Diário de Classe

Cultura de massa e o ensino
jurídico standard no Brasil

Autores

27 de junho de 2015, 8h01

Entre as décadas de 1960 e 1970 do século XX, multiplicaram-se, nos Estados Unidos, pesquisas e ensaios de cientistas sociais e críticos de arte que procuravam explorar o fenômeno da cultura de massa e sua relação com uma sociedade de consumo. Tais trabalhos procuravam encontrar nesse ambiente uma ferramenta interpretativa que permitisse explorar o significado dos acontecimentos vivenciados naquele momento histórico.

Em meio à crise da chamada “época de ouro do capitalismo”, muitos intelectuais estadunidenses tentaram explorar a importância e o papel desempenhado por essa cultura de massa envolvidos por uma certa melancolia que apontava para o vínculo entre a decadência cultural e a falência nacional, já que o sentimento patriótico encontrava-se profundamente ferido pelo ocaso no Vietnã bem como pela ferida aberta na mítica democracia americana depois do caso Watergate.

De um lado, os conservadores anunciavam que essa débâcle estava associada com o colapso dos “valores tradicionais” e com o excessivo paternalismo do Welfare State, ambos decorrentes de uma cultura e um consumo de massas. De outra banda, os teóricos de esquerda — inspirados na critica marxista — encaravam o fenômeno de modo a enquadrar a cultura e o consumo de massas como uma ferramenta do establishment utilizada para manter os trabalhadores num estado de “falsa consciência”; no fundo, apenas uma nova faceta da velha forma de opressão promovida pelas classes dominantes.

Uma leitura interessante do fenômeno, e que destoa dessas interpretações descritas acima, é realizada por Christopher Lash na configuração daquilo que ele nomeou como a cultura do narcisismo. Para ele, a interpretação correta sobre uma cultura e um consumo de massas depende de uma análise que consiga compreender esses elementos como parte de um padrão maior de dependência, desorientação e perda de controle. Lash entende ser um erro, comum a ambos os lados, tentar retratar o consumo como a antítese do trabalho, como se essas atividades exigissem qualidades mentais e emocionais diferentes.

Na verdade, trabalho e consumo devem ser vistos como dois aspectos de um mesmo processo. As engrenagens sociais que movimentam um sistema de produção e consumo de massas estão programadas para desencorajar sentimentos como a iniciativa e a autoconfiança e tendem a incentivar a passividade e a condição de expectador, tanto no trabalho quanto no lazer. Estar inserido numa sociedade de consumo de massa significa participar de um arranjo social que levou a cisão entre projeto e produto ao paroxismo. Essa cisão significa que existe uma fratura entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, entre o projeto e a execução do produto.

Nesse contexto, aquele que efetivamente produz o artefato, não desempenha nenhuma atividade criativa; por outro lado, aquele que projeta e cria, não executa nada. Cria-se, assim, uma espécie de alienação de mão dupla: quem cria, não faz; quem faz, nada cria. Coloque tudo isso para ferver no cadinho da propaganda e do marketing e qual o resultado? Resposta: uma cultura narcisista. Ironicamente, essa cultura não é narcísica porque corresponde a soma de diversas personalidades egocêntricas que tendem a ver o mundo como um espelho do próprio eu. Na verdade, o elemento narcísico apresenta-se na soma de personalidades frágeis que, incapazes de serem ao mesmo tempo executores e criadores, tendem a ver o mundo como uma projeção dos próprios medos.

Se essa interpretação continua a reter alguma verdade sobre a sociedade estadunidense de hoje, é uma questão que não temos a intenção de responder. Para nós, importa o fato de que, depois do boom do consumo e o aumento da produção que nós brasileiros vivenciamos na última década, esse tipo de interpretação tende a nos ajudar a compreendermos os nossos processos de efetiva massificação, cultural e de consumo.

O campo do direito representa um espaço privilegiado para uma reflexão desse tipo. De algum modo, isto soa óbvio, uma vez que o próprio curso está inserido numa dimensão de consumo de massa: nós somos a nação que deveria ter entrado para o Guinness Book em face do número de faculdades de direito que possuímos (Para quem ainda não sabe, são mais de 1200. E o detalhe sórdido: todas elas devidamente autorizadas pelos órgãos oficiais de avaliação e acompanhamento). Assim, o “produto” diploma do curso de direito está hoje sendo oferecido por todas essas faculdades para, aproximadamente, 800 mil estudantes que almejam, um dia, exercer alguma rentável profissão jurídica.

E essa peculiar situação, que coloca o curso de direito como um dos principais depositários dos desejos e auspícios daqueles que pretendem encontrar uma melhor condição de trabalho, acaba por trazer um colorido diferente para os efeitos daquela cisão projeto-produto. Em outras áreas, o trabalho intelectual é socialmente mais valorizado do que o manual; no âmbito do direito, parece-nos que o imaginário predominante entende o trabalho intelectual como de menor importância em face daquele que realmente interessa: o manual, o prático.           

Vejamos isso a partir de uma situação corriqueira: um acadêmico indaga um professor com a seguinte pergunta: “O senhor só dá aula ou trabalha também?”

Desafiamos um professor universitário de Direito que não tenha escutado esta pergunta. Ela não é necessariamente ofensiva por parte do aluno. Ele não tem noção nenhuma do valor simbólico dela quando pergunta. Não sabe que a educação, um trabalho intelectual, pode comportar profissionais. A ironia é que, no mais das vezes, ele possui parcas noções sobre o Direito e, ainda assim, continua estudando.

Uma sociedade de consumo de massa produz uma cultura de massa. No caso do curso de direito, a cultura de massa aparece de forma mais evidente nas práticas de ensino e na literatura que alimenta as estruturas do curso de direito standard.

De todo modo, o valor simbólico da desconsideração do magistério não é percebido pelo aluno perguntador. “Sim, meu jovem, ‘trabalho’. Sou advogado, juiz, defensor, promotor. E: “Sim, meu querido aluno, professor também é uma profissão!”

Esta é somente uma dentre as muitas agruras que os professores universitários do curso de Direito tem que passar. O curso que se transformou no curso da possibilidade de ascensão social. O curso que passou a permitir que quem não gosta de estudar possa se formar e ostentar um diploma de curso superior. Ou, como também pensa parte da sociedade, o curso de quem lhe atribuirá algum poder por ser uma pessoa séria.

Todas estas deficientes interpretações sobre o curso de direito somente dificultam o trabalho do professor que, num imaginário de (sub ou) desvalorizações de um curso superior, não consegue reavivar o valor dos que atuam no campo do Direito. O estudante médio de medicina tem vocação para a medicina, gosta de estudar; o estudante médio de comunicação ou jornalismo tem afinidade com as letras; o estudante médio de engenharia, mesmo que não tenha vocação, pretende estudar porque atravessará, no mínimo, a barreira da disciplina aterrorizante denominada cálculo!

E o estudante médio de Direito? Não tem vocação para ler, e não gosta de ler. Não tem vocação para a escrita, e não gosta de escrever. O estudante médio de direito não pretende ser um jurista, especializar-se ou ser um professor ou doutrinador. O estudante médio do curso de direito pretende, na verdade, passar num concurso público, melhorar de vida e, muitas vezes, alcançar uma ascensão social. Mesmo sem nenhuma vocação para as letras, que é a condição de possibilidade para alcançar o seu objetivo, seja por quais razões forem[1].

E por isso, lê qualquer coisa. Lê o que é fácil. O que é somente necessário para “passar na prova”. Afinal, ele não vai aprender direito na universidade mas sim, segundo ele mesmo acredita: “na vida lá fora.”  Ele faz fotocópias de cadernos, lê os cadernos dos colegas, vai a aula quando tem tempo e não se preocupa em estudar todas as disciplinas. Enquanto o estudante médio do curso de Direito se preocupa em ser aprovado de uma vez em matérias que presume inúteis como Filosofia do Direito e Introdução ao Estudo do Direito para chegar logo ao que importa, que, em geral, significa estudar o Direito Penal, o estudante de engenharia é reprovado uma, duas ou três vezes em Cálculo que, afinal é mesmo uma disciplina difícil. Se tiver uma nota baixa, o estudante de Direito vai, já a partir do segundo período, “recorrer da nota baixa para garantir os seus direitos”. 

E qual o seu material de estudo além dos cadernos fotocopiados dos colegas? Os resuminhos, os resumões. O “direito facilitado”. O direito esquematizado. O direito for dummies! O estudante médio do curso de Direito, seja por iniciativa própria ou influenciado pelo professor médio do curso de Direito, fará uso constante de obras de uma espécie de autoajuda law. O estudante é também produto do que lhe é possível conviver e os seus professores, convenhamos, não tem ajudado, pois cantam musiquinhas, fazem tabelas, apresentam slides em aparelhos de data show e propõem que artigos sejam memorizados, pois, acreditam, parte significativa do direito é mesmo isso.

No campo da autoajuda law quase tudo pode ser dito e quase tudo é (supostamente) compreendido. Não tardará vermos as divisões em prateleiras das livrarias jurídicas ampliadas: direito civil, direito penal, direito constitucional, direito penal simplificado, resumos, “autoajuda law”. Ou melhor, já vemos os “simplificados” e os “resumos” só faltando a oficialização de uma nova categoria jurídica ou um novo “estilo” de (não)ensinar / (não)aprender.

Não se esqueçam, não faz muito tempo as divisões de categorias de livros mais vendidos eram “ficção e não ficção”. Com o advento da autoajuda, a nova categoria passou a integrar uma lista autônoma. Ora, alguém diria, mas “autoajuda law” seria altamente preconceituoso como ideia de “estilo de escrita”! Mas e literatura de autoajuda, não o é? Ou melhor, alguém ainda acredita que autoajuda pode ser rigorosamente considerado um “estilo” de literatura? Não seria simplesmente um modo de ajudar as pessoas por meio de comunicação escrita? Ou, mejor dicho, é um nicho de mercado, mas não um estilo literário, muito menos uma divisão como o são ficção e não ficção. Aliás, autoajuda não é ficção, nem não-ficção, portanto, está num limbo existencial.

Por outro lado, pensando no Direito, resumos, resumões, músicas e cartilhas para ensinar o Direito podem ser observados sem uma consideração prévia de que não são ciência, doutrina ou conhecimento de qualidade. E já não se configuram como “autoajuda law”, portanto? Não se esqueçam, não podemos dar o nome que queremos às coisas. Se não quiserem chamar de “autoajuda law” que se indique outro nome mais apropriado, somente, por favor, não chamem de doutrina nem seus idealizadores de autores. Outros podem se ofender. E é o caso. Muito!

A nós, pelo menos, o uso de resumões e material desta mesma categoria nos traria mais do que vergonha, e conduziria a uma sensação de total incapacidade ter que estudar sob a forma de resumões o que define, muitas vezes, o destino de pessoas, empresas e da sociedade. A voracidade pela compreensão ilimitada do inútil faz os leitores desta espécie de “doutrina frugal” somente mais intelectualmente balofos e nada saudáveis. Resumos, sumários, soluções práticas e fundamentos dietéticos não são calóricos, mas também não possuem quase nenhuma energia razoável ou aproveitável — neste caso do ponto de vista intelectual.

E a proliferação desta fast food travestida de alta-gastronomia alcança níveis inacreditáveis. A “gourmetização” do lixo intelectual tratado como facilitador de conhecimento é altamente danoso porque os alunos, mesmo inconscientemente, são seduzidos pela facilidade de aprender algo duro de compreender, pesado, denso.

Aprendam antes de tudo: o Direito, meus caros, não é fácil! O Direito pode ser (e muitas vezes é) muito duro e difícil de estudar. Não adianta tentar facilitar o que não é facilitável. O que é necessário é aumentar o nível intelectual do alunado e dos professores. Podem ser os mesmos que temos, mas devemos exigir algo a mais de nós mesmos e das pessoas que pretendem estudar Direito. Não significa dizer, portanto, que devemos simplesmente trocar os professores e alunos que temos, mas ensinar-lhes mais coisas. De modo denso, profundo, e significativo e não bordões de músicas cujas letras foram modificadas para se trabalhar o processo mnemónico.

Ah sim, porque é sucesso entre os alunos o “aprender” direito por meio de “alegres” e leves musiquinhas com suas versões cuja intenção é transformar o aluno num profissional sério, num craque, sem muito esforço ou estudo sério. Será possível? A seguir voltaremos com o tema da trilha sonora da “autoajuda law”.


[1] Reparem, o estudante médio. Se o leitor se ofende e não se considera nesta média, não faz parte deste grupo.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!