Igualdade jurídica

Lei que cria feminicídio é "desastre técnico" e foge da lógica penal

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14 de março de 2015, 10h53

* Texto publicado originalmente neste sábado (14/3) em coluna da Folha de S.Paulo, no caderno Cotidiano, com o título “Assassínio de códigos”.

Homicídio é "matar alguém". A definição é perfeita.

Como prometeu no pronunciamento de domingo, a presidente Dilma sancionou lei que cria categoria própria de homicídio qualificado, punido com até 30 anos de reclusão: o assassínio de mulheres (feminicídio), por razões de gênero, elevado a crime hediondo.

Para o governo e para o Congresso, é agenda positiva em meio a um turbilhão de más notícias e desnorteio. Como tem aparência progressista, agrada aliados e inibe críticos.

Mas é um desastre técnico. Conspira contra o equilíbrio, a equidade e a lógica do Código Penal. Conservadores ou liberais, códigos deveriam ser estrategicamente reformados, não mutilados por alterações irracionais, desconexas.

A ineficácia foi percebida pelo editorial exato da Folha. O preconceito de jurados e juízes – o que ainda permite a impunidade do homicídio contra a mulher em redutos atrasados – não desaparece por toque de mágica. Vai se abrigar em jurisprudência reacionária formada em torno da aplicabilidade da própria norma. A redução de violência contra a mulher depende de outras políticas públicas.

A partir de agora, homem que matar mulher por razões de gênero (por envolver "violência doméstica", "menosprezo" e "discriminação") tem tratamento, em tese, mais drástico do que o dado à mulher que matar homem pelas mesmas razões. Sim, as duas hipóteses são previsíveis no horizonte humano, ainda que homens matem mais mulheres do que mulheres matam homens.

A lei aumenta a pena quando o delito contra a mulher se dá "nos três meses posteriores ao parto". Difícil compreender por que o crime seria mais grave do que o praticado após o quarto mês do nascimento.

Não faz sentido compartimentar o "alguém" do artigo 121 em razão da vulnerabilidade da vítima. Violentaram o princípio da universalidade do homicídio abrindo caminho para outras "demandas" semelhantes.

Matar homem não é menos grave do que matar mulher. Matar índio ou negro não é mais grave do que matar branco. Matar pobre não é mais grave do que matar rico. Matar criança não é mais grave do que matar adulto. Matar policial não é mais grave do que matar preso. E vice-versa.

No Brasil, a pena é maior (homicídio qualificado) em razão do motivo (fútil, torpe), do meio empregado (asfixia, tortura), dos modos de execução (traição, emboscada) ou do fim (ocultar outro crime, assegurar a impunidade). O crime por menosprezo de gênero (ou raça) não precisa ser particularizado.

Não é a primeira vez que valores "politicamente corretos" corrompem a igualdade jurídica. A pena de injúria é mais severa (três anos de prisão) quando envolve raça, cor, etnia, religião ou origem. E a orientação sexual? Ou a ofensa a homossexuais não merece agravamento?

O Código Penal abriga uma coleção de incongruências. Xingar um senador de 60 anos de "corrupto, ladrão" pode resultar em pena de um a seis meses, com um terço de aumento; para quem chamá-lo de "velho safado, gagá", a condenação pode alcançar três anos.

Dirão que as mexidas no Código Penal não têm importância diante das gigantescas dificuldades que o país atravessa na economia, na governança e no bem-estar. É que demagogia também atrapalha.

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