Construção de alternativas

A importância de trabalhar com fatos e de projetar consequências

Autor

  • Taís Schilling Ferraz

    é mestre em Direito pela PUCRS doutoranda em Ciências Criminais; professora titular do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) da ENFAM; desembargadora do TRF-4 e integrante do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal.

2 de maio de 2015, 9h04

Reduzir a maioridade penal ou manter integralmente o atual sistema de responsabilização do adolescente que comete um ato infracional?

Estas possibilidades situam-se nos dois extremos da discussão que hoje se trava no Congresso Nacional acerca da responsabilização dos adolescentes, de 12 a 18 anos, que ingressam na criminalidade, um fenômeno complexo e multifacetado, que vem sendo avaliado ao influxo de fortes emoções, num contexto em que há pouco espaço para construção de alternativas.

Ninguém questiona que um ato infracional de natureza grave praticado por um adolescente, como é o caso de um homicídio, um latrocínio, um estupro, gere perplexidade e comoção.

Estas reações, potencializadas pela cobertura muitas vezes irresponsável dos veículos de comunicação, convertem-se facilmente em indignação, e encontram eco imediato na classe política, mandatária do poder social, que se apressa em conceber alternativas rápidas e de impacto midiático, muitas vezes desacompanhadas do necessário aprofundamento do problema, que nada tem de singelo.

Trata-se da chamada legislação do pânico.

É neste contexto que se inserem as propostas de redução da maioridade penal. São projetos de emenda constitucional, nascidos e alimentados das tragédias amplamente noticiadas envolvendo adolescentes.

São iniciativas que abstraem as estatísticas, que, se fossem consultadas, revelariam que o que está concentrado na adolescência é a vitimização pela violência e não a autoria de infrações violentas.

Uma breve análise de dados

O Brasil registra números alarmantes de jovens vítimas de homicídio. Aqui, a proporção é de 57,6 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes, segundo o Mapa da Violência 2014,1 muito acima do que a OMS classifica como índice de violência epidêmica (10 homicídios para cada 100 mil habitantes) e muito acima da própria média nacional, que está em 29 para cada 100 mil.

Segundo o Mapa da Violência 2014, ocorre um brutal incremento dos homicídios a partir dos 13 anos de idade: as taxas pulam de 4,0 homicídios por 100 mil e sobem até 75,0 até a idade de 21 anos. A partir desse ponto, há um progressivo declínio. “Nessa faixa jovem, são taxas de homicídios que nem países em conflito armado conseguem alcançar”.2

Na comparação com os índices internacionais, o Brasil ocupa a oitava posição no ranking de homicídios, na proporção com a quantidade de habitantes.3 Em números absolutos, porém, segundo dados da UNICEF,4 é o segundo país no mundo, atrás apenas da Nigéria.

Por outro lado, a participação da população, entre 12 e 18 anos, na prática de atos violentos, é muito baixa e vem decrescendo. Levantamento realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República5 a partir de dados da Coordenação Geral do SINASE, do CENSO SUAS/MDS e do CNJ, chegou a resultados surpreendentes, que demonstram que, diferentemente do que é alardeado nos veículos de comunicação, houve redução dos atos infracionais com violência contra a pessoa.

Considerando-se apenas os adolescentes autores, entre os anos 2002 e 2011, caiu a proporção de homicídios dolosos, latrocínios, estupros e lesões corporais, dentre os atos infracionais. E confrontando-se o número de adolescentes que cumpre medidas socioeducativas (não exclusivamente por atos violentos), com os dados do IBGE, chegou-se a 0,09%. O Censo aponta que estão na faixa etária da adolescência cerca de 21 milhões.

Os dados do mesmo Levantamento realizado pela SDH/PR registram, ainda, que houve aumento em 10,6% da taxa de restrição e privação de liberdade entre 2010 e 2011, o que é substancial. No ano de 2010 o Brasil tinha 8,8 adolescentes em internação, para cada grupo de 10 mil habitantes. Em 2011 esta proporção subiu para 9,5 por 10 mil. Aumentou, portanto, a restrição à liberdade de adolescentes, e este aumento não ficou restrito às infrações praticadas com violência à pessoa.

Um estudo mais recente do CNJ6 demonstra que há muita variação na incidência dos atos infracionais nas diversas regiões do país. Em comum, porém considerando-se apenas os adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação, a grande concentração no país situa-se no roubo, no tráfico de drogas e no furto, e não no homicídio, no latrocínio e no estupro, como se costuma alardear.

As bases do atual sistema socioeducativo

Ao forte movimento que vê na redução da maioridade penal a solução para a criminalidade e para a sensação de insegurança, contrapõem-se, também de maneira ardente, os defensores do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA e dos seus princípios norteadores. São, na ampla maioria, integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, os agentes do Sistema de Justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública), do Poder Executivo, especialmente nas áreas relacionadas a direitos humanos, Justiça e assistência social, dos Conselhos de Direitos e Tutelares, e de representações da sociedade civil organizada.

Defendendo, de forma abnegada, que o tema não seja tratado de forma simplória e que seja dada ao sistema socioeducativo a oportunidade e prioridade necessárias, até hoje não viabilizadas, para que alcance maior efetividade, sustentam que tratar um adolescente como adulto significa negar-lhe as oportunidades que decorrem de ser pessoa em peculiar condição de desenvolvimento, sujeito de direitos, a quem a sociedade deve dedicar atenção integral, ao invés de segregar do seu convívio e ampliar o quadro de exclusão de onde, como regra, a violência se origina.

Recuperar as ideias e refletir sobre o caminho que se decidiu trilhar, quando da construção e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente auxilia na compreensão das razões que foram determinantes, dentre muitas outras escolhas, para a manutenção da maioridade penal nos dezoito anos.

Decidiu-se, já com a Constituição de 1988, pela ruptura com o paradigma menorista até então vigente, que qualificava e isolava, dentre as pessoas, os chamados menores, e que os identificava como seres em situação irregular, sujeitos à tutela do Estado.7

As escolhas então feitas não foram apenas opções de política criminal e não partiram da avaliação de que o adolescente teria menores condições de discernir entre o certo e o errado e de avaliar a eventual gravidade de seus atos. Ao contrário disso, a decisão de reconhecê-lo como sujeito de direitos (e não mais como um objeto de tutela pelo Estado), um dos grandes pilares de todo o sistema atual, sempre foi acompanhada da reconhecimento da importância da responsabilização pelos atos praticados.

Estudos científicos sobre a formação biológica e psicossocial dos mais jovens demonstram que o desenvolvimento da estrutura do cérebro responsável pela tomada de decisões, pelo controle das emoções e pelo planejamento — o córtex pré-frontal, ainda está longe de ser considerado completo na fase da adolescência. Já se sabe que o amadurecimento pleno só ocorre em torno de 30 anos.8 Isto oferece elementos para explicar, ao menos em parte relevante, as razões pela quais as atitudes de um adolescente são muito mais marcadas pela impulsividade, irritabilidade e confusão que as de um adulto.

Também na base do influxo que deu origem ao ECA, que não foi exclusivamente brasileiro, mas que acompanhou um movimento que ocorria em âmbito internacional,9 esteve a comprovação de que, por seu peculiar estágio de desenvolvimento biológico, psicológico e social o adolescente é mais receptivo que o adulto a elementos internos e externos que interferem na formação da sua identidade e mais propenso ao aprendizado e ao novo.

Estes e outros importantes pressupostos formaram as bases da política de responsabilização gradativa do adolescente que pratica atos infracionais, e não a ideia, falsamente alardeada, de que ele não teria ainda consciência da ilicitude de seus atos. O que existe na adolescência é, ainda, uma maior dificuldade de controlar os impulsos e, em contrapartida, uma maior facilidade de aprender e de se adaptar. Daí a opção de centrar o escopo muito mais na educação do que no mero castigo.

Retomando a análise de fatos, é importante trazer, também, à balança, o retrato das unidades do sistema socioeducativo, que o Estado, por seus diversos órgãos e a própria sociedade parecem não conseguir enxergar, o que vem dando ensejo a que alguns propaguem soluções que não exijam passar os olhos na realidade, por ser mais fácil é encarcerá-la, dando-lhe as costas.

Resoluções do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), já definiam, desde 1996, parâmetros para a estruturação e o funcionamento das unidades de internação e semiliberdade de adolescentes. Concebeu-se que as unidades de internação seriam espaços com autonomia técnica e administrativa, com quadro próprio de pessoal, que desenvolveriam programas de atendimento e projetos pedagógicos específicos. Do ponto de vista estrutural, definiu-se que o atendimento em cada unidade não deveria ultrapassar 40 adolescentes, para que houvesse assistência individualizada, evitando-se os grandes complexos de internação. Que deveria haver interiorização das unidades para garantir que o adolescente mantivesse contato com a família no processo socioeducativo. Estabeleceram-se condições mínimas de serviços como saúde, assistência social e psicológica e, em especial, educação.

O que se verifica, porém, é que a maioria das unidades de internação está longe de atender a tais parâmetros.

As inspeções realizadas periodicamente pelos promotores de justiça e pelos magistrados nestes centros revelam o desprezo do Estado e da própria sociedade para com o processo de socioeducação do adolescente infrator.

Quanto à capacidade das unidades, por exemplo, 61% internam mais do que 40 adolescentes. Na região Sudeste apenas 11% atendem menos de 40 internos, as demais se classificam como grandes centros de internação. Em estados como Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e Roraima, todas as unidades estão fora do parâmetro normativo. Há superlotação em 16 estados, chegando a situações de até 300% de ocupação, e a maior parte dos estabelecimentos não separa os internos provisórios dos definitivos, nem os divide por idade ou pelo tipo de infração cometida, em total descumprimento da lei. São fatos constatados e registrados nos relatórios das inspeções realizadas pelos promotores de justiça no ano de 2013 e consolidados pelo Conselho Nacional do Ministério Público. 10

No critério proximidade das famílias, os números são também surpreendentes. Em todo o Brasil, por ocasião das inspeções realizadas em 2013, dos adolescentes privados de liberdade, no mínimo 4.546 adolescentes estavam sendo mantidos em unidades distantes de suas referências familiares, com sério comprometimento do acompanhamento e do apoio familiar, pressupostos fundamentais, para a eficácia do processo socioeducativo. O parâmetro do distanciamento, aqui, foi utilizado tendo-se por bases as unidades existentes no respectivo estado e a internação naquela situada mais próxima da família de cada interno. Considerando que há um grande déficit em muitos estados no fator regionalização das entidades, a mais próxima pode ser a única existente, e a tendência é de que muito mais internos sejam privados do contato com suas famílias.

No critério educação os números foram desanimadores. Em uma grande quantidade de unidades, sequer há salas de aula minimamente equipadas. Em muitos casos, não há professores alocados para a função e há necessidade de preparo pedagógico específico diante da realidade de cada adolescente, sendo comum que o professor, num mesmo momento, em uma mesma sala, tenha que lecionar para alunos que se encontram em níveis de aprendizagem absolutamente distintos, o que obviamente dificulta qualquer tentativa de atenção individualizada.

O relatório do CNMP compara, ainda, o perfil dos adolescentes em internação com os dados de evasão escolar da Síntese de Indicadores Sociais, divulgada em 2010 pelo IBGE, fazendo a relação entre os dois indicadores e constatando que a faixa etária com maior índice de evasão escolar é também a que apresenta maior número de internos nos sistemas de internação e de semiliberdade (16 a 18 anos).

Como apostar na educação como base fundamental para o sucesso do atendimento socioeducativo em tais condições?

A solução, então, é reduzir a maioridade penal, jogando os adolescentes no sistema prisional, com todas as trágicas e muito conhecidas condições de encarceramento existentes, e exonerando o Estado de qualquer responsabilidade, ao “encarcerar” toda a problemática envolvida em um tema desta complexidade?

Da narração dos fatos não decorre esta conclusão.

O processo de decisão sobre qual o melhor sistema de responsabilização do adolescente que pratica ato infracional encontra-se cercado de condicionantes que não podem ser simplesmente desprezadas.

É necessário trazer à ponderação desde elementos puramente racionais de convicção, jurídicos, fáticos e mensuráveis, até avaliações sobre as consequências da decisão que venha a romper com o atual paradigma ou decidir pela sua integral manutenção.

Sem correr o risco de enveredar pelas polêmicas que cercam as teorias consequencialistas e de partir para o exame de propriedades e fatores capazes de definir uma decisão como moralmente correta ou errada, o fato é que a escolha do melhor sistema jurídico para a responsabilização do adolescente por atos infracionais não pode ser apartada de exercícios de projeção dos efeitos que seriam alcançados pelas eventuais medidas que viessem a ser implementadas.

A segunda parte deste artigo estará direcionada à realização de alguns destes exercícios de projeção.

1 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2014. Os Jovens do Brasil. Brasília. Secretaria Geral da Presidência da República, p. 29 Disponível em http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf. Acesso em 15 abr. 2015.

2 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Op. cit., p. 24.

3 WAISELFISZ, Julio Jacobo. Op. cit., p. 72.

4 UNICEF BRASIL. Disponível em http://www.unicef.org/brazil/pt/media_29163.htm. Acesso em 15 abr. 2015.

5 SECRETARIA DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – SDH. Atendimento Socioeducativo ao Adolescente em Conflito com a Lei: Levantamento Nacional 2011. Brasília, 2011. Disponível em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-e-adolescentes/pdf/SinaseLevantamento2011.pdf. Acesso em 15 abr. 2015.

6 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Panorama Nacional. A Execução das Medidas Socioeducativas de Internação. Brasília, 2012. Disponível em http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf. Acesso em 15 abr. 2015.

7 VOLPI, Mario e SARAIVA, João Batista Costa. Os Adolescentes e a Lei. O direito dos adolescentes, a prática de atos infracionais e sua responsabilização. San José, Costa Rica: Programa Sistema Penal e Direitos Humanos – ILANUD/Comissão Européia, 1998.

8 PALÁCIOS, Ester. Desenvolvimento Cognitivo na Infância e na Juventude. Educação em Revista n. 87. Disponível em <http://www.cipiranga.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=404:desenvolvimento-cognitivo-na-infancia-e-na-juventude&catid=62:artigos>.

9 Instrumentos internacionais vinham positivando em seus textos o primado da proteção integral, lançando as bases para a construção de um novo patamar normativo em termos de dignidade dos seres humanos com menos de 18 anos. As Normas de Beijing foram aprovadas através da Resolução 40/33 da Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 29 de novembro de 1985. As Diretrizes de Riad foram aprovadas no 8ºCongresso das Nações Unidas, em dezembro de 1990. As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade foram adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1990. A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada através da Resolução 44/25 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 20 de novembro de 1989, entrou em vigor no Brasil com a publicação do Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990.

10 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Um olhar mais atento às unidades de internação e semiliberdade para adolescentes. Relatório da Resolução 67/2011. Brasília, 2013. Disponível em http://www.cnmp.gov.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Relat%C3%B3rio_Interna%C3%A7%C3%A3o.PDF.

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