Liberdade de Expressão

Direito ao esquecimento não pode ir contra evolução trazida pela tecnologia

Autor

  • Alexandre Fidalgo

    é doutor em Direito pela USP mestre em Direito pela PUC-SP advogado e sócio do escritório Fidalgo Advogados. Integrante do conselho jurídico da Fiesp e do conselho de liberdade de expressão da OAB Federal.

6 de maio de 2015, 8h00

Spacca
Como sabemos, o bom jornalismo é exercido com obediência às premissas de divulgação de fato verdadeiro, de interesse público e mediante um texto pertinente aos fatos publicados. Fato verdadeiro, interesse público e texto pertinente sempre devem ser interpretados de acordo com os valores da liberdade de expressão, o que implica, inclusive, a permissão de crítica áspera, bem como de que a verdade seja a do momento da publicação, estabelecida pela verossimilhança dos acontecimentos revelados.

Há outro importante elemento a ser observado para o exercício do bom jornalismo conhecido como o princípio da atualidade da notícia, que diz respeito à publicação do fato no instante do seu acontecimento, quando guarda, por conseguinte, interesse público, mas que igualmente necessita de uma boa interpretação caso a caso, ou melhor, notícia a notícia. Referido princípio incide diretamente sobre o tema direito ao esquecimento, ao qual essa coluna se dedica.

Desde logo, importa dizer que o assunto já foi há muito enfrentado pelas cortes europeias. Lembremos do caso Lebach. O conflito que chegou à Corte alemã dizia respeito a um documentário produzido pela TV, em 1969, sobre o homicídio praticado pelo soldado Lebach. A ação foi ajuizada pelo autor do crime, que seria citado nominalmente no documentário, apelando para a tese do direito ao esquecimento, sob o forte argumento de ser permitido a si uma efetiva e buscada ressocialização.

O filme foi proibido pela Justiça alemã, caso dele constasse referência expressa ao nome do autor do crime (Lebach). Na ponderação de valores feita pelo Tribunal, considerou-se que o direito de liberdade de imprensa estava assegurado com a produção da película sem a referência ao autor do fato criminoso, preservando-se, assim, o direito subjetivo individual de Lebach de não ser citado nominalmente no documentário.

O caso Lebach é paradigma sempre que o assunto “direito ao esquecimento” vem à baila. E é certo assim pensar, pois o caso envolve todos os elementos empregados no exercício da publicação de uma notícia. Verdade, interesse público e pertinência do texto, bem como atualidade da notícia.

O professor René Ariel Dotti nos informa que, em 1918, a Corte californiana já enfrentara a questão, no caso Melvin vs. Reid. Doroty Davenport Reid, que produziu o filme chamado Red Kimono, no qual retratava a vida pregressa de Grabrielle Darley, que havia se prostituído e era acusada de homicídio, inocentada posteriormente. Gabrielle havia abandonado a vida de prostituição e constituído família com Bernard Melvin. A Corte californiana, atendendo pedido do marido de Gabrielle, que entrara com ação de reparação por conta da alegada violação à vida privada da família, entendeu que uma pessoa tem o direito à felicidade, que inclui estar livre de ataques a seu caráter, posição social ou reputação.

No Brasil, pensamos que a primeira demanda de maior repercussão envolvendo a tese do direito ao esquecimento envolveu publicação de material jornalístico a respeito de Doca Street, autor de homicídio na década de 1970. Em 2003, a TV Globo exibiu reportagem dedicada a contar a histórica do crime, que envolvia, como vítima, personagem de destaque da sociedade brasileira.

Em primeira instância, sob o fundamento de que embora ninguém negue que os fatos que envolveram o autor foram reais, “o julgamento de ‘Doca Street’ pelo assassinato de Ângela Diniz, teve, à época, cobertura televisiva, se não total, ao menos parcial. Como tal, ninguém nega que naquele momento, em que foi realizado o primeiro julgamento, havia interesse público a justificar a divulgação do caso. (…) Só que o tempo passou. A condenação imposta ao autor foi cumprida e veio este a se reintegrar na sociedade”, houve condenação da emissora de televisão a pagar, a título de indenização por dano moral, o valor de R$ 250 mil a Doca Street.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[1], ao julgar a apelação da TV Globo, reformou a sentença para julgar improcedente a demanda, entendimento que prevaleceu e fez coisa julgada, concluindo que “a informação jornalística que apresenta fatos, independentemente da contemporaneidade, e resguarda os seus sentidos originais (…), cumpre função inerente à sua natureza, corresponde ao direito coletivo de ser corretamente informado”.

Há outros julgados sobre o assunto no Brasil[2], mas um em especial ganha importância, pois em breve ocupará a atenção da Corte Suprema[3]. Trata-se de demanda colocada em recurso extraordinário, com repercussão geral reconhecida, em que se discute, sob o enfoque do direito ao esquecimento, se o programa Linha Direta Justiça, também da TV Globo, ao informar acerca do crime cometido contra Aída Cury, em 1958, invadiu direito de privacidade e intimidade da família. O caso já passou pelo Superior Tribunal de Justiça, que afastou a tese do direito ao esquecimento na hipótese. 

A tese do direito ao esquecimento necessariamente evoca os princípios fundamentais da intimidade e da privacidade, na medida em que se pretende uma maior valorização deles em relação a todos os demais, incluindo a liberdade de imprensa, sob o argumento de que a ausência da contemporaneidade da notícia fragiliza o elemento interesse público que estava a legitimar a publicação. Mas como pode ser aplicada a tese do direito ao esquecimento sem resvalar em cerceamento à liberdade de imprensa? Se isso for possível, quais seriam os critérios?

O tempo, ou melhor, “o passar” dele seria o argumento suficiente para a obtenção de tutela jurisdicional impeditiva de uma produção jornalística? Pode ser, se entendermos que a passagem do tempo significa exatamente o esquecimento e, por conseguinte, a estabilidade do passado, sem mais interferência no presente e no futuro, tal como acontece com alguns institutos do direito como a decadência, o perdão, a anistia, a coisa julgada, cuja finalidade é conferir segurança jurídica para a sociedade.

Talvez se pensarmos no indivíduo que tenha sido condenado criminalmente e cumprido integralmente sua pena, necessitando ser ressocializado, a tese do direito ao esquecimento seja uma necessidade para que possa efetivar essa nova fase da vida. É sabido que os condenados que já cumpriram as penas que lhes foram impostas têm direito ao sigilo das folhas de antecedentes e ao direito de exclusão dos registros de condenação do instituto de identificação criminal, o que corrobora a ideia de estabilização do passado e do direito de não ser lembrado pelos fatos pretéritos.

Da mesma forma como dissemos haver um sentimento de aplicação do direito ao esquecimento àqueles que buscam uma nova oportunidade na sociedade, impedindo que fatos acontecidos não sejam objeto de futuras notícias, é de se perguntar se não seria também ideal e legítimo que a sociedade tenha conhecimento da historicidade dos acontecimentos da vida, desde que presentes os elementos verdade, interesse e pertinência.

Daí entendemos ser determinante, tal como acontece no material jornalístico revestido do clássico princípio da atualidade, um juízo de ponderação entre os princípios da liberdade de imprensa e da personalidade, em aparente conflito, em cada caso concreto, com suas circunstâncias e sujeitos envolvidos. O requisito da atualidade da notícia, na hipótese de publicação de fatos pretéritos, será analisado juntamente com o interesse público da informação, necessário quando se tratar de documentário, biografia e notícias que necessitam fazer referências ao passado, para contextualizar ou mesmo quando se revestem, na atualidade, de interesse.

Pensamos haver um equívoco nas tutelas jurisdicionais, sob o fundamento do direito ao esquecimento, que determinam a retirada de notícias ou informações, veiculadas exatamente no tempo dos acontecimentos, depositadas nos sítios jornalísticos e de informação, simplesmente pela facilidade de acesso. Parece-nos razoável a discussão a respeito da tese do direito ao esquecimento quando aplicada à informação a ser dada hoje com referência a fatos e acontecimentos do passado. Nesse sentido, como falamos, há de se ponderar entre os valores fundamentais presentes. Não é o mesmo que, sob à luz dessa discussão, suprimir notícias ou referências há muito publicadas mas que podem ser consultadas pela internet ou em qualquer outro repositório físico (biblioteca, por exemplo). A tentativa de remoção dessa informação é o apagamento da historicidade da vida.

Muito embora a União Europeia tenha ascendido para um debate acerca da perenização das informações pessoais em poder de terceiro, controlando, inclusive, o seu uso, especialmente na rede mundial de computadores, continuamos a entender que medidas como esta, de se retirar do noticiário registros pretéritos, publicados ao tempo do fato, constitui inegavelmente censura.

Afastada a confusão referida acima, podemos pensar em estabelecer critérios para a aplicação do direito ao esquecimento aos fatos que hoje se quer publicar, mas que se referem ao passado, sem a presença aparente do princípio da atualidade da notícia. Entendemos que estando presente uma das três situações abaixo a ser analisada na hipótese concreta, informações dessa natureza não podem ser impedidas de publicação, mesmo sob o argumento da ausência de atualidade ou, para alguns, de perdimento do interesse público da informação:

 

  1. Fato de relevância histórica (social, política, econômica, acadêmica, etc.). Exemplos: fatos como os crimes cometidos por Doca Street, ou pelo bandido da luz vermelha, bem como os fatos envolvendo a ditatura militar, o impeachment de Collor, o mensalão do PT, o petrolão — e seus personagens e protagonistas — poderão ser objeto de reportagens futuras;
  2. Fato envolvendo personalidade pública ou agente público. Exemplos: mesmo com o passar do tempo, notícia a respeito da pensão paga por Renan Calheiros a Monica Veloso, dos métodos políticos de Antônio Carlos Magalhães, da trajetória profissional e política de José Sarney e seus filhos, entre outros, poderão ser sempre objeto de publicação futura;  
  3. Fato que não pode ser desassociado da informação, por se tratar de elemento central da notícia. Exemplos: Doca Street, Ângela Diniz, Aída Curi, Fernando Collor são personagens que não podem ser desassociados da informação de fatos em que foram protagonistas, constituindo elementos inseparáveis desses acontecimentos.

 

Certamente a discussão a respeito do tema está bem longe do seu esgotamento, mas ao intérprete cabe não permitir seja determinado, sem qualquer critério, o impedimento a citações e a referências do passado, especialmente, a nosso ver, quando estiverem presentes as hipóteses que identificamos logo acima. Registre-se também que não se pode aceitar que publicações realizadas ao tempo do fato possam ser objeto de censura, com a determinação de que nomes e registros sejam suprimidos ou mesmo abreviados da informação simplesmente pela facilidade de acesso deles pela rede mundial de computadores. A nosso ver, essa última hipótese não constitui aplicação da tese do direito ao esquecimento, mas sim uma nova versão da historicidade da vida.

Contar uma nova história com fatos pretéritos, formando uma nova obra informativa, seja de que natureza for, certamente é o campo do direito ao esquecimento, impondo-nos perseguir a dedução dos critérios para a adoção dessa sistemática. Impedir que os indivíduos acessem informações pretéritas, obras antigas, com a facilidade que o aprimoramento tecnológico traz, com igual certeza, não é o âmbito do direito ao esquecimento, mas sim a permissão que o indivíduo viva neste tempo, com as facilidades que a atualidade impõe aos que pretendem se informar e as vicissitudes que recaem sobre aqueles que foram objetos de notícias, sob pena de se relegar ao cidadão atual uma existência em época diferente da que vive.

 


[1] Processo 2003.001.103757-4

[2] Rcl 15955, STJ

[3] ARE 8338, Resp 1.335.153/RJ

Autores

  • Brave

    é sócio titular do escritório Fidalgo Advogados, doutorando em Direito Constitucional na USP; mestre em Processo Civil pela PUC-SP; especializado em Direito da Comunicação e Direito Penal.

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