Criação intelectual

Peculiaridades da proteção autoral de um dicionário

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26 de maio de 2015, 8h53

Em recente julgado, o Superior Tribunal de Justiça negou provimento ao Recurso Especial interposto por alguns dos assistentes do professor Aurélio Buarque de Holanda, que buscavam o reconhecimento como coautores da obra Dicionário Aurélio.

O acórdão, da lavra do relator ministro Paulo de Tarso Sanseverino, em suma consignou que a figura dos assistentes se amolda à hipótese de “auxiliares” prevista no art. 14 da Lei de Direitos Autorais de 1973, segundo o qual “não se considera colaborador quem simplesmente auxiliou o autor na produção da obra intelectual, revendo-a, atualizando-a, bem como fiscalizando ou dirigindo sua edição ou sua apresentação […]”.

O debate jurídico traz questão de enorme relevância no campo da Propriedade Intelectual, mais especificamente no tocante à interpretação do artigo 7º, inciso XIII, parágrafo 2º da Lei 9.610/98.

O recurso especial foi interposto por dois assistentes do professor Aurélio Buarque de Holanda e pela empresa da qual eles são sócios, e pretendia a reforma das decisões proferidas nas instâncias inferiores, com o reconhecimento da coautoria na renomada obra Dicionário Aurélio, lançada no ano de 1975, época em que era denominada Novo Dicionário da Língua Portuguesa, e que em sua 1ª edição e 1ª impressão contou com a participação da Editora Nova Fronteira.

Em primeira instância, durante a fase de instrução, foi produzida prova pericial técnica, que enfrentou todas as questões levantadas pelos recorrentes e concluiu que “o nominado ‘Dicionário Aurélio’ é uma obra de autoria exclusiva / legítima de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, na qual, no caso em comento lhe auxiliaram em pesquisas, seus assistentes”.

Ainda de acordo com o laudo do perito judicial “a matriz do dicionário é de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, sendo que o referido dicionário foi formulado sob a propositura/conformação/formatação idealizada por ele; em que se diga já anteriormente, notoriamente envolvido com projetos de grandes dicionários, sendo que o mesmo já havia até participado de contratos anteriores, com as editoras Delta e Civilização Brasileira”.

No que se refere ao trabalho literário do professor Aurélio Buarque de Holanda, notável escritor de Alagoas, de notório saber e estilo literário, consta dos autos, mais especificamente do laudo do perito judicial:

“Especificamente, constata-se que os assistentes (incluindo-se nestes os Requerentes) realizaram de fato o trabalho bruto de pesquisa, sempre dirigidos por mestre Aurélio, que de posse desse material, de seu modo minucioso e perfeccionista, criava, melhorava, aperfeiçoava e inspecionava pessoalmente cada verbete, imprimindo ao todo da obra (visão macro/integral), o seu estilo claro e conciso, se constituindo numa clara expressão de sua personalidade perfeccionista e de seu espírito criador.”

Para entender a problemática enfrentada pelo STJ é importante compreender o sentido da Lei 9.610/98 ao conferir proteção autoral às coletâneas, enciclopédias, antologias, compilações e dicionários, como criação intelectual, original e inovadora (artigo 7º da Lei de Direitos Autorais).

O dicionário é uma obra com características peculiares, cuja proteção apesar de amparada no artigo 7º, inciso XIII, da Lei de Direitos Autorais 9.610/1998, não abrange o seu conteúdo, ex vi o parágrafo 2º do referido dispositivo legal, assim:

“Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
[…]
XIII – as coletâneas ou compilações, antologias, enciclopédias, dicionários, bases de dados e outras obras, que, por sua seleção, organização ou disposição de seu conteúdo, constituam uma criação intelectual.
[…]
§2º A proteção concedida no inciso XIII não abarca os dados ou materiais em si mesmos e se entende sem prejuízo de quaisquer direitos autorais que subsistam a respeito dos dados ou materiais contidos nas obras.”

A proteção autoral que recai sobre a obra de um dicionário não abarca o seu conteúdo, recai sobre o trabalho de seleção, organização ou disposição (parágrafo 2º). As palavras contidas na obra são de domínio público, mas quando organizadas e selecionadas na forma de um dicionário, o seu conjunto, se demonstrar criação intelectual, será protegido.

Cumpre transcrever trecho de Acórdão proferido pelo 1º Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, 252.525/São Paulo, Capital, in RT 526.131, 1979, que decidira acerca da proteção sobre as coletâneas de textos legislativos:

“Coordenação de textos legislativos. Prestação de serviços mediante contrato. Critérios de seleção e organização empregados. A lei brasileira. “Criação intelectual” inexistente. Improcedência de ação de indenização contra a empresa. Arrumação de textos de leis, remissões e índices não chega a constituir criação intelectual científica e, muito menos, artística ou literária. Mero arranjo da legislação em trabalho ordenativo, a remissão de textos e a ordenação de índice remissivo são trabalhos normais das editoras, que podem ser feitos por seus funcionários, nos limites da relação empregatícia, ainda que, por vezes, prefiram elas entrega-los a especialistas.

EMENTA DO ACÓRDÃO: “Compilar ou coletar textos de leis, arrumando-os com índices e remissões em rodapés, ainda que constitua prestação que exige gabarito técnico e trabalho exaustivo de pesquisa, não chega a constituir criação intelectual científica, e muito menos artística ou literária”.

Destaque-se do voto do Relator:

“Toda a pretensão da autora alicerça-se, basicamente, na interpretação do art. 7º, da Lei 5.988, de 14.12.73, que regulou os direitos autorais, norma que assim se lê: “Protegem-se como obras intelectuais independentes, sem prejuízo dos direitos dos autores das partes que as constituem, as coletâneas ou as compilações, como seletas, compêndios, antologias, enciclopédias, dicionários, jornais, revistas, coletâneas de textos legais, de despacho, de decisões ou de pareceres administrativos, parlamentares ou judiciais desde que, pelos critérios de seleção e organização constituem criação intelectual”.

Se se entendesse, somente para argumentar, que as coletâneas de textos legais, aludidas acima, editadas pela empresa ré, tivessem sido fruto de criação intelectual da autora ante critérios de seleção e organização empregados, e, certamente, a demanda seria procedente em face das demais disposições legais referidas na petição inicial, especialmente o art. 36 da Lei 5.988/73, que determina que os direitos autorais pertencerão a ambas as partes ‘se a obra intelectual for produzida em cumprimento a dever funcional ou a contrato de trabalho ou de prestação de serviços’.

O art. 7º da Lei 5988/73, entretanto, não se ajusta ao caso em exame, posto que nele se percebe, prima facie, que se façam ou editem coletâneas ou compilações, inclusive de textos legais, para que o coletor ou o compilador faça jus ao direito autoral. Será indispensável, para este fim, o plus da criação intelectual que se manifeste pelos critérios de seleção e organização utilizados.

A criação intelectual é a determinante da classificação de uma obra como literária, artística ou científica, cobrindo o seu autor com a proteção constitucional (art. 153, § 25, da Carta Magna de 1969), que lhe assegura o direito exclusivo de utilização.

Compilar ou coletar textos de leis, arrumando-os com índices e remissões em rodapé, ainda que constitua prestação que exige gabarito técnico e trabalho exaustivo de pesquisa, a par de excepcional atenção, não chega a constituir uma criação intelectual científica, e muito menos artística ou literária. Qualquer pessoa, sem dons especiais, desde que treinada e com medianos conhecimentos da legislação, poderá executar essa tarefa, ainda que nada trazendo de, efetivamente, criativo. O mesmo não acontecerá, p. ex., se o coletor ou compilador acrescentar algo de novo, quer comentando textos, quer carreando dados doutrinários ou jurisprudenciais, que sirvam para esclarecê-los. O mero arranjo da legislação, em trabalho ordenativo, a remissão de textos e a ordenação de índice remissivo são trabalhos normais das editoras, que podem ser feitos por seus funcionários, nos limites da relação empregatícia, ainda que, por vezes, prefiram elas entrega-los a especialistas que terão, é certo, remuneração condigna pela especialidade e não por eventual criação intelectual.

O art. 7º da Lei 5.988/73 tem origem, certamente, no art. 2º, 3, da Convenção de Berna (Dec. 34.954, de 18.1.54), que assegurava, nos casos de compilações de obras literárias ou artísticas, a proteção de direitos autorais, quando constituíssem criações intelectuais ‘pela escolha ou disposição das matérias’.

Clóvis Beviláqua, após lecionar que ‘o que o Direito Autoral protege são as formas novas criadas pelo engenho humano’ (Código Civil, vol. III/155, ed. Francisco Alves, 1955), acentua que ‘todo direito imaterial origina-se de uma criação, isto é, de uma ideação criada por iniciativa espiritual. Pouco importa que resulte de um rasgo de gênio ou meditação diuturna’ (ob. cit., p. 156). Orlando Gomes, no mesmo diapasão, define autor como ‘aquele que intelectualmente cria a obra, no campo das letras, das artes, ou da ciência… A condição, para que assim se qualifique o titular de direito autoral, é que a concepção seja original; que, por outras palavras, seja a obra uma criação própria de sua inteligência’ (Direitos Reais, Forense, 4ª. ed., 1973, p.238). Como se vê, não é criação um trabalho técnico ainda que imponha pesquisa e não prescinda de conhecimentos científicos; sê-lo-á, quando se revista de originalidade e traga algo de novo ao que já existe. No campo da compilação, criar não será, simplesmente, ordenar, arrumar, arranjar, mas compor, equacionar, comentar, enriquecer.”

A decisão acima transcrita não é caso isolado da jurisprudência.

Também a esse respeito cumpre trazer a lume ementa de acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, na Apelação Cível 82.688-1/SP:

“Compilação de textos legislativos. Critérios de seleção empregados. Correta interpretação dada à lei autoral pelos demandados. Colocação do autoralista Eduardo Vieira Manso. Colocação do Professor Carlos Alberto Bittar, observando que a obra deve identificar mínimo esforço criativo e apresentar originalidade, além dos requisitos expostos. Engenho e criatividade do compilador, ao compilar textos legais, seleção de material, notas de rodapé com remissões aos textos legais pertinentes e a elaboração de índices remissivos. Nas obras aqui postas em confronto verifica-se que as remissões e notas ali inseridas refletem pura e simplesmente trabalho de pesquisa, não revelando qualquer aspecto criativo ou original de seus organizadores. Mera ordenação de legislação vigente, com notas e remissões referentes a outros textos legais, não traduzindo trabalho inventivo ou criativo, a merecer tutela legal, são, em verdade, as coletâneas confrontadas.”

Destaca-se do voto do relator:

“O deslinde da controvérsia está, pois, consubstanciado na indagação se as pesquisas de textos legais, seleção de material, notas de rodapé com remissões aos textos legais pertinentes e a elaboração de índices remissivos constituiriam criação intelectual a merecer tutela legal. A resposta será afirmativa se tal mister for a resultante do engenho ou da criatividade do seu compilador. Bem examinadas as coletâneas que foram acostadas aos autos, pelos autores, para demonstração da alegada contrafação, chega-se à conclusão inafastável que sem demérito ao trabalho desenvolvido ressente-se ele do caráter de criação intelectual, ainda que restrito o exame aos critérios de seleção e organização utilizados. Ao contrário do que sustentam os apelantes, o aresto da Egrégia Primeira Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil relatado pelo ilustre magistrado Des. Carlos Ortiz tem plena aplicação à espécie, não obstante algumas peculiaridades da lide então objeto do julgamento. Com efeito, deixou expresso aquele julgado que compilar ou coletar textos de leis, arrumando-os com índices e remissões em rodapés, ainda que constitua prestação que exige gabarito técnico e trabalho exaustivo de pesquisa, não chega a constituir criação intelectual científica e muito menos artística ou literária. Bem examinadas as obras postas em confronto, verifica-se que as remissões e notas ali inseridas refletem pura e simplesmente trabalho de pesquisa, não revelando qualquer aspecto criativo ou original de seus organizadores. São em verdade mera ordenação da legislação vigente, com notas e remissões referentes a outros textos legais, não traduzindo trabalho inventivo ou criativo, a merecer tutela legal.”(Ambos os acórdão estão em: CRETELLA JUNIOR, José, 1920 – O direito autoral na jurisprudência / José Cretella Junior. – Rio de Janeiro: Forense, 1987, págs. 1 a 9)

O trabalho da equipe de pesquisadores do professor Aurélio Buarque de Holanda, embora trabalho intelectual de pesquisa, não representou criação intelectual a merecer tutela legal, para o que importam a personalidade e a originalidade.

E a teor do disposto no parágrafo 2º do artigo 17 da Lei Autoral, “cabe ao organizador a titularidade dos direitos patrimoniais sobre o conjunto da obra coletiva”.

Pelas razões de fato de direito aqui abordadas, a autoria do Dicionário “Aurélio” é, sem sombra de dúvidas, do saudoso professor Aurélio Buarque de Holanda.

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