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Guiné Equatorial é aqui quando os direitos dos contribuintes são desrespeitados

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4 de março de 2015, 8h05

“Não importa nada:
(…)
Ninguém, ninguém é cidadão,
(…)
Pense no Haiti,
reze pelo Haiti,
O Haiti é aqui,
O Haiti não é aqui.”
(Haiti/Caetano Veloso)

Quando foi anunciada a vitória da escola de samba Beija-Flor no Carnaval carioca, cujo enredo foi uma homenagem à Guiné Equatorial e o desfile financiado com recursos doados pela sanguinária ditadura da família Obiang, que comanda o país desde 1979 com mão-de-ferro, fiz uma associação de ideias com a canção “Haiti”, de 1993, uma contundente crítica social às brutais violações aos direitos humanos no Brasil.

A Guiné Equatorial é aqui quando um grupo de criminosos tomou de assalto a maior empresa do país para extrair dinheiro de seus cofres de forma sistemática ao longo de quase dez anos, com o beneplácito do acionista controlador — União Federal — que, através de seus representantes na Administração, foi, no mínimo, negligente na condução da empresa, violando os deveres e responsabilidades do controlador, em prejuízo da companhia, dos minoritários, credores e, principalmente, da sociedade brasileira que lhe entregou (à União) a responsabilidade pelo comando da empresa mais estratégica ao desenvolvimento da nação.

A Guiné Equatorial é aqui porque o pagamento de propinas para a obtenção de contratos com empresas estatais e sociedades de economia mista se tornou um custo recorrente, constante, sistemático, normal, usual e necessário, viciante como uma droga para um dependente químico.

A Guiné Equatorial é aqui quando um juiz federal se expõe desnecessariamente na mídia como justiceiro e comete o duplo disparate de guardar em sua residência e utilizar veículos aprendidos de um jurisdicionado, atentando contra os mais básicos preceitos éticos que devem pautar a atuação dos magistrados.

A Guiné Equatorial é aqui quando a presidente da República descumpre por quase um ano seu dever constitucional de indicar o nome de um cidadão para ocupar cargo vago de ministro do Supremo Tribunal Federal, desrespeitando o Poder Judiciário e causando gravíssimos prejuízos à prestação jurisdicional.

A Guiné Equatorial é aqui quando não se ouve do Itamaraty uma crítica sequer às prisões de oposicionistas na Venezuela, comandada por um ditador vestido de “bandeira-agasalho”, que rompeu com todas as cláusulas democráticas do Mercosul.

A Guiné Equatorial é aqui quando um ex-presidente irresponsável, sob o pretexto de defender a empresa que seu partido e aliados saquearam, incita o confronto em manifestações ditas populares, em um lamentável retrocesso civilizatório.

A Guiné Equatorial é aqui quando os contribuintes são chamados a pagar a conta dos descalabros cometidos pelo Poder Executivo federal, arcando com ainda maiores ônus tributários que, invariavelmente, vêm sob a forma de aumento de contribuições sociais, dado serem desprovidas de mais rigorosos controles constitucionais à efetivação da cobrança.[1]

A Guiné Equatorial é aqui quando o Poder Executivo desrespeita sistematicamente os tratados internacionais contra a dupla tributação celebrados pelo país, tomando medidas interpretativas (SCI COSIT n.º 18, de 8/10/2013 e IN SRF n.º 1.455/2014) exclusivamente voltadas para inviabilizar a efetiva aplicação do regime do artigo VII de referidos tratados[2] que proíbe terminantemente a tributação de lucros de empresas estrangeiras (chamados eufemisticamente de “parcelas do ajuste do valor do investimento” no art. 77 e § único da Lei n.º 12.973/2014) e do pagamento de serviços sem transferência de tecnologia (quase todos os serviços são definidos pela nova IN como “técnicos”), muito embora o Superior Tribunal de Justiça já tenha se posicionado em sentido favorável à interpretação dos contribuintes.[3][4]

A Guiné Equatorial é aqui quando o Fisco insiste em glosar a dedução de ágio apurado em operações de aquisição de participações societárias nos termos do artigo 7º da Lei 9.532/1997 e persegue a consolidação de uma orientação jurisprudencial na esfera administrativa que a própria Lei 12.973/2014 prova ser inovadora e, por conseguinte, sem embasamento na legislação pretérita.

A Guiné Equatorial é aqui quando decisões que interpretavam a legislação tributária de modo mais favorável aos contribuintes são reformuladas para evitar uma aplicação geral, como tem sido o caso da chamada “trava de 30%” para limitar o direito de compensação de prejuízos fiscais, “trava” essa que era considerada inaplicável no ano de extinção da empresa em prestígio ao conceito de renda consagrado no artigo 43 do Código Tributário Nacional.[5]

A Guiné Equatorial é aqui quando contratos celebrados para a prestação de serviços e afretamento de embarcações são desconsiderados e seu regime jurídico-fiscal é definido pela reinterpretação dada por agentes do Fisco, cada qual à sua moda, assustando os empresários e afugentando investidores[6].

A Guiné Equatorial é aqui quando o Fisco resiste em aceitar direito de audiência dos contribuintes aos julgamentos realizados pelas Delegacias de Julgamento da Receita Federal de forma secreta, direito esse, aliás, já concedido por sentença judicial[7].

A Guiné Equatorial é aqui quando se tornou lugar-comum lavrar autuações fiscais acusando os particulares da prática de simulação em toda e qualquer operação que tenha, possa ter ou que se acuse que tenha tido o propósito de obtenção de uma economia fiscal, demonizando-se o planejamento tributário.

A Guiné Equatorial é aqui quando os entes tributantes insistem em cobrar multas assombrosas pelo descumprimento de obrigações tributárias, sem qualquer razoabilidade ou proporcionalidade em relação à falta cometida. Multas que invariavelmente são cumulativas e ultrapassam muitas vezes o valor do imposto exigido, atingindo patamares de até 300%.[8]

A Guiné Equatorial é aqui porque se instaurou no país um clima de total e absoluta insegurança jurídica em matéria tributária, tudo isso por conta do insistente desprezo de alguns ao princípio da legalidade; acusado de antiquado, formalista e conservador; ocorre que desde a Magna Charta de 1215, que esse ano completa 800 anos, o princípio da legalidade estrita tem sido a mais eficaz garantia do cidadão-contribuinte frente ao poder do Estado.

A Guiné Equatorial só ainda não é aqui porque há uma sociedade civil organizada que defende de forma intransigente as garantias constitucionais dos contribuintes, dentre elas os princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, garantias que são da essência do Estado democrático de direito, que tem a segurança jurídica e a previsibilidade da ação estatal como diretrizes fundamentais.

Infelizmente no Brasil de 2015 nunca foram tão atuais as palavras de Caetano Veloso: não importa nada, ninguém é cidadão; ninguém tem sido respeitado como cidadão-contribuinte, ninguém sabe os impostos que irá pagar; ninguém sabe se uma operação que praticou vai ser acusada de simulada e reclassificada; ninguém sabe se um ágio que deduziu será ou não glosado; ninguém pode acreditar no respeito aos compromissos internacionais; ninguém pode acreditar na manutenção de jurisprudência favorável aos contribuintes. A Guiné Equatorial não é aqui?

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Parabéns à mui leal e heroica Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro pelos 450 anos comemorados no domingo 1º de março. Parabéns à injustiçada Portela, agremiação que celebrou os 450 anos de um Rio surreal e trouxe para a passarela o Cristo-águia, mais uma dessas criações que ficarão para a história do Carnaval e da Cidade.

Àqueles que tiverem interesse em conhecer um pouco mais sobre a fundação do Rio de Janeiro vale a leitura do livro “1565: Enquanto o Brasil Nascia: A Aventura de Portugueses, Franceses, Índios e Negros na Fundação do País” de Pedro Dória, editora Nova Fronteira. Como “aperitivo” recomendo a leitura do artigo publicado no domingo passado, 1º de março.


[1] http://www.conjur.com.br/2014-set-10/consultor-tributario-politica-acabar-ditadura-fiscal-arrecadacao

[2] Que seguem a Convenção Modelo OCDE.

[3] Cfr. RESP n.º 1.325.709/RJ, 1ª T. (lucros de controladas no exterior) e RESP n.º 1.161.467/RS, 2ª T. (IRF prestação de serviços)

[4] http://www.conjur.com.br/2014-mai-28/consultor-tributario-recentes-decisoes-stj-aliviam-inseguranca-juridica

[5] Cfr. http://www.conjur.com.br/2012-nov-21/consultor-tributario-nao-seguranca-juridica-decisoes-estaveis

[6] Cfr. nossa coluna de 3/12/2014, Nova lei pode restabelecer segurança jurídica na indústria do petróleo / http://www.conjur.com.br/2014-dez-03/consultor-tributario-providencia-legislativa-restabelecer-seguranca-juridica-industria-petroleo

[7] http://www.conjur.com.br/2014-nov-05/advogados-rio-ganham-acesso-sessoes-julgamento-receita

[8] Cfr. nossa coluna de 4/2/2015, Apenas o Supremo pode dar um fim às multas confiscatórias./ http://www.conjur.com.br/2015-fev-04/consultor-tributario-apenas-supremo-dar-fim-multas-confiscatorias

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