Separação dos poderes

Tentativa de engessamento dos órgãos de Justiça é inconstitucional

Autor

  • Allan Titonelli Nunes

    é procurador da Fazenda Nacional e desembargador Eleitoral Substituto do TRE-RJ mestre em Administração Pública pela FGV especialista em Direito Tributário ex-presidente do Forum Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz. Membro da Academia Brasileira de Direito Político e Eleitoral (Abradep).

24 de maio de 2015, 9h00

Hans Kelsen erigiu sua doutrina na concepção formalista da supremacia da Constituição. Sua teoria parte do princípio de que o ordenamento jurídico é formado por uma estrutura escalonada, em que a Constituição ocuparia o ápice do sistema, sendo o fundamento de validade de todas as normas inferiores, e tendo como pressuposto uma norma fundamental hipotética, caracterizada por uma lógica que transcenderia o sistema jurídico.

A existência de uma Constituição formal ou escrita, como ordem fundante do sistema jurídico, advém da positivação pelo poder constituinte originário, eleito soberanamente pelo povo, do qual emana todo o Poder, de um conjunto de regras e princípios estruturantes e iniciais para o ordenamento jurídico. Por tais razões, e dedução lógica, a vontade popular é quem erigiu a construção da nossa Constituição.

O presente artigo pretende analisar perfunctoriamente, no âmbito da Organização dos Poderes, especificadamente o papel destinado às Funções Essenciais à Justiça.

Montesquieu, ao descrever sua teoria sobre a Tripartição dos Poderes, já alertava sobre a possibilidade de, em determinada época, haver prevalência de um Poder em relação aos demais. Os freios e contrapesos seriam a forma de manter a harmonia. Ocorre que sua teoria teve como parâmetro o absolutismo europeu, necessitando adaptá-la ao surgimento do Estado Democrático de Direito.

Assim, o Poder Constituinte Originário brasileiro atento às lições de Montesquieu, positivou no art. 2º da Constituição Federal de 1988, entre os princípios fundamentais da República Federativa do Brasil, a Separação entre os Poderes, que é cláusula pétrea, ante ao que preceitua o art. 60, § 4º, III, da CF/88.

Entretanto, o Constituinte não estava satisfeito apenas com essa garantia e, necessitando dar maior efetividade a esse equilíbrio, incluiu na Organização dos Poderes um novo capítulo, Das Funções Essenciais à Justiça.

Nesse novo capítulo, o Constituinte incluiu órgãos e instituições que possuem atribuições de defender a sociedade, o Estado, os hipossuficientes e o cidadão, dentro de um mesmo patamar hierárquico, exigindo um entrelaçamento dessas funções.

Logo, no cenário político nacional após a Constituição de 1988, o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes, dentro de uma perspectiva do Estado Democrático de Direito, serão concretizados, em parte, por meio das Funções Essenciais à Justiça.

Outrossim, o desígnio “Justiça” não teve um alcance restrito, de prestação jurisdicional, mas sim de isonomia, imparcialidade, preservação dos direitos, eliminação da ingerência do Estado, cidadania e democracia, o que Diogo de Figueiredo Moreira Neto convencionou chamar de “Estado de Justiça”.

Nesse sentido, o Poder Judiciário não é o único responsável pela prestação da Justiça, necessitando da intervenção do Ministério Público, da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e da Advocacia Privada, como garantidores e defensores dos interesses da sociedade e do Estado. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao discorrer sobre o papel afeto às Funções Essenciais à Justiça, consigna que[1]:

Sem esses órgãos, públicos e privados de advocacia, não pode haver justiça, aqui entendida como a qualidade ética que pretende exigir do Estado pluriclasse quanto à legalidade, à legitimidade e à licitude. E porque essa justiça só pode vir a ser realizada em sua essencialidade se dispuser dessas funções autônomas, independentes, onipresentes, e, sobretudo, corajosas, o legislador constitucional as denominou de ‘essenciais à justiça’ (Título IV, Capítulo IV, da Constituição). 

Mais a mais, pode-se acrescer, ainda segundo as lições de Diogo de Figueiredo Moreira Neto[2]:

Não haja dúvida de que, ao recolher, na evolução teórica e prática do constitucionalismo dos povos cultos, novíssimas expressões institucionais, como o são a participação política e as funções essenciais à justiça, o Constituinte de 1988 deu um passo definitivo e, oxalá, irreversível, para a preparação do Estado brasileiro do segundo milênio como um Estado de Justiça, aspiração, como se expôs, mais ambiciosa do que a realização de um Estado Democrático de Direito, que naquela se contém e com ela se supera.

Dito de outra forma, pode-se asseverar que a positivação do Ministério Público ao lado das novas instituições Constitucionais, Advocacia Pública, Defensoria Pública e Advocacia stricto senso veio concretizar a intenção de justaposição dessas funções, necessitando-se garantir a elas atuação dentro do mesmo patamar hierárquico e repelindo-se qualquer grau de subordinação, tendo em vista sua “essencialidade”.

Especificadamente, Diogo de Figueiredo Moreira Neto descortina a atuação de cada uma dessas funções[3]:

A advocacia privada defende os interesses individuais, coletivos e difusos dos entes da sociedade civil. A advocacia pública se divide, por sua vez, em três ramos: a advocacia da sociedade, que defende os interesses individuais, coletivos e difusos indisponíveis, indicados em lei; a advocacia dos necessitados, que defende interesses individuais dos que a lei reconhece como pobres e indefesos; e a advocacia do Estado, que defende os interesses cometidos aos entes públicos em que se desdobra internamente o Estado, os interesses públicos.

A advocacia da sociedade está amplamente tratada nos artigos 127 a 130, conformando o Ministério Público como instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado (…)

A advocacia dos necessitados está tratada, inovadoramente, no art. 134, conformando a Defensoria Pública (…)

A advocacia do Estado está tratada constitucionalmente apenas no que se refere à União, aos Estados e ao Distrito Federal, nos artigos 131 e 132. No que respeita à União, atua precipuamente a Advocacia-Geral da União.

Por esses motivos, o Estado Democrático de Direito brasileiro exige que para resguardar a essencialidade dessas funções é fundamental não haver qualquer tipo de engessamento ou captura, sob pena de fulminar a matriz Constitucional, até porque se a Constituição erigisse qualquer grau de subordinação por parte dessas funções deveria incluí-las dentro do Capítulo referente ao Poder Executivo, o que não ocorreu.

Consequentemente, a ordem hierárquica originária positivada na Constituição trata essas instituições autonomamente, razão pela qual essa característica (autonomia) é latente e inerente a esses órgãos, sendo inconstitucional qualquer tentativa de aniquilação e desestruturação dessas instituições, sob pena de violação à Separação dos Poderes, de acordo com a vertente inaugurada pela Constituição de 1988, positivando as funções essenciais à Justiça dentro do Título destinado à organização dos Poderes, reinterpretando assim a teoria tricotômica de Montesquieu.

[1] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Constituição e Revisão: Temas de Direito Político e Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 31.

[2] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As Funções Essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo: n. 36, dez. 1991, p. 13.

[3] MOREIRA NETO apud KIRSCH, César Vale. A Advocacia-Geral da União e Poder Executivo Federal: Parceria Indispensável para o Sucesso das Políticas Públicas. Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro. Volume XVI, Rio de Janeiro, 2006, p. 43-93.

Autores

  • Brave

    é procurador da Fazenda Nacional, membro da Comissão Nacional da Advocacia Pública da OAB, ex-presidente do Fórvm Nacional da Advocacia Pública Federal e do Sinprofaz.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!