Liberdade de expressão

Contra a islamofobia: quem não é Charlie na França

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6 de março de 2015, 9h13

Após o atentado contra a revista Charlie Hebdo, escrevi um artigo neste espaço (Charges do Charlie Hebdo: liberdade de expressão x tolerância religiosa) no qual, ao tempo em que rejeitava o extremismo e a violência, esbocei uma crítica às caricaturas do jornal, afirmando que a liberdade de expressão teria limites frente ao sentimento religioso.

Alguns sustentam uma concepção mais absoluta da liberdade de expressão. Ela só poderia ser cerceada em caso de incitação mais direta à discriminação e à violência. Afirma-se, e não se pode negar, que intolerantes são os que reagem com armas ao crayon. O que questiono, e parece óbvio em outros campos, é se a tolerância e a necessidade de convivência não recomendariam limites até mesmo a uma liberdade tão fundamental; tolerar algo ou alguém é conviver com características que não nos agradam. Mais uma vez, pode-se retrucar: que os muçulmanos convivam melhor com as críticas e as caricaturas. Mas um aspecto que deve ser levado em conta nesse conflito de princípios é a essencialidade do sentimento religioso para o crente. Algumas vozes na França vêm se manifestando nesse sentido.

Thibaud Collin, professor de filosofia num colégio católico em Paris, em artigo publicado no Le Monde em 15 de janeiro criticou também as sátiras da Charlie e afirmou que “exigir que um muçulmano se torne um bom cidadão e adira aos valores de uma República cuja encarnação seria ‘Charlie’, é na prática excluí-lo da nação e atirá-lo nos braços dos islamistas que só estão esperando por isso.”

No mesmo dia, Rony Brauman, ex-presidente dos Médicos sem Fronteiras e professor de relações internacionais na Sciences Po em Paris, em artigo intitulado “O que há de não-Charlie em mim”, evita chamar de covardes os jornais ingleses que deixaram de reproduzir as caricaturas da Charlie após o atentado. Dizendo-se a favor do direito de blasfemar, Brauman teme, contudo, que a sátira seja mais ou menos permitida de acordo com seu alvo, lembrando que a Charlie Hebdo demitiu em 15 de julho de 2008 o cartunista Siné, acusado de antissemitismo por conta de uma crônica escrita no semanário alguns dias antes; Siné chegou a sofrer investigação pela Justiça francesa.

Também no Le Monde um coletivo de autores, envolvendo lideranças de imigrantes e a União judia francesa pela paz, publicou o artigo intitulado “Mais que nunca, é preciso combater a islamofobia”. Rejeitam o que chamam de escolhas binárias e propõem perguntar se existe uma relação entre a política levada a cabo pelos países ocidentais e o crescimento dos grupos extremistas e fanáticos, afirmando, como exemplo, que a Al-Qaeda não existia no Iraque em 2003 e não possuía base territorial, e que agora o Estado Islâmico controla parte do território do Iraque e da Síria. Lembram ainda que o drama dos palestinos alimenta a ideologia dos grupos mais extremistas, como admitiu o secretário de Estado americano John Kerry. Defendem uma política de conciliação com os muçulmanos franceses, inclusive se lhes assegurando direitos como o uso do véu islâmico pelas estudantes nas escolas públicas (em 15 de setembro de 2009, artigo meu publicado na Folha de São Paulo – Véu islâmico, laicidade e liberdade religiosa – criticava a proibição do véu islâmico na França).

Enfim, como dito, as coisas são mais complexas do que as escolhas binárias e deve-se refletir sobre a política ocidental em relação ao mundo islâmico e aos imigrantes muçulmanos. Senti-me obviamente confortado com os pontos de vista explicitados acima. E vai no mesmo sentido a declaração do Papa Francisco de que há limites para a liberdade de expressão, afirmando,  com sua jovial coloquialidade,  que ofender a religião de alguém é como xingar sua mãe.

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