Procurador acrobata

MPF rejeita denúncia e expõe farsa de procurador da Fazenda

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6 de maio de 2015, 11h55

A denúncia de um procurador da Fazenda Nacional contra seus superiores acabou virando contra o denunciante no mês passado, quando a Câmara Superior do Ministério Público Federal, em Brasília, rejeitou, definitivamente, as acusações e ordenou o arquivamento de um inquérito. A representação criminal pretendia mobilizar o parquet com alegações de que a chefia da Procuradoria da Fazenda Nacional da 4ª Região, em Porto Alegre, ao propor processos disciplinares, estaria “ameaçando” o investigado.

Porém, ao rejeitar, por três vezes, a representação criminal, o MPF acabou por revelar uma série de condutas questionáveis do denunciante, o procurador Hugo César Hoeschl. Entre elas está um possível favorecimento a um devedor do Fisco e a manipulação de textos de jurisprudência para tentar torná-los úteis aos seus propósitos — clique aqui aqui para ler os despachos do MPF-SC.

Hoeschl, que é procurador de carreira da Fazenda Nacional, mas usa como cartão de visitas supostas contribuições na área de Ciência da Informação, é conhecido da Corregedoria da Advocacia-Geral da União e também da Justiça. Ele responde a pelo menos dois processos por desvios. Na Corregedoria da AGU, a quem os procuradores da Fazenda respondem administrativamente em última instância, corre, sob o número 00406.000223/2012-56, apuração sobre sua participação em negócios privados questionáveis. O órgão relatou a conduta ao Ministério Público de Santa Catarina, em 2012, para abertura de processo criminal.

O procurador também é investigado pelo uso de Oscips para ganhar dinheiro de prefeituras sem licitação, como consta na Ação Penal 4444-13.2011.4.01.3400 e na Ação Civil Pública 0027585-03.2007.4.01.3400, ambas tramitando na Justiça Federal do Distrito Federal. A ConJur noticiou a história em 2013 (clique aqui para ler).

O histórico não passou despercebido pelo Ministério Público Federal de Santa Catarina, onde Hoeschl tentou prejudicar seus superiores. Nos seguidos despachos recusando suas denúncias por falta de consistência, o órgão lembrou que o procurador responde a pelo menos dois Processos Administrativos Disciplinares: o PAD 00406.000990/2012-65, que havia começado como Verificação Preliminar 00406.000223/2012-56; e o PAD 00406.000991/2012-18, instaurado a partir da Verificação Preliminar 10145.001657/2011-64.

Os despachos aos quais a ConJur teve acesso são de 2013. Eles foram confirmados, em abril, pela Câmara Superior do MPF, após duas contestações de Hoeschl. Agora, não há mais possibilidade de recurso administrativo. A ordem foi para arquivar definitivamente o Inquérito Civil 1.33.000.002624/2012-15, aberto após representação criminal do procurador contra os procedimentos de investigação. Segundo Hoeschl, os processos foram ilegais.  

Não foi o que entendeu o MPF. No processo 00406.000991/2012-18, por exemplo, aberto pela Corregedoria da AGU, Hoeschl é investigado por assinar parecer favorável à emissão de certidão de regularidade fiscal para uma universidade onde dava aulas, a Unisul — a ligação entre o procurador e a Unisul, aliás, é investigada em outro processo disciplinar, de número 00406.000990/2012-65.

A Corregedoria abriu auditoria porque achou suspeito o trâmite do pedido de emissão da certidão, ao constatar que quem deveria ter processado o pedido era a Receita Federal, e não a Procuradoria da Fazenda. E que mesmo quando as dívidas da entidade fossem inscritas na dívida ativa da União (e, portanto, passassem à competência da Procuradoria da Fazenda), o caso deveria ir para as mãos da Divisão dos Grandes Devedores, da qual Hoeschl nunca fez parte. No fim das contas, o parecer de Hoeschl favorável ao devedor acabou sendo usado pela universidade em um processo judicial, no qual ela conseguiu a certidão.

O modo como esse parecer caiu nas mãos da entidade foi outro mistério. Segundo o MPF, não há, nos registros da Procuradoria da Fazenda, qualquer pedido protocolado de cópia do parecer. Ou seja, não há vestígios oficiais de como a universidade soube do documento e teve acesso a ele. Somente mais tarde Hoeschl admitiu ter ele próprio entregado o parecer à universidade, e disse que o pagamento pelas cópias do processo foi feito posteriormente à PFN.

Mesmo diante da estranheza dos acontecimentos, Hoeschl protestou contra as investigações a seu respeito. Disse que estava sendo acossado por causa de uma opinião técnica. Mas o MPF não comprou a história e concordou com a apuração. “Os procedimentos foram realizados em consonância com as disposições normativas”, diz um dos despachos assinados pela procuradora da República Daniele Cardoso Escobar. Segundo ela, o processo disciplinar não foi aberto para “avaliar o conteúdo jurídico de um parecer, mas sim averiguar os motivos pelos quais a tramitação deste requerimento de certidão não seguiu as normas internas e usuais da Procuradoria”. Por isso, ela continua, não há razão para o denunciante falar em “assédio moral pela suposta depreciação do parecer”.

O procurador fazendário não se conformou. Pediu a reconsideração do pedido, mas foi novamente alvejado. Começou apelando à burocracia, alegando que os documentos que a Advocacia-Geral da União mandou ao Ministério Público para comprovar a necessidade de se apurar sua conduta — baseados, segundo Hoeschl, em um “dossiê apócrifo” — precisavam ser cópias autenticadas. O MPF rebateu, dizendo que os documentos não precisavam de autenticação porque foram expedidos por órgãos públicos, como a Junta Comercial e a própria Justiça, onde é fácil checar, pela internet, a veracidade de decisões.

O MPF expôs até mesmo manipulação indevida de jurisprudência feita por Hoeschl em seus pedidos, para tentar levar o órgão a acreditar que a Justiça exigia a autenticação de documentos em casos como o dele. “O julgado mencionado pelo Representante não guarda relação alguma com a necessidade ou não de autenticação obrigatória de documentos. Pelo contrário, o pequeno trecho destacado nas razões recursais (…) faz parte de frase em sentido diverso”, flagrou o MPF, que chamou a estratégia de “artifício”.

A procuradora Daniele Cardoso Escobar, ainda no documento, revela outra tentativa de fraude: “É curioso que o Representante limita-se a alegar a falsidade deste dossiê, sem, contudo, indicar de forma mais precisa quais seriam as impropriedades dos documentos”, começa. “A única menção a um documento específico refere-se ao uso de uma imagem sua em um crachá, o que, segundo ele, caracterizaria violação à proteção constitucional à imagem.”

Sim, entre as denúncias de Hoeschl estava a de que a foto de um crachá juntada pela AGU entre os documentos era falsa. Mas, para o MPF, o argumento cai pelo fato de que a mesma foto pode ser encontrada no Google Imagens, que aponta como fonte o Instituto i3G, “o qual foi criado justamente pelo Representante e sua esposa”, diz a procuradora.

“Como pode o Representante falar em grave violação ao direito constitucional à imagem quando a fotografia utilizada foi colocada na rede mundial de computadores por ele mesmo?”, questionou a procuradora, antes de reafirmar que o caso deveria ser encerrado e que as apurações da Corregedoria da AGU devem continuar sem empecilhos.

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