (artigos 46, 47 e 48 da lei autoral — Lei 9610/98) impede muitas manifestações criativas. Por outro lado, se bem é verdade que o rol é pouco desenvolvido ou pouco eficaz, não é verdade que o direito de autor possa ser enquadrado como um “predador natural do processo de criação”, expressão que venho utilizando para (criticamente) explicar esta relação.

O acesso às obras não “produz” o (bom) criador. No caso do plágio, que é tema à parte e vem sendo destacado neste estudo, não se trata de falta de acesso, mas sim de acesso e desconsideração da originalidade primígena (ainda que de modo inconsciente).

Voltando, porém, à questão do acesso às obras, devo dizer que o craque de bola faz a jogada genial independentemente do passe que lhe dão. Não são todos craques, como também não são gênios todos os sujeitos-criadores. Neste mesmo contexto, não há violação da liberdade de expressão por não haver acesso a “conteúdos”[4]. Se assim o fosse, compositores populares não poderiam ter a capacidade de compor, como é o caso de Cartola e Nelson Sargento, pois ambos tiveram origem humilde.[5]

Liberdade de acesso à obra importa para o conceito de originalidade pois, em tese, poderia se formular uma concepção genérica (e isto vem ocorrendo nos corredores e salas de aula) de que quanto mais acesso à cultura, mais se forma um sujeito do ponto de vista do acúmulo de cultura (o que é uma verdade). Por outro lado, (e agora vem a parte que não é verdadeira) não se pode dizer que somente pela sua densa formação cultural que um sujeito seria capaz de criar algo inovador, original no sentido próprio da condição de possibilidade do direito de autor.

Sei que estou me repetindo, mas esta repetição serve para indicar que, como consequência, e como um outro lado da moeda, está a obrigação da indicação precisa de quem conduziu àquela criação, quando efetivamente identificável. Esta portanto, é a questão ética sobre o plágio. Se o sujeito-criador tem consciência de que recebeu densas e substantivas informações, dados, ideias e concepções de alguém que o antecedeu, nada mais justo e razoável de que indicar tal fato. Saliento, esta questão é, antes de tudo, ética.

Rachmaninoff, brilhante compositor que escreveu três primorosos concertos de piano entre muitas outras obras, não deixou de indicar a evidente homenagem e a sua (re)leitura das melodias de Paganini na sua Rapsódia sobre um tema de Paganini. Era um compositor genial e não deixaria de ser, mesmo que não houvesse admitido que desenvolvera estudos “sobre” a obra do compositor italiano que, diz a lenda, tocou violino na prisão até arrebentar cada uma das cordas do instrumento. Já Page e Plant vem amargando problemas com o eventual plágio da composição Taurus composição do grupo musical Spirit[6]. No Brasil, Roberto Carlos (Ag 503.774) e Raimundo Fagner (REsp 732.482), entre outros, já amargaram duras condenações. Também entre obras literárias há recentes indicações de possíveis plágios, como no caso do embate entre as obras A vida de Pi de Yann Martel e Max e os Felinos, de Moacir Scliar.

O tema do plágio, inevitavelmente, conduz também ao surgimento histórico do direito de autor, que se baseou em uma série de ideias de filósofos que, mesmo sem terem tratado do tema, foram artificialmente sendo indicados como “fundadores do direito de autor”. Entre eles estão Bentham, Mill, Locke, Fichte, Kant e Hegel.

Só para citar alguns, enquanto os utilitaristas divulgaram as teses posteriormente apropriadas pelos autoralistas (nome pomposo que usamos para nos nomear) que se deve buscar um princípio da maior felicidade[7], Locke, por sua vez, é sucessivamente (re)inventado como o proprietarista por excelência especialmente pelo capítulo 5 do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Como se Locke pudesse ter a si atribuída a condição do autoralista pelo simples fato de que retirar uma maçã do pé seria o suficiente para, metaforicamente, criar algo no mundo e transformar em algo perceptível pelos sentidos. O “retirador da maçã” teria direito a ser o seu proprietário pelo esforço na prática de tal ato.

Alguém portanto, que simplesmente retirasse a maçã do pé e a colocasse num outro local seria uma espécie de Locke-Duchamp? Ou o Duchamp-lockeanismo só se operaria se fosse num local “não esperado”? Ou, ainda, o Duchamp-lockeanismo não seria, na verdade uma bonita nomeação para o “mal e velho” plágio (repararam na brincadeira?).

A colocação da maçã em outro local que não o seu original já deveria atribuir um direito ao “recolocador”? Parece-me demasiado. Mas e pensar que o simples esforço de retirar a maçã da árvore seria suficiente para atribuir um direito de propriedade? Ainda mais distante se está do que se deveria filosoficamente compreender como ato criativo. Se assim o fosse, qualquer um que retirasse maçãs seria seu proprietário como qualquer um que retirasse uma obra de seu contexto seria seu autor. De modo evidente, portanto, reputo inaplicáveis as teses de que Locke poderia ser um ideólogo autoralista por uma metáfora simplista que, como se observa, depõe em verdade, contra o processo criativo. A justificativa filosófica para o direito de autor definitivamente não estava em Locke.

O problema é que, não obstante a sua condenação desde tempos antigos, o plágio é muitas vezes difícil de se identificar. Ideias banais ou que carecem de ineditismo não podem ser caracterizadas como plágio. A “maçã do pecado lockeano” pode ser ainda mais venenosa.

No meio acadêmico, inclusive, constantemente se assiste a discussões sobre o tema. Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro admitiu a existência (evidente, por sinal) de plágio quando o autor de um blog transcreveu partes do livro do verdadeiro autor sem nenhuma menção[8]. Não obstante a confusão entre direitos patrimoniais, direitos morais de autor e danos morais, ao menos o tribunal conseguiu observar o óbvio, que era a aplicação do artigo 108 da Lei 9.610/98:

Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade da seguinte forma […]

Trata-se do respeito ao direito de paternidade e de nomeação à autoria, espécies do gênero direitos morais ou pessoais de autor.

Ora, se não existe no direito brasileiro — diferente do que se pensa no senso comum — um número de parágrafos (em literatura) ou compassos mínimos (em música) para que se configure plágio — este fica submetido (alerta vermelho!) às discricionariedades judiciais. Fato que, portanto, merece observação atenta, pois se os juízes vem decidindo tão mal sobre assuntos que teoricamente teriam conhecimento pela sua presença maciça nos tribunais (direito processual, direito do consumidor, contratos etc.) imaginem no que se refere a temas como direito de autor.

O plágio é uma violação de direito de autor. É, porém, antes de tudo, uma violação ética. Apropriar-se de ideias alheias é suscetível de condenações de ordem moral. Trazem, além disso, um risco ao plagiador: a desconsideração social pela condição de que este não tem capacidade de criação e inovação. Na comunidade acadêmica traz um enorme desprestígio.

Recentemente, aqui mesmo na ConJur ocorreu incidente desta natureza quando um autor fez uso bastante acentuado de expressões e ideias cunhadas pelo também autor do site Lenio Streck, numa evidente falta de indicação das fontes primárias. O público reagiu imediatamente e o autor se desculpou (ver aqui). Se bem é verdade que tenha se desculpado pela utilização sem a devida fonte de expressões e ideias do sujeito-criador primígeno, também naquele momento se limitou a citar fontes primárias misturadas ao seu texto. No meu entender, mantém-se o perigo, ainda que em menor nível. A citação de ideias e expressões de terceiros quando também misturadas a seu próprio texto pode confundir leitores posteriores. Aliás, até a citação na modalidade autor-data também não é a das melhores preservadoras da originalidade das fontes por permitir promiscuidades de ideias e formas de expressão. Isto porque leitores novatos que não conhecem as obras primígenas podem se confundir.

Deixo claro que não sou “esquerdo-autoralistopata” nem “elite branca do direito autoral”. Sou um moderado. Nós, autoralistas moderados, perdoamos. Acho que podemos, e devemos — e sempre — citar a todos nós. Aqueles com os quais concordamos e com os quais discordamos. Sempre, obviamente, indicando as fontes das ideias inovadoras, originais e até das menos inovadoras.

O que é, é! O que não é, não é! O que é, não pode ser o que não é!

Ah, falando nisso, o título deste texto e esta parte final são homenagens aos Titãs.

Vai que…


[1] Tenho preferido utilizar a expressão direito de autor, mais sintética, admitindo que também os direitos conexos estão incluídos nas concepções filosóficas que atribuo.

[2] Alexandre Libório Dias Pereira irá indicar que os requisitos de proteção (para que seja aplicado o direito de autor) serão a exteriorização e a originalidade (Direitos de autor e liberdade de informação, Editora Almedina, Coimbra: 2008, p. 384.)

[3] José de Oliveira Ascensão, Direito Civil- Direito de Autor e Direitos Conexos, Coimbra Editora, Coimbra, 1a edição, Fevereiro de 2012 – Reimpressão, p. 99. 

[4] Detesto esta palavra, pois iguala este texto a notícias sobre as mulheres-fruta, mas sou quase obrigado a usá-la, atualmente, pois todas as obras criativas viraram produtos ou conteúdo nas mãos das (agora o golpe de misericórdia:) “indústrias criativas” neste momento abro a boca imitando o personagem Didi Mocó dizendo: – Eu vou me saicidá!.

[5] Esta ausência de lógica (na verdade um falseamento lógico) não teria limites, pois ao ser admitida impossibilitaria que Kant pudesse tratar de conceitos tão universais como foi a sua filosofia crítica como um todo, ou especificamente o imperativo categórico, pois, praticamente não tendo saído de Königsberg não seria capaz de alcançar um universalismo empírico suficiente para formular tais ideias. Obviamente, se constata ser pueril o argumento.

[7] A utilização da expressão Princípio da Maior Felicidade por Bentham ocorreu na edição em que incluiu nota de autor em 1822. (BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Abril Cultural. São Paulo, 2004, p. 03. (Coleção Os Pensadores).

[8] Apelação Cível 0116571-61.2014.8.19.0001.

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