Observatório Constitucional

A constitucionalidade da
redução da maioridade penal

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27 de junho de 2015, 8h00

Nesta coluna, discutirei a alegação de que qualquer proposta de emenda à Constituição que reduza a idade máxima de inimputabilidade penal é inconstitucional por violar cláusula pétrea[1]. No caso, a violação seria a do inciso IV do §4º do artigo 60, da Constituição Federal. O argumento baseia-se, corretamente, em que os direitos e garantias individuais protegidos não se encontram apenas no artigo 5º, da Lei Fundamental, mas por todo o texto da Carta, e até fora dele, conforme o § 2º do artigo 5º. Sendo assim, o seu artigo 228 conteria um direito fundamental que, como tal, não poderia ser restringido sem violar as limitações materiais ao exercício do poder constituinte derivado. Em síntese este é o argumento pela inconstitucionalidade da PEC 171.

Apesar de sustentado com brilhantismo e solidez por muitos juristas e políticos brasileiros, a interpretação não faz consenso, e por boas razões.

Para entendermos os argumentos dos que apoiam a redução da maioridade penal, precisamos começar por compreender o que quer dizer cláusula pétrea a partir do próprio texto constitucional. Diz o § 4º do artigo 60:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I – a forma federativa de Estado;
II – o voto direto, secreto, universal e periódico;
III – a separação dos Poderes;
IV – os direitos e garantias individuais.

Portanto, o texto constitucional não veda, em sua literalidade, a alteração das regras relativas àqueles quatro assuntos ali enumerados. Ele veda, isso sim, que futuras alterações do texto constitucional tendam à abolição de algum daqueles quatro pilares da Lei Fundamental. Em outras palavras, viola o §4º do artigo 60 toda e qualquer emenda à Constituição que vá na direção da extinção daqueles valores básicos.

O texto do § 4º é, portanto, bastante equilibrado. Não é preciso que uma emenda revogue pura e simplesmente a separação de poderes ou os direitos e garantias individuais para ser considerada inconstitucional. Tampouco basta uma alteração superficial da norma para que se ultrapassem as limitações materiais ao exercício do poder constituinte derivado. A violação ocorre quando a alteração situe-se em algum lugar entre aqueles dois extremos. É aqui que a literalidade do texto deixa de ser o guia para os que se questionam sobre o que configura uma violação a cláusula pétrea e passa a caber ao intérprete a busca por uma justa medida do que configura uma reforma que tenda à abolição de um daqueles valores fundamentais.

O Supremo Tribunal Federal e a doutrina vêm há anos buscando essa justa medida, e a formularam ao redor da noção de núcleo essencial. Nas palavras de Paulo Gustavo Gonet Branco, as cláusulas pétreas não têm “por meta preservar a redação de uma norma constitucional”, mas, sim, “imunizar o sentido dessas categorias constitucionais protegidas contra alterações que aligeirem o seu núcleo básico ou debilitem a proteção que fornecem”[2].

Uma formulação prática dessa ideia pode ser encontrada na decisão da ADI 3.367, que impugnou a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pela PEC 45/2004, principalmente por violação ao princípio da separação de poderes. Embora aquele precedente trate de independência do poder Judiciário e de separação de poderes, a forma como a questão foi posta ali pode servir de guia na discussão da redução da maioridade.

Ali, antes de entrar na definição do que seria uma violação à cláusula pétrea, o relator, ministro Cezar Peluso, formulou a seguinte questão:

4. À luz permanente dessa ideia, analiso a alegação de que a criação do Conselho Nacional de Justiça, com a estrutura e as competências outorgadas pela Emenda nº 45/2004, atentaria, mais que contra a norma do artigo 2º da Carta, contra o autêntico sistema constitucional da separação dos Poderes.

Portanto, para o relator, a verdadeira questão é de saber se a Emenda atentaria contra o próprio sistema da separação de Poderes, e não contra esta ou aquela regra. Em outras palavras, a reforma teria que ser de tal monta que solapasse as estruturas do sistema da separação de poderes.

Nessa linha, entendo que antes de afirmar que a redução da maioridade penal violaria uma cláusula pétrea eventualmente contida no artigo 228, seria preciso perguntar-se o que, exatamente, no artigo 228, é um direito e qual o seu núcleo essencial, para depois analisar se a PEC 171/1993 realmente debilita a proteção ali oferecida.

Começando novamente pelo texto, diz o artigo 228:

Artigo 228. São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial.

Trata-se, me parece claro, de uma regra sobre a inimputabilidade penal e sobre outras formas de imputabilidade, que não a penal (“sujeitos às normas da legislação especial”). Os que estiverem abaixo da idade ali discriminada, estão sujeitos, mesmo quando cometam crimes, a um tipo especial de imputabilidade, enquanto os maiores sujeitam-se à imputabilidade penal. Em outras palavras, está-se a falar em dois regimes jurídicos distintos aplicáveis a inimputáveis e a imputáveis.

Nessa interpretação, o conteúdo normativo essencial do texto não está na idade ali fixada, mas sim na criação de um regime de imputabilidade distinto para os adolescentes, que, àquele momento, a Constituição estabeleceu que eram os menores de 18 anos. Alterações da norma que fossem no sentido de vulnerar estruturalmente ou abolir pura e simplesmente o regime da imputabilidade especial, aí sim, feririam cláusula pétrea, por atingir o núcleo essencial do artigo.

Pois bem, a redução da maioridade penal na forma proposta pelo texto da PEC 171/1993 que está para ir a votação foi bastante cuidadosa com o núcleo essencial da proteção conferida aos adolescentes.

Em primeiro lugar, ela limitou a inclusão dos menores de 18 e maiores de 16 anos no regime da imputabilidade penal aos casos em que o infrator tenha cometido crimes de gravidade aguda, em que quase sempre há atentado à vida ou à integridade física da vítima. Com isso, respeitou-se de forma bastante clara a razoabilidade e até a proporcionalidade na alteração da norma constitucional.

Em segundo lugar, ela prevê que os menores de 18 anos e maiores de 16, cumpram suas penas em estabelecimentos separados tanto dos menores de 16 quanto dos maiores de 18. Com isso, evita-se que os menores de 18 sejam subitamente misturados com adultos condenados criminalmente, como com aqueles que se inserem no regime da imputabilidade especial. Essa medida mantém a um só tempo a proteção aos que se enquadram no regime especial de imputabilidade e a proteção aos que passarão a ser enquadrados na imputabilidade penal.

Nesse ponto, com base na interpretação que defendi para o artigo 228, a PEC 171/1993 foi bastante razoável, limitando-se a alterar a idade de quem se enquadra no regime da imputabilidade penal, e mesmo assim restringindo esse enquadramento a crimes graves, mantendo ainda o cumprimento da pena em estabelecimento próprio.

Assim, se a redução da maioridade penal em si, na minha opinião, não afrontaria cláusula pétrea, desde que sem reduzir demasiadamente a idade máxima, com as alterações trazidas pela PEC 171, moderadas, cercadas de cuidados e incontestavelmente preocupadas em preservar aspectos da proteção especial para os maiores de 16 anos, é quase impossível sustentar que ela viola o núcleo essencial da norma contida no artigo 228, da Constituição.

Creio, portanto, que a alteração pretendida pela PEC 171, de 1993, supera os argumentos contra sua constitucionalidade, com todas as vênias aos que pensam o contrário.

Se não bastassem os argumentos jurídicos pela superação da questão da admissibilidade, existem argumentos e debates de outra ordem que o destravamento da tramitação da PEC 171 permitirá que se desenvolvam. Isso pode levar a um amadurecimento institucional da sociedade brasileira.

O primeiro desses argumentos diz respeito à forma como as demandas da população são captadas e processadas pelas instituições políticas. Refiro-me à alegação de que a redução da maioridade penal seria uma resposta irracional a uma demanda passional de uma sociedade histérica após a revelação midiática de algum crime chocante. Penso o contrário. A PEC 171 foi proposta em 1993, há mais de 20 anos, e nunca deixou de ser debatida. Além disso, em abril de 2013, a deputada Andreia Zito (PSDB/RJ) propôs um projeto de lei alterando várias normas do Estatuto da Criança e do Adolescente a fim de permitir que os adolescentes que praticassem determinados tipos de crimes, mais graves, pudessem passar mais tempo internados. O PL 5.454 não reduzia a maioridade penal e cercava-se de cuidados protetivos para permitir a internação mais longa dos infratores. Mesmo assim, causou um enorme debate cujo saldo foi bastante positivo. Portanto, não é verdade que a opinião da sociedade e dos seus representantes em relação ao problema da criminalidade entre os adolescentes seja superficial, obscurantista, ou qualquer outro adjetivo desqualificador que se lhe queira apor. Trata-se, isto sim, de um debate já bastante maduro e que deve ser levado a sério, ainda que, por sejam quais forem as razões, a PEC venha a ser rejeitada.

A superação dessa etapa de desqualificação do debate sobre a maioridade no âmbito da sociedade e dos políticos que resolveram dele participar é importante para a própria democracia brasileira. Não é possível que depois de trinta anos de retorno da democracia, esse tipo de argumento continue a produzir efeitos deletérios sobre o debate público.

Em segundo lugar, está o argumento sobre o estado caótico das nossas prisões. Esse foi um dos principais fundamentos usados pelo próprio ministro da Justiça para posicionar-se contra a redução da maioridade penal. Disse o ministro:

O nosso sistema prisional gera unidades que são verdadeiras escolas de crime. Dentro delas, atuam organizações criminosas que comandam a violência fora. Todos nós sabemos disso. Que boa parte da violência que nós temos na nossa sociedade, dos crimes, das drogas e das situações que atingem profundamente a nossa vida cotidiana e aterrorizam nosso cidadão é comandada de dentro dos presídios.[3]

Segundo as informações divulgadas nos veículos mais autorizados, o ministro da Justiça parece ter razão. Ocorre que essa constatação triste não pode ser usada apenas como argumento para enterrar o debate sobre a redução da maioridade penal, nem aparecer de tempos em tempos, quando alguma autoridade contrária a uma proposição legislativa quer enterrar a discussão. Ela não é a conclusão de um debate, mas o início de outro, já demoradamente devido à sociedade, sobre as condições de vida nas prisões brasileiras.

O argumento se torna particularmente desolador quando se tem em conta que o ministro da Justiça, que já havia afirmado mais ou menos a mesma coisa em 2012[4], é ninguém menos que a maior autoridade da área de planejamento, coordenação e administração da Política Penitenciária Nacional, conforme afirma a Lei 10.683, de 2003:

Artigo 27. Os assuntos que constituem áreas de competência de cada Ministério são os seguintes:
XIV – Ministério da Justiça:
f) planejamento, coordenação e administração da política penitenciária nacional;

Finalmente, mais recentemente, levantou-se contra a redução da maioridade penal a alegação de que o ECA nunca foi implementado e que isso é mais importante do que a resposta repressiva sugerida pela PEC 171. Ora, essa questão é uma questão autônoma, que, felizmente surgida, deve continuar a ocupar espaço no debate público, e não apenas servir de contra-argumento em relação à redução da maioridade.

Enfim, a superação da questão da constitucionalidade da redução da maioridade penal, em geral, e da PEC 171, em especial, me parece ser não só possível do ponto de vista jurídico, como desejável do ponto de vista político-institucional. A longa permanência de algumas demandas sem resposta no seio da sociedade impede o avanço dos próprios instrumentos institucionais de captação das opiniões e de tomada de decisões, além de impedir que outros problemas entrem na agenda da sociedade.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Foram bastante úteis para a argumentação aqui desenvolvida, as observações feitas por Fabrício Juliano Mendes Medeiros e André Ramos Tavares em audiência pública realizada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, no dia 24 de março de 2015.
[2] Cf. Paulo Gustavo Gonet Branco, “Poder Constituinte”, in Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 123 e 125.
[3] Conforme audiência em 16 de junho de 2015, na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
[4] In http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,ministro-da-justica-diz-que-prefere-morrer-a-ir-para-a-cadeia,959839

 

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