Carreira em risco

Sociedade em bancas é armadilha contra direitos e saúde profissional

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

17 de maio de 2015, 17h36

Há muito tempo venho alimentando a vontade de escrever este texto, pois dividir a minha experiência de quase 12 anos como advogado em Salvador e em São Paulo, sem meias palavras, pode ser muito útil àqueles que pensam em seguir a mesma carreira, aos seus familiares e demais pessoas que se preocupam com eles, assim como a outros interessados nas relações que podem acontecer em um escritório de advocacia.

As experiências que embasam este texto não se referem a nenhum escritório específico, mas à vivência na advocacia e aos diálogos com dezenas de colegas, que permitiram construir um cenário sobre as práticas da nossa área e traçar algumas características negativas que se repetem com frequência. Essas características não se restringem aos escritórios de advocacia, podendo ser observadas em outras atividades, jurídicas ou não. Deste modo, o debate sobre elas deve ocorrer na sociedade brasileira em geral.

Evidentemente, as críticas feitas neste texto não são aplicáveis a todos os escritórios do Brasil. Cabe a cada indivíduo identificar ou não o seu escritório nas características que serão aqui expostas. É claro que há inúmeros pontos positivos na carreira de advogado, que pode ser apaixonante, mas irei me focar nos pontos de melhoria, para que haja uma reflexão de todos os interessados em torno de uma reconstrução dos escritórios de advocacia, que poderia, talvez, ser guiada pela Ordem dos Advogados do Brasil e outras entidades de advogados, como o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa). Por tal razão, o panorama atual conferido pelo texto será, fatalmente, bastante pessimista.

Um escritório de advocacia que contrata advogados não sócios ou mesmo “sócios de papel” se torna uma empresa, deixando de ser uma sociedade de profissionais. Aliás, esses escritórios deveriam pagar tributos como qualquer outra empresa, e não ficar lutando por tributações favorecidas. Para efeitos de Política Tributária e de realização da neutralidade, nem deveria haver diferenciação de tributação de sociedades profissionais e empresas.

Como se sabe, os lobbies no Brasil impedem que essas discrepâncias na tributação, tão criticadas pelos autores estrangeiros, sejam eliminadas[1]. Com o favorecimento tributário de algumas empresas, são reduzidas as receitas do Estado e outros tributos precisam ser criados ou aumentados, prejudicando toda a sociedade.

Começo, então, pela forma como os escritórios de advocacia se planejam juridicamente, seja do ponto de vista tributário, seja do trabalhista, seja de qualquer outro. Por conhecer melhor a legislação, os escritórios procuram a todo custo “buracos” para pagarem menos tributos e encargos, realizando, com frequência, simulações como tentar passar empresas por meras sociedades profissionais, tornando sócios muitos indivíduos que são meros empregados, além de tantos outros artifícios utilizados.

A prática de tornar sócios ou “associados” aqueles advogados que não têm poder de decisão sobre as práticas da empresa, que são subordinados aos verdadeiros sócios, mas constam no papel como detentores de 0,00001% das quotas, é extremamente comum[2]. Os advogados terminam gostando da medida, uma vez que, enquanto sócios, a distribuição de lucros não é tributada no Brasil, erro que não é cometido pelos países mais desenvolvidos do mundo[3].    

Há, hoje, milhares de advogados no país que são empregados na prática, mas estão formalizados como sócios. Assim, eles não têm desconto do Imposto sobre a Renda nas suas remunerações, mas também não recebem todos os direitos dos empregados. Em muitos casos, é uma mera ilusão para o advogado, que tem a sua remuneração líquida mensal aumentada e se sente um sócio do escritório, mas não tem poder de sócio e perde uma porção de direitos que teria se fosse empregado.

No momento de receber a sua distribuição de lucros, os “sócios de papel”, e isso acontece também no caso do PLR dos empregados, ficam, muitas vezes, submetidos a critérios obscuros, sujeitos a um alto grau de subjetividade, que permitem aos “sócios de verdade” manipularem quanto eles acham devido pagar a esses profissionais, de acordo muito mais com o que sobra após ele retirar quanto acha que merece, do que propriamente com os resultados do advogado.

Um advogado sabe bem que aquilo que não está no papel, não está no mundo, a menos que se tenha algum outro meio de prova. No entanto, por desleixo, confiança excessiva nos seus contratantes, ou outro motivo, terminam não formalizando as promessas feitas na sua contratação. É extremamente comum ver sócios de escritórios de advocacia prometerem o mundo na entrevista de contratação, ou em algum momento durante a relação de trabalho, e depois entregarem bem menos do que isso, então vale sempre a pena ter, ao menos, um e-mail formalizando tudo o que foi prometido.

Não bastassem os problemas que giram em torno das remunerações nos escritórios de advocacia, eles são ainda piores no tocante à carga de trabalho. Uma das razões pelas quais se contrata empregados como sócios é, exatamente, a desnecessidade de pagar horas extras e horas noturnas. Tornou-se bastante comum fazer advogados trabalharem 10, 11, 12 ou mais horas por dia, inclusive em finais de semana, sem que eles recebam qualquer remuneração a mais por isso.

Os indivíduos são iludidos com discursos como o de que “isso faz parte da vida do advogado e, se não gosta, é melhor escolher outro caminho”; “para realizar um bom trabalho, é preciso ficar até a noite no escritório”; “advogado não é bancário”; “quem não fica até depois das 20h no escritório é preguiçoso”; etc. Esses discursos são repetidos como mantras e se tornam parte da vida dos escritórios, de modo que logo são repetidos pelos próprios advogados que os achavam absurdos no começo.

Advogados que recebem centenas de milhares ou até milhões de reais por ano, para não reduzirem seus ganhos, preferem fazer um advogado trabalhar por dois, do que contratar dois profissionais. O resultado financeiro, em um primeiro momento, termina sendo bom para o dono de escritório. Ele apenas se esquece que esse profissional, por trabalhar frequentemente cansado e em alto nível de estresse, tende a errar muito mais e a se relacionar de maneira muito pior.  

Essa é, também, uma das razões pelas quais a profissão anda tão mal. Advogados trabalham por dois, enquanto milhares de outros terminam ficando sem emprego. Do lado do sócio, ele pensa que é melhor colocar um advogado competente para trabalhar por dois do que tentar contratar outro competente, uma vez que o nível de formação dos advogados vem piorando cada vez mais nos últimos anos.

Outro problema é a concentração da renda, que é um mal econômico de várias áreas, mas bastante presente na advocacia. Os “sócios de verdade” querem ganhar cifras tão gigantescas, que terminam pagando muito menos do que poderiam aos seus advogados. Essa é uma das razões da enorme desigualdade socioeconômica brasileira. Há grande concentração de renda no topo e pagamento de remunerações aviltantes na base.  

A qualidade não é uma das principais diretrizes da maior parte dos escritórios de advocacia. O foco é ganhar dinheiro em primeiro, segundo e terceiro lugar. Depois se pensa no resto. Assim, atividades mais adequadas a sócios são relegadas a advogados iniciantes. As atividades dos iniciantes são relegadas a estagiários. E assim por diante. Os escritórios não contratam equipes devidamente e entregam serviços aos clientes aquém, ou muito aquém, do que poderiam. Muitos sócios passam a maior parte do tempo fazendo negócios, buscando novos clientes e pouco atuam na área técnica.

Todos esses profissionais executam suas atividades em ritmo alucinante, tendo que fazer muito mais do que cabe a um profissional durante uma jornada de trabalho. Além da queda do nível de qualidade, essa realidade provoca uma péssima qualidade de vida. Pouquíssimos escritórios de advocacia têm um bom clima entre seus profissionais e muitos advogados não têm boa saúde no Brasil.

Não é raro, hoje, ver advogados com menos de 40 anos de idade sofrendo ataques cardíacos e advogados com menos de 30 anos de idade sofrendo de estafa mental, depressão, labirintite e outros problemas decorrentes do ambiente de trabalho emocionalmente insalubre, com altíssimo nível de estresse[4], que pode ser um escritório de advocacia.

Os indivíduos são frequentemente incentivados a competir entre si, em vez de serem ensinados a competir com ética e, ao mesmo tempo, cooperar com seus colegas. Cria-se um ambiente de conflito dentro dos escritórios de advocacia, alimentado pela busca, acima de tudo, por fazer mais receita. Com isso, as receitas podem até vir a aumentar em curto prazo, porém a qualidade dos trabalhos e da vida dos profissionais é diminuída, podendo levar a uma redução das receitas em médio ou longo prazo.

Há muito retrabalho em escritórios de advocacia, pois as pessoas não se comunicam e não ajudam umas as outras. O advogado “a” fez a mesma petição ou a mesma opinião legal do advogado “b”, gastando o mesmo tempo de pesquisa e redação, porque sequer há um clima propício para abordá-lo ou porque, ao abordá-lo, ele se nega a ajudar.

Com esse clima de conflito, os advogados passam a se desgostar e, é claro, a qualidade de vida despenca. Todos os dias é preciso conviver com indivíduos que querem se derrubar, que querem passar por cima uns dos outros a quase qualquer custo. Assim, o advogado passa mais horas com pessoas que ele odeia, do que com as pessoas que ele ama.

Ouso dizer que a maior parte dos advogados não é feliz. Trabalhar muito acima da jornada de trabalho adequada para um ser humano, sob alta pressão e com pessoas das quais não se gosta não pode ser uma vida boa. Mas quantas pessoas expõem que são infelizes? É muito mais comum expor felicidade, mesmo que ela seja falsa. Há, ainda, uma boa cota de pessoas que vive sem grandes realizações, sem fazer aquilo que realmente lhes dá prazer, pois passam a vida iludidas de que o seu fim principal é ficar rico, é ser “sócio de verdade” do escritório de advocacia para poder descontar tudo o que sofreu nos “sócios de papel” e empregados que lhe atormentam no dia a dia.

Enquanto isso, os familiares ou parceiros de outra natureza têm à sua disposição uma pequeníssima carga de tempo do advogado, mas ele ainda diz que faz tudo aquilo por eles. Será mesmo? Será que “eles” não preferiam ter mais atenção dessa pessoa, um pouco mais de tempo dela dedicado à convivência com eles, em lugar de tempo quase exclusivamente dedicado a ganhar dinheiro?

Terminam se tornando muito comuns as traições de parceiros pelos advogados, e vice-versa. Se eles passam mais tempo com os colegas de trabalho do que com o(a) parceiro(a), nada mais natural que isso venha a acontecer em algum momento. Fui testemunha de inúmeras traições, de homens e mulheres, com todos os estados civis possíveis, desde casados até namorados. A maior frequência de relacionamentos extraconjugais é de “sócios de verdade” do sexo masculino que se aproveitam da ambição das “sócias de papel” ou empregadas.

Esses são apenas alguns dos inúmeros problemas que poderiam ser aqui citados. Como é possível perceber, boa parte deles decorre daquela que é hoje, talvez, a principal chaga dos seres humanos, que é a busca desenfreada por dinheiro, mas colabora para isso a deterioração das relações sociais, causa e efeito da obsessão pela riqueza. 

Há, no entanto, uma razão muito específica para que a realidade de muitos dos escritórios de advocacia seja parecida com essa aqui descrita: a falta de capacidade administrativa dos “sócios de verdade”. Advogados nem sempre — ou quase sempre não — são bons gestores. Os escritórios de advocacia são muito mal administrados, como acontece, também, em várias outras áreas. E não adianta contratar alguns administradores para resolver o problema. Cada advogado precisa ser um bom gestor da sua área.

Não é um problema exclusivamente brasileiro, mas que é muito presente no Brasil. Há uma ilusão de que as empresas não precisam ter regras administrativas muito bem pensadas, que os profissionais não precisam ser muito bem geridos etc. Foca-se na atividade-fim, naquilo que dá dinheiro, e esquece-se de toda a base que são as práticas, as pessoas e as relações construídas entre elas.

Escritórios de advocacia, como quaisquer outras empresas, precisam ser uma instituição bem normatizada e muito bem gerida a partir dessas normas. É muito comum não haver uma sistemática de feedback, de modo que os advogados atuam sem ter a mínima noção de estarem indo bem ou mal, o que lhes impede de aumentar a qualidade do seu trabalho. Os escritórios, muitas vezes, não têm planos de carreira bem claros e com normas transparentes, levando à desmotivação dos profissionais e ao aumento da competição desleal, pois, onde falta objetividade, os indivíduos começam a atuar de forma desleal no âmbito da subjetividade do gestor.  

Enfim, este texto poderia ter 50 ou mais páginas, que terminariam não sendo lidas. Para não agir como os advogados, que adoram escrever petições que não são lidas pelos juízes ou opiniões legais cujas conclusões serão a única parte lida pelos clientes, vou parar por aqui e, quem sabe, escrever outro texto futuramente. Enquanto isso, espero que esses temas sejam debatidos de forma honesta e que os escritórios de advocacia procurem se reestruturar de modo a construir dentro deles relações mais leais, cooperativas, de modo a fazer todos naquele ambiente mais felizes.


[1] “The increasing complexity of corporate taxes also leaves room for a great deal of corporate lobbying to introduce and extend special treatments and allowances” (MIRRLEES, James et alli. Tax by design. Disponível em: <http://www.ifs.org.uk/docs/taxbydesign.pdf>. Acesso em: 13. fev. 2015, p. 18-19).
[2] Folha de São Paulo. FORNETTI, Verena. Funcionário “vira” sócio para empresa driblar fisco. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/dinheiro/fi2709200906.htm>. Acesso em: 7. mai. 2015.
[3] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. Os dividendos brasileiros deveriam ser tributados como na Austrália. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-mai-04/marcos-villas-boas-dividendos-deveriam-tributados-australia>. Acesso em: 7. mai. 2015.
[4] Sobre o alto nível de estresse em escritórios de advocacia e os problemas de saúde dele decorrentes, há inúmeros textos disponíveis na Internet. Vale a pena ler, por exemplo: BERTOZZI, Raquel Heep; SALEM, Lara. Estresse na advocacia: o grande perigo invisível. Disponível em: <http://www.estrategianaadvocacia.com.br/artigos2.asp?id=452#.VUvfGSmdLCc>. Acesso em: 7. mai. 2015. 

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