Diário de Classe

O sequestro oportunista de uma importante agenda da reforma política

Autor

16 de maio de 2015, 8h00

Spacca
O momento político que vivenciamos no Brasil é daqueles que deveriam atrair mais fortemente a atenção dos juristas, particularmente, e, de forma geral, de todos aqueles que, participantes efetivos do espaço público de discussões, estejam preocupados em alguma medida com questões, digamos, constitucionalistas.

Com efeito, situações relativamente duradouras de instabilidade política — além de espalharem crise por todas as dimensões de governo — podem levar a decisões que se tomam sem muito debate e ajuste de ideias, e acabam consumidas pelo “calor dos acontecimentos.” Em casos assim, costuma-se afirmar que a luz que foi produzida por uma erupção legítima de descontentamento popular acaba por gerar mais calor do que propriamente esclarecimento.

 Nesse aspecto, a estrutura desse processo decisional não difere substancialmente daquela que se observa no âmbito da decisão individual. Todos nós, seres humanos, vivemos sempre diante do dilema de, ou pautar nossas decisões por critérios oriundos de alguma racionalidade ou, por outro lado, entregar-nos aos aparentemente inevitáveis impulsos oriundos daquelas dimensões definidas em conceitos filosóficos altamente controversos, tais quais vontade, desejo, paixões etc.

Voltaire, ironizando algumas posições racionalistas extremadas de seu tempo (seu alvo preferido era, como se sabe, Leibniz), concebeu um conto em que Memmon, personagem que dá título ao seu texto, desperta em um determinado dia com o projeto de levar uma vida completamente baseada na sabedoria, afirmando que para ser sábio e, consequentemente, feliz, bastaria livrar-se das paixões. Ao longo de nada mais que um dia, no qual tenta pôr em prática o seu desígnio de viver tão somente conforme os ditames da Razão, Memmon apaixona-se por uma mulher, perde-se em intensas jogatinas e termina caolho…!

De todo modo, a estratégia de auto-restringir-se, não cedendo aos próprios desejos e visando tomar decisões mais seguras e amparadas em alguma racionalidade é tão antiga quanto o próprio ocidente. Em um texto que escrevi em parceria com Lenio Streck e Vicente Barreto tratamos da conhecida passagem existente na Odisseia de Homero, em que Ulisses, o Odisseu, durante seu regresso a Ítaca, encontra-se diante da provação provocada pelo “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus objetivos racionais, levando-os a se entregarem cegamente a seus desejos e paixões. Porém, na estória de Homero, Ulisses conhecia previamente o efeito encantador do canto das sereias e, sabedor dos problemas que poderia enfrentar, ordena a seus subordinados que o acorrentem ao mastro do navio e que em hipótese alguma obedeçam a qualquer ordem de soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso, criou uma auto-restrição para não sucumbir.

No plano político-social, Jon Elster foi quem melhor explorou a estória de Homero ao elaborar o seu modelo descritivo das Constituições como pré-compromissos sociais.[1] Nessa metáfora, a comunidade política confeccionaria uma Constituição para nela depositar critérios mínimos de racionalidade institucional que não deveriam ser objeto de deliberação (ou, sendo o caso de deliberar sobre eles, isso aconteceria por meio de um processo mais dificultoso de modificação) nos períodos ou ocasiões em que o “calor dos acontecimentos” ou o “clamor das ruas” parecesse levar as decisões mais para o campo das paixões do que, propriamente, para o da racionalidade. O próprio Elster reconheceu, em uma oportunidade posterior, que a transposição da estória do nível da racionalidade individual para o campo social ou da institucionalidade política gerava alguns problemas e carecia de uma certa adaptação.[2] A exploração do significado da expressão “entregar-se às próprias paixões”, nesse contexto, carece de um esforço descritivo maior. A retórica do discurso político, a demagogia, o proselitismo, tudo isso acaba jogando uma verdadeira cortina de fumaça sobre o problema principal aqui proposto: o que é e como é possível encontrar algum tipo de racionalidade para as decisões políticas?

Evidentemente, não é minha pretensão dar resposta a esta pergunta nesta coluna. Sem embargo, as intuições de Elster a respeito da ideia de pré-compromisso social podem auxiliar-nos a compreender o papel que o nosso discurso (de juristas ou intelectuais) desempenha no contexto desse “barril de pólvora” em que parece ter-se transformado o cotidiano da política tupiniquim.

Desde o início da corrente legislatura assistimos a uma situação peculiar, desde o governo FHC, de gradativa perda da capacidade da Presidência da República de ditar os rumos da agenda decisória no que tange às questões estratégicas de interesse do governo. De fato, o governo parece ter perdido o controle sobre a coalizão que viabilizava suas ações no Congresso Nacional. Alguns analistas, das mais diversas áreas de formação, começaram atribuir esse fenômeno a um fortalecimento do Legislativo perante o Poder Executivo de modo que se chegou a afirmar que estaríamos vivenciando uma espécie de “parlamentarismo branco”.

Não consigo concordar com nenhuma dessas vertentes de análise. Por um lado, é impossível associar essa nossa experiência a uma ideia de “parlamentarismo branco” porque não convivemos com nenhuma forma de responsabilidade política por parte daquele (ou daqueles?) que exercem a função de chefe(s) de governo.

Apenas esse motivo parece-me suficiente para afirmar que a aproximação entre uma coisa e outra (o nosso momento político e o sistema parlamentarista) é tola. Por outro lado, a aparente perda do controle da agenda decisória pelo governo deve-se mais a um processo de recrudescimento e fortificação de lideranças parlamentares, personalizadas na figura dos presidentes de cada uma das casas, do que a um fortalecimento institucional do poder legislativo.

Esses presidentes conseguiram produzir uma situação interessante: transformaram um órgão colegiado em uma instituição altamente personalizada a ponto de, sem exageros, ser possível falar no “Senado de Renan” e na “Câmara de Eduardo”. Em ambos os casos, os presidentes de cada uma das casas monopolizam os debates e parecem dirigir a pauta de votações com base mais em uma régua de preferências pessoais do que, propriamente, numa preocupação em refletir de forma igualitária os interesses capitaneados pelas mais diversos grupos com representação no Congresso Nacional.

E agora, aproveitando-se cada vez mais do desgaste da Presidência da República e do fato de que as dificuldades do governo parecem mobilizar mais a opinião pública do que a pauta de discussões do Congresso Nacional (resultado, também, do alto contingente de personalismo que reveste o sistema presidencialista de governo), o partido que comanda as duas casas legislativas quer dar o seu golpe de misericórdia. Depois da PEC da Bengala e da PEC da redução da maioridade penal, os próceres da República querem sequestrar também a agenda da reforma política impondo, goela abaixo, o sistema eleitoral para composição da câmara dos deputados que entendem ser o melhor (sic) para curar o problema da crise de representatividade que assola a democracia brasileira.

A proposta de reforma política, que agora aparece no foco de análise, é do PMDB e sofre diretamente a influência de Calheiros e Cunha. Ainda nesta sexta-feira, o partido noticiou, por meio de seu site oficial, que o texto da proposta foi alterado para ampliar o mandato dos senadores de oito para dez anos, além de facilitar o acesso dos partidos ao fundo partidário por meio da redução da cláusula de desempenho (na proposta inicial, 3% do votos válidos na eleição para a câmara, no texto reformulado 2%). Anuncia-se que tais medidas teriam a finalidade de facilitar a aprovação da reforma em plenário, o que já se planeja para o próximo mês. Essa é a única justificativa que pude retirar da notícia que mencionei. É preocupante porque, à essa altura, ficamos a pensar que tipo de reforma sairá desse butim. Ao que tudo indica, para passar, o texto reformador precisa ficar interessante para contemplar interesses dos parlamentares e não os da sociedade.

Mas a pior de todas as propostas é a que diz respeito ao sistema eleitoral para a composição da Câmara. Segundo consta, a fórmula mais adequada para o partido seria aquela conhecida como “distritão”, ou seja, cada estado e o distrito federal seriam considerados um distrito e seriam eleitos os deputados mais votados, na medida correspondente ao número de cadeiras a que cada um desses distritos têm direito (no caso de São Paulo, seriam eleitos os setenta deputados mais votados considerando os votos válidos dos eleitores de todo o Estado). A proposta é tão ruim que, segundo o colunista da Folha de S. Paulo, Bernardo Mello Franco, causou constrangimento ao colega de partido e relator do projeto, deputado federal Marcelo Castro (PMDB-PI).[3]

As desvantagens do sistema são autoevidentes e dispensam uma argumentação mais elaborada. Basta listar os problemas: 1) encarecimento das campanhas, uma vez que os candidatos teriam que se projetar para divulgar suas ideias e propostas em todo o Estado; 2) favorecimento de candidaturas de pessoas públicas, já conhecidas do eleitorado, como celebridades, pseudocelebridades e congêneres; 3) dificuldades de renovação nos quadros da câmara, uma vez que existe, em tese, uma facilidade maior para aqueles que já estão eleitos continuarem a se reeleger; 4) fragmentação partidária acentuada, que dificultará a formação de coalizões, tornando mais difícil a conquista da governabilidade, o que acabará reforçando as possibilidades de reprisarmos episódios de corrupção que, paradoxalmente, uma tal proposta de reforma política pretende debelar.

A modificação do sistema eleitoral para a composição da câmara dos deputados é um ponto delicado da reforma política e, conforme a opção realizada, importará uma série de modificações em toda estrutura eleitoral existente no país, uma vez que a tendência é que o sistema seja espelhado também nas eleições para as assembleias legislativas, câmara de vereadores e câmara distrital. Portanto, esse tipo de decisão não pode ser tomada de afogadilho, justificada na necessidade de se fazer aprovar rapidamente uma reforma política que seria objeto do clamor popular.

Ressalto que, de todos os sistemas eleitorais disponíveis, este proposto pelo PMDB é o pior, rivalizando em ruindade com a proposta de voto em lista, capitaneada pelo PT. O sistema proporcional atual, tido como o vilão da crise de representatividade, tem suas virtudes, e a principal delas, é garantir maior igualdade na disputa entre os partidos e, ao mesmo tempo, propiciar que os interesses mais diversificados possuam alguma representação política efetiva. Funcionando bem, o próprio voto colocaria para fora os partidos nanicos e as chamadas “legendas de aluguel”. O problema é que não funciona e as razões do não funcionamento estão na legislação infraconstitucional e não na Constituição.

Ademais, é necessário lembrar que Constituição de 1988 tem o pluralismo político como um de seus fundamentos, e a escolha do sistema eleitoral não pode perder de vista esta importante premissa: todos os interesses, por mais diversos que sejam, precisam de oportunidades iguais para ter suas ambições formuladas politicamente com possibilidade de influir de forma efetiva nos processos decisórios governamentais. Não é por outro motivo que a mesma Constituição de 1988 estabelece o pluripartidarismo como uma garantia. E para dar sentido a tudo isto, em 1988, optou-se pelo sistema proporcional.

É importante perceber, como já referido acima, que muitos dos problemas do sistema proporcional decorrem na verdade de sua regulamentação infraconstitucional e não de opções constituintes. Nosso modelo de coligações eleitorais e a forma como é realizada a distribuição dos recursos do fundo partidário e do tempo de rádio e TV para os partidos políticos (baseado em um modelo de indexação à eleição anterior) lideram os problemas de nosso sistema eleitoral atual.

Outro sistema muito atraente é o sistema distrital puro. Ele tem o mérito de baratear os custos das campanhas, uma vez que reduz o espaço de divulgação dos candidatos e, em tese, reduz também problemas de representatividade, uma vez que há uma identificação clara entre o eleito e o distrito que ele representa. Todavia, há que se considerar que, por aquilo que se observa em experiências comparadas, esse sistema tende a certa bipolarização partidária e à homogeneização dos interesses com representação política. Quanto a isso, caberia a pergunta: adotando-se um tal modelo, estaríamos cumprindo o compromisso constitucional com o pluralismo político? Se a resposta for negativa, teremos que refletir melhor antes de adotar um tal sistema, sob pena de fazermos letra morta esse importante dispositivo constitucional.

Independentemente das preferências pessoais, o importante é que esse tema seja intensamente debatido e que isso possa ocupar efetivamente o espaço público. Atualmente, toda a energia proporcionada pela ira política está dirigida ao gabinete da presidência da república. Todavia, é preciso ficar atento porque algumas ameaças ao aperfeiçoamento da democracia e de nossas instituições podem estar vindo de outro lugar.

Como vai posto no título desta coluna, a tentativa de aceleração da votação de uma proposta de reforma política, aproveitando-se do clima turbulento e passional a que estamos submetidos, representa um sequestro de uma questão decisiva para os caminhos de nossa democracia por um grupo de interessados que querem claramente acomodar ali interesses dos próprios parlamentares que em nada contribuirão para modificar o status quo da classe política brasileira.

Volto então a Voltaire e seu Memmon. Penso ser importante considerar que o que este conto nos releva é mais a exposição que todo ser humano tem à akrasia do que, propriamente, uma impossibilidade de firmar autorrestrições racionais ou pré-compromissos. Como afirmam Dreyfus e Kelly, “sempre foi difícil agir, em certas situações, segundo os padrões de uma vida boa — os filósofos gregos chamavam a esta dificuldade de akrasia, ou fraqueza da vontade; consiste na incapacidade de fazer o que sabemos ser mais correto”.[4]

Por isso mesmo, importa-nos permanecer vigilantes com relação aos pré-compromissos constitucionais para não terminarmos como o Memmon de Voltaire: sem reforma política de verdade, sem redução de atividades corruptivas e com uma política caolha.  


[1] Cf. Elster, Jon. Ulises y las Sirenas. Estudios sobre Racionalidad e Irracionalidad. México-Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1989.
[2] Cf. Elster, Jon. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Unesp, 2009, p. 167.
[3] Cf. Franco, Bernardo Mello. Samba da Reforma Doida. In: Folha de S. Paulo, opinião, A2, 13.05.2015.
[4] Dreyfus, Hubert. Kelly, Sean Dorrance. Um Mundo Iluminado. Alfragide: Lua de Papel, 2011, Kindle Edition, pos. 180.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!