Nicho de mercado

Faculdades dos EUA apostam em cursos práticos para atrair alunos

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24 de maio de 2015, 12h29

A matrícula nas faculdades de Direito dos Estados Unidos caiu pelo quarto ano consecutivo em 2014. A razão é bem clara: os estudantes contraem uma dívida de até US$ 150 mil para fazer o curso e, depois, não há emprego para todos. E os bacharéis não estão preparados para lançar carreira solo. Por isso, o nível de interesse no curso de Direito vem caindo ano a ano.

Muitas faculdades estão cortando custos, demitindo professores, fazendo o que podem para sobreviver. Outras faculdades tiveram uma ideia melhor para atrair os estudantes que insistem em fazer o curso de Direito, apesar de tudo: criar clínicas — cursos práticos para o “mundo real” — voltados, de preferência, para nichos do mercado bem específicos.

Nesses cursos práticos, os estudantes também aprendem a montar e administrar um escritório de advocacia, a fazer marketing e conquistar clientes. Isto é, deixam a faculdade com uma boa preparação para atuar em uma área específica do Direito, em oposição a se lançar no mercado em busca de emprego.

Os nichos de mercado são escolhidos com base em uma demanda de serviços jurídicos claramente definida em um estado, em uma cidade ou mesmo em uma comunidade. As faculdades oferecem clínicas para todos os gostos. A Brooklyn Law School, por exemplo, oferece 19 em seu campus e em outras instituições.

Um desses cursos, coordenado pelo advogado Joel Bernstein, é sobre arbitragem em valores mobiliários — muito apropriado para Nova York. Bernstein disse ao The National Law Journal que, quando se formou em advocacia nos anos 70, teve de se ensinar a prática. Hoje, os bacharéis que passam pelas clínicas saem prontos para atuar logo depois de passar no exame de ordem.

Muitos desses bacharéis, que aprendem como implementar uma prática solo, acabam sendo atraídos por escritórios de advocacia de médio e grande porte, que precisam de advogados com suas especializações. E acabam empregados, embora estivessem preparados para não depender de emprego.

O The National Law Journal selecionou alguns desses cursos práticos que estão fazendo “um sucesso impressionante”:

Especialista em moda
A clínica para estudantes da Faculdade de Direito Loyola, em Los Angeles, salvou os negócios dos amigos Omar Hashimi e Alyass Kazimi. A linha de roupas que criaram tinha tudo para ser um sucesso, mas a empresa não decolou por causa de seguidos problemas jurídicos, a começar pela marca “Boulevard”, que já pertencia a outra empresa. Mudaram a marca para “In Cali We Trust”, mas o pedido de registro não foi aceito pelo estado.

Com a ajuda dos estudantes Ted Nguyen e Ruth Paul, que faziam a clínica especializada em moda da faculdade, eles descobriram que a palavra “Trust” só pode ser usada por instituições financeiras. E, finalmente, escolheram um nome de marca que foi aprovado.

Além de resolver os problemas de propriedade intelectual da empresa, os estudantes redigiram um memorando de entendimento para os sócios da empresa, ajudaram a desenvolver um plano de negócios para investidores, redigiram contratos com empresas de impressão em tecido, com fabricantes, vendedores e modelos. Os dois estudantes, que se especializam em Direito da Moda, já terão, em breve, um cliente.

Para a coordenadora da clínica, a advogada e professora Staci Riordan, os estudantes que se especializam em prestar assistência jurídica a profissionais criativos — designers, artistas, entre outros — que também estão lançando uma empresa com chance de prosperar, têm uma boa chance de deslanchar suas carreiras. “A última coisa que esses seres criativos querem cuidar na vida é de seus problemas jurídicos. Alguém tem de fazer isso por eles”, ela diz.

Especialista em cinema
Uma clínica da Faculdade de Direito Benjamin N. Cardozo da Universidade de Yeshiva também encaminha os estudantes para a área da criatividade — ou, mais especificamente, para prestar serviços jurídicos a cineastas independentes ainda sem recursos financeiros para contratar advogados.

Os estudantes Diana Yu e Jonathan Yellin ajudaram o diretor Ido Mizrahy a viabilizar juridicamente o documentário “Gored” (“Chifrado”), sobre o toureiro Antonio Barrera. Tudo que eles ganharam foi seus nomes nos créditos iniciais do filme, que disputou o Festival de Tribeca, e experiência.

Aliás, muita experiência. Nessa clínica, os estudantes constituem empresas de produção, redigem contratos e pareceres jurídicos, cuidam do licenciamento de filmagens de arquivo, descobrem as que não precisam ser licenciadas e discutem e preparam contratos com todos os participantes do filme, principalmente os atores, para que a produtora não seja processada por violação de direitos autorais no futuro.

A diretora Anja Marquardt também deu créditos à clínica por viabilizar juridicamente seu filme “She’s Lost Control” (“Ela perdeu o controle”), que conta a história de uma estudante que teve de trabalhar como garota de programa. Havia nudez na história e os estudantes tiveram de negociar com o sindicato dos atores as condições dessas cenas, entre outras matérias jurídicas.

Especialista em processar a polícia
Essa clínica da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago se dedica a mover ações criminais e civis contra policiais que abusam de seu poder e cometem delitos contra a população, notadamente a negra. Mover ações civis contra a polícia e, solidariamente, contra a cidade vem se tornando uma prática comum — e rentável — nos EUA.

Há alguns meses, os estudantes da clínica obtiveram na Justiça uma indenização de quase US$ 2 milhões, em favor de Noel Padilla, que passou mais de nove meses na prisão, depois que policiais “plantaram” drogas em sua casa e também o teriam roubado, segundo os autos. A clínica trabalhou no caso por sete anos. Padillha disse aos jornais que ficou impressionado ao ver como os estudantes trabalharam duro.

Na semana passada, os estudantes defenderam um jornalista que foi preso por fotografar a ação de policiais, quando usaram força excessiva ao prender uma mulher em uma área predominantemente negra. Em um julgamento de cinco dias, eles apresentaram cerca de 150 provas, prepararam e ouviram testemunhas, fizeram inquirição cruzada e as alegações iniciais.

No ano passado, dois estudantes da clínica defenderam, em um tribunal de recursos de Illinois, o direito do público de ter acesso aos registros de má conduta de policiais e de queixas contra a Polícia. No todo, o litígio durou quatro anos. No fim, os estudantes venceram a causa que defenderam com base na Lei da Liberdade de Informação do estado.

Especialista em discriminação velada
Os advogados de direitos civis se referem à discriminação por raça, status familiar, deficiência física ou nacionalidade, contra um cidadão a quem é negado o aluguel de um imóvel, como “discriminação com um sorriso”. Na maioria das vezes, o cidadão sequer percebe que a discriminação é a causa fundamental de uma recusa.

A Faculdade de Direito da Universidade Suffolk, em Boston, criou uma clínica para formar advogados que se dediquem a processar locadores que praticam esse tipo de discriminação velada.

Os estudantes recrutam “um pequeno exército” de colegas sujeitos à discriminação e de colegas brancos com maior chance de um bom tratamento, para atuar como possíveis locatários. Assim, a clínica coleta provas e testemunhos para combater na Justiça esse tipo de violação dos direitos civis, que é sempre difícil de caracterizar. E denunciam locadores ou corretores que discriminam nos órgãos apropriados que, com as provas obtidas, os processam.

A clínica também investiga queixas apresentadas por pessoas que, ao que lhes parece, receberam uma desculpa “esfarrapada” para esconder a discriminação. De todos os casos investigados, 44% confirmam que o motivo da recusa foi, mesmo, discriminação.

A clínica passou a ser oficialmente chamada de Programa de Teste de Discriminação Habitacional. O programa recebeu mais de US$ 1,9 milhão do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano dos EUA, para ser distribuído até 2018.

Para a aluna Regina Holloway, que é negra, os estudantes que posam como possíveis locatários não estão apenas atuando. Eles aprendem a coletar provas, de uma maneira neutra e serena. “No meu caso, procuro apenas observar, sem raiva, como as pessoas me tratam, sem tentar movê-las em qualquer direção. Aprendo a registrar os fatos, não opiniões”.

Quando algum locatário ou corretor é processado, os estudantes servem de testemunhas. Nesse caso, eles aprendem o que é ser uma testemunha, antes de começarem a trabalhar com testemunhas em sua prática.

Especialista em arbitragem financeira
A cada duas semanas, oito estudantes da Faculdade de Direito de Brooklyn, vestidos em ternos escuros e gravatas, se sentam em cadeiras de couro com encosto alto, em torno de uma grande mesa de reuniões, no 34º andar da sede da banca Labaton Sucharow, em Nova York, para discutir arbitragem no mercado financeiro.

As reuniões fazem parte da “clínica de arbitragem de valores mobiliários” da faculdade. Um ponto que distingue essa clínica de outras, é que ela é dirigida por um escritório de advocacia, o Labaton Sucharow, sob a coordenação dos sócios Joel Bernstein e Mark Arisohn. Os estudantes, que se reúnem com os dois sócios e quatro outros advogados da banca, se encarregam do programa de arbitragem financeira pro bono do escritório.

Na reunião, os estudantes discutem com os advogados, por exemplo, as vantagens e desvantagens da arbitragem no mercado financeiro. Bernstein pergunta aos estudantes, por exemplo, por que os corretores de valores mobiliários preferem a arbitragem ao litígio. Os alunos argumentam que o contencioso é extremamente caro. Bernstein acrescenta: “Além disso, os corretores morrem de medo de um júri”.

Na clínica, os estudantes se reúnem com clientes, fazem pesquisas, redigem memorandos, condições de acordo e acordos para evitar ação judicial. A parte mais interessante, para eles, é a reunião com clientes, na qual começam a lidar com um dos mais importantes fundamentos da prática.

A clínica representa, por exemplo, a mãe de dois filhos que perdeu mais da metade do dinheiro que recebeu do seguro de vida, em um período de um ano após a morte do marido. Um corretor de valores mobiliários investiu seu dinheiro em papéis altamente especulativos e cobrou taxas exorbitantes. “Ela não poderia contratar um advogado no regime de contingência, porque ele cobraria de 25% a 35% de qualquer possível quantia que ela obtivesse”, disse Bernstein.

Para os advogados da Labaton, a clínica os ajuda a alavancar sua expertise jurídica no mercado financeiro, em benefício dos clientes pro bono da banca, ao mesmo tempo em que treinam a próxima geração de advogados. “Isso é, provavelmente, a atuação mais próxima de prática que eles podem ter, antes de começar a trabalhar como advogados. Procuramos tratá-los como se fossem novos advogados da banca”, disse Arisohn.

Especialista em Suprema Corte
A clínica dos sonhos de estudantes de Direito é a de atuar na Suprema Corte e faz parte dos currículos de quase todas as grandes faculdades do país, como a de Stanford, a pioneira. A da Faculdade de Direito da Universidade de Virgínia, talvez por estar em Washington, a cidade da Suprema Corte, é uma das mais bem-sucedidas.

Nos EUA, os estudantes, sob orientação de seus professores, podem atuar em favor de demandantes ou demandados na Suprema Corte. No momento, a clínica tem dois casos em andamento na corte. Em um deles, a clínica obteve uma decisão favorável na segunda-feira (18/5). A corte decidiu que criminosos condenados, apesar de não poder possuir e portar armas, podem vendê-las, em oposição a deixá-las nas mãos do estado.

O segundo caso se refere a ameaças feitas pelo Facebook e está à espera de decisão da corte. Dos dez casos que a clínica atuou até agora, ganhou 6,5 e perdeu 3,5 — isso porque houve “meio ganho” em dois casos (ou um ganho parcial).

Para ganhar os oito créditos da clínica, os estudantes fazem muita pesquisa — isto é, um trabalho de garimpo de casos nos tribunais de recurso federais e estaduais e nos tribunais superiores dos estados, bem como eletronicamente. Eles buscam decisões divididas ou conflitantes dos tribunais, que possam interessar aos ministros da Suprema Corte.

“Aprender a ler todas essas decisões rapidamente e garimpar as porções certas, que levantam questões jurídicas interessantes e que possam interessar aos ministros, é uma forma de arte, segundo a estudante Nicole Frazer.

Quando encontram um caso que vale a pena, os estudantes o debatem com os professores, se entregam ao trabalho inicial sobre os méritos da questão e fazem um júri simulado, em que o estudante escolhido para atuar na Suprema Corte defende o caso. “É muito gratificante quando os ministros, na audiência, fazem perguntas com base na petição que ajudamos a redigir”, disse o estudante Joel Johnson.

Para o advogado Mark Stancil, da banca Robbins, Russell, Englert, Orseck, Untereiner & Sauber, de Washington, D.C., um dos supervisores da clínica, o trabalho também é muito gratificante para o advogado, pessoalmente e profissionalmente. “Muitos advogados que participam dessa clínica são picados pela mosca do ensino. Passam a amar o ensino e sentem uma necessidade de preparar novos advogados para a profissão”, diz Stancil.

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