Embargos Culturais

A tese de livre-docência do
jurista Manuel de Figueiredo Ferraz

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

28 de junho de 2015, 8h01

Spacca
Manuel de Figueiredo Ferraz (1923-2013) foi jurista notável com extensa folha de serviços na vida institucional e burocrática brasileira, vivida especialmente na cidade de São Paulo. Membro indicado na composição inicial do Tribunal de Contas desse Município (criado em 1969), mais tarde Secretário de Negócios Jurídicos da Prefeitura de São Paulo; fora também vereador na capital paulista.

Doutorou-se pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde também defendeu tese livre-docência em Direito Civil. A tese tratou de assunto de Direito Romano, explorando o tema do tribunato da plebe[1]. Prefaciada por Alexandre Corrêa, a tese é uma importantíssima contribuição nacional para o estudo de nossa tradição normativa. No núcleo, Figueiredo Ferraz aproximou o tribuno da plebe do ombudsman, tal como presente em vários países e organizações.

O tribuno da plebe detinha amplos poderes de veto. Aqui, um ponto que passa ao largo de cientistas políticos e de constitucionalistas. O veto é uma forma de se produzir legislação, ainda que negativa, pelo menos metaforicamente. Há necessidade de estudo profundo e definitivo sobre o veto no direito brasileiro, lançado pelo Presidente, por inconstitucionalidade ou interesse público. O veto é arranjo institucional que radica atuação do tribuno da plebe.

Figueiredo Ferraz valeu-se de fontes primárias, bem como prestigiou os romanistas brasileiros, a exemplo de Spencer Vampré, Silvio Meira, Matos Peixoto e o próprio Alexandre Correa. Explorou também autores clássicos, como Tito Lívio e Cícero, a par dos gigantes da historiografia clássica, a exemplo de Gustav Glotz, Theodor Mommsen, Fustel de Coulanges e Césare Cantu.

Figueiredo Ferraz historiou a plebe romana, desde as origens da cidade. Identificou os dissensos entre patrícios e plebeus, especialmente a partir dos direitos que os arranjos institucionais romanos contemplavam a ambos. A lei das XII tábuas, e sua abrangência, é um ponto de inflexão na construção do direito público romano, que Figueiredo Ferraz também situa em um contexto de luta de classes.

Os poderes gerais dos tribunos são explicitados, sobremodo quanto a uma imaginária jurisdição criminal, a usarmos uma linguagem de hoje. Era por intermédio da intercessio que o tribuno da plebe impugnava magistrados e instituições políticas, designadamente aos cônsules, aos ditadores (em épocas de intervenção), aos censores, ao próprio Senado, a par das assembleias populares.

Os tribunos da plebe exerceram importante papel nas discussões relativas à reforma agrária (é o tema do ager publicus), o que nos remete à história dos irmãos Graco. Tibério, por exemplo, chegou ao tribunado em 133 a.C., época em que empreendeu uma série de propostas reformistas, com sabor de verdadeira revolução social. Figueiredo Ferraz nos remete, nesse passo, à tentativa de Tibério no sentido de reverter aos cidadãos e aliados romanos as áreas recuperadas pelo Estado. A morte de Tibério, cujo corpo fora jogado no Tibre, é o desate desse importante ensaio de reforma social.

Caio Graco deu continuidade à obra do irmão, defendendo a lei frumentária, que suscitava simpatia social, e que contou com o apoio de camponeses, do exército, do proletariado e dos negociantes. Caio também foi assassinado. A mãe dos valorosos Graco, de nome Cornélia, sofrera do Senado, inclusive, a proibição de usar o luto pela morte dos filhos.

Um estudo sobre a decadência do tribunado é o ponto alto da tese de Figueiredo Ferraz. De algum modo, retomando o passado romano, Figueiredo Ferraz problematizou questões que nos afetam recorrentemente e que nos mostram sempre carentes de defensores de interesses que são verdadeiramente públicos.

Uma belíssima tese, publicada em 1989; a partir de então, rareiam entre nós contribuições inteligentes e bem pesquisadas de substrato romanístico. O problema da cultura jurídica contemporânea não está no esquecimento e no abandono do latim. A penúria dessa cultura presente pode estar na amnésia da tradição civilística clássica e na renúncia das fontes primárias. Consagra-se um adesismo fácil à principiologia da simplificação, que tomou o lugar do circo, e dos textos de síntese, que visam a ganhar o pão.


[1] Ferraz, Manuel de Figueiredo, Do Tribunado da Plebe, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989.

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