Liberdade de Expressão

Imprensa pode noticiar assuntos tratados em processos sob sigilo

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

11 de março de 2015, 8h39

Spacca
Alexandre Fidalgo [Spacca]"Pode-se definir democracia das maneiras mais diversas, mas não existe definição que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência do poder".

(Bobbio, Norberto. O Futuro da Democracia, p. 20/21)

É bastante comum o questionamento dos veículos de comunicação a respeito da possibilidade legal de se divulgarem fatos, cujos processos que os discutem tramitam em segredo de justiça.

Embora sigilo e segredo sejam comumente tratados como sinônimos, os vocábulos não se confundem. O primeiro é derivado do latim sigillum, que representa a ideia de algo sobre o qual recai um sinal, uma marca, que não pode ser revelada. Já o segredo, do latim secretum, passa a ideia de que determinado conhecimento não pode ser revelado. Assim, podemos interpretar que o secretum corresponde ao conteúdo da “carta” e o sigillum à maneira como alguém emitente garante a sua inviolabilidade. Entretanto, como dito, sigillum e secretum são tratados como sinônimos em nosso ordenamento.

Ainda que sumariamente para este espaço, a história dos atos em sigilo remete ao Egito Antigo, em que era sigiloso o momento das decisões dos julgadores, enquanto que a instrução e a proclamação das decisões eram públicas. Mas foi com a ascensão do Império Romano que o sigilo ganhou contornos do que mais se aproxima ao que temos hoje em nosso ordenamento. Com a concentração de poder nas mãos do Imperador, adotaram-se processos por escrito e as salas de audiências começaram a serem fechadas por uma cortina (velum).[1]

 O controle que o sistema criado dava ao Imperador e os atos em segredo de justiça permitiram abusos e corrupção, que cresciam na medida em que os atos continuavam encobertos pelo velum. Já no declínio do Império Romano, começa a prevalecer a publicidade dos atos do processo[2], permitindo certo controle dos atos oficiais pela sociedade.

A Constituição Federal de 1988 estabelece em seu artigo 5º, LX, que somente a lei poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. Percebe-se pelo texto constitucional que o legislador constituinte, inspirado pelos valores republicanos, cuja premissa é expor as coisas do Estado ao público, sequer utilizou o vocábulo sigilo ou segredo, preferindo utilizar restrição como exceção ao valor substancial da publicidade.

A publicidade, do latim publicus, de publicare, passa a ideia de expor ao público, e é considerada uma garantia fundamental de controle democrático, que, como leciona o professor Rogério Lauria Tucci, representa a garantia de que o procedimento observa a legalidade e permite à sociedade formar opinião.[3]

A leitura do texto constitucional, associada à ideia iluminista de que a publicidade permite à sociedade um controle e acompanhamento dos atos do processo, num claro e evidente valor republicano, já nos permite responder afirmativamente que não há “assunto” em sigilo, mas tão somente atos processuais em sigilo, exatamente para preservar intimidade ou interesse social que mereçam essa exceção, tratada pelo constituinte como restrição ao valor maior da publicidade.

A restrição, ao contrário de mitigar ou diminuir o valor da publicidade, na verdade a enaltece, indicando a preferência do Estado brasileiro pelos atos públicos.

Assim, se a imprensa teve acesso a informações que gozam de interesse público e que possuem um mínimo de veracidade, ainda que tais fatos estejam sendo discutidos em processo sob o instituto do sigilo, não nos parece haver qualquer impedimento de se publicar o “assunto” lá tratado.

Não se está aqui a defender a divulgação de atos do processo em sigilo, tais como atas, documentos, petições, despachos, decisões (para isso, há de se ponderar os valores fundamentais em aparente conflito) mas sim que o assunto pode ser objeto de material jornalístico, necessitando para isso se averiguar a existência de interesse público e verossimilhança dos fatos.

Não há, portanto, normativo constitucional ou infraconstitucional que impeça a divulgação de “assunto” de interesse público, ainda que decorrente de processo sigiloso.

Também há de se analisar a licitude do meio empregado pelos profissionais da imprensa, na medida em que a obtenção da informação jornalística por meios ilícitos é condenável. Nesse sentido, temos que a obtenção de informações mediante interceptação telefônica clandestina, invasão de domicílio, tortura, ameaça retiram a licitude da publicação.

Portanto, havendo interesse jornalístico, verossimilhança dos fatos e sendo legal o meio de obtenção das informações, qualquer tutela jurisdicional que proíba a divulgação de notícia mediante o argumento de que o assunto está sendo tratado em processo que tramita em segredo constitui, a nosso ver, uma ilegalidade, violando o normativo constitucional que prestigia a liberdade de expressão e à publicidade conferida à coisa pública.

Recentemente, tivemos alguns episódios cuja discussão pautava-se exatamente nesse equilíbrio de forças e princípios. Para citarmos apenas dois, lembramos do impedimento que a revista eletrônica Consultor Jurídico sofreu por veicular notícia jornalística a respeito de uma decisão que impedia a exibição de peça teatral inspirada no assassinato da menina Isabella Nardoni. Os autos em que a mãe da criança litigava com os autores da obra teatral tramitavam em segredo, tendo o juízo determinado, em razão da veiculação da notícia jornalística a respeito da existência do processo, que fosse retirado o material jornalístico sob o argumento de violação do sigilo decretado naqueles autos.

Outro caso recente teve como protagonista a revista IstoÉ, que havia publicado, em meados do ano de 2014, informações da delação premiada do ex-diretor da Petrobras, cujo depoimento apontava para o então governador, hoje ministro da Educação, Cid Gomes. O atual ministro da Educação resolveu ajuizar ação cautelar com pedido de recolhimento de toda a edição, sob o fundamento de que os autos em que houve a delação premiada estavam em sigilo, de modo que a publicação teria cometido uma ilegalidade ao falar sobre o assunto e divulgar o seu nome.

Nas duas situações, o Supremo Tribunal Federal (RCL 18566 / RCL 18638) garantiu a informação mesmo que reveladora de assunto cujo processo em que ele é discutido tramite em sigilo, podendo ser destacado a ponderação o ministro Roberto Barroso:

“Embora as informações em questão aparentemente estejam protegidas por segredo de justiça, não há elementos mínimos para concluir que a violação tenha partido dos profissionais da imprensa que receberam informações. Embora possa ter havido ato ilícito por parte de quem tenha eventualmente comprometido o sigilo de dados reservados, a solução constitucionalmente adequada não envolve proibir a divulgação da notícia (…).”

RCL 18.638 MC/CE, Rel. MIN. ROBERTO BARROSO

Caso entendêssemos que o sigilo nos autos do processo impede a publicação do assunto, como defendido nas ações referidas acima, bem como acolhido pelos juízos singulares, a tutela jurisdicional requisitada privaria a sociedade de tomar conhecimento de assunto que consulta o seu interesse, em evidente violação ao artigo 5º, XIV, da CF, bem como cercearia a imprensa de seu direito constitucional, de valor republicano e democrático, de publicar assunto de interesse público.

Como disse o ministro Teori Zavascki para levantar o sigilo do processo de investigação dos envolvidos na operação lava jato, é importante, até mesmo em atenção aos valores republicanos, que a sociedade brasileira tome conhecimento dos fatos relatados.

Ora, como exigir da sociedade uma reflexão crítica se defendermos que as cortinas (velum) permaneçam fechadas inclusive para os assuntos tratados em processo sigiloso?

Como ensina Norberto Bobbio, em sua obra O Futuro da Democracia: "Que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser conhecidos pelo povo soberano sempre foi considerado um dos eixos do regime democrático, definido como o governo direto do povo ou controlado pelo povo (e como poderia ser controlado se estivesse escondido?)"


[1] Conf. Almeida Jr., João Mendes de. O processo criminal brasileiro. 4ª ed. São Paulo, Rio de Janeiro: Forense, 1959

[2] Conf. Cruz e Tucci, José Rogério; Azevedo, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT. 1996

[3] Conf. Cruz e Tucci, José Rogério; Azevedo, Luiz Carlos. Lições de história do processo civil romano. São Paulo: RT. 1996

Autores

  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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