Ideias do Milênio

"Código Civil Francês foi o maior legado de Napoleão na política interna"

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26 de junho de 2015, 16h32

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Brendan Simms [Reprodução]Entrevista concedida pelo historiador Brendam Simms, ao jornalista Silio Boccanera, para o programa Milênio — um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira com repetições às terças-feiras (17h30), quartas-feiras (15h30), quintas-feiras (6h30) e domingos (14h05).

O Brasil poderia ser diferente hoje, não fosse Napoleão Bonaparte. Por medo de uma esperada invasão do líder máximo francês à Península Ibérica, a família real portuguesa fugiu de Lisboa em 1808 e se instalou no Rio de Janeiro. Começou ali um processo de grandes mudanças na colônia com destaque para a abertura dos portos brasileiros ao comércio com o mundo. Como esperado, tropas francesas entraram em Portugal, sob o comando do general bonapartista Junot. Ainda jovem, Napoleão tinha visto a França mergulhar em crise após a revolução histórica de 1789, que ele apoiou. Em rápida ascensão militar, acabou tomando as rédeas do governo em Paris e transformou a França na potência dominante do continente. No poder, ele se revelou autoritário, agressivo, com toques de megalomania e genialidade. Após invasões de terras tão distantes quanto o Egito e a Rússia, o edifício Napoleônico acabaria desabando ao lado de casa, na Bélgica, duzentos anos atrás. Em 18 de Junho de 1815, Napoleão perdeu a Batalha de Waterloo para outro herói militar, o britânico Duque de Wellington. Foi deposto como líder da França e enviado ao exílio na remota ilha de Santa Helena, possessão britânica no Atlântico Sul. Ali, mais perto do Brasil do que da Europa, o ex todo poderoso ficou até morrer de câncer no estomago, aos 51 anos. As proezas militares de Napoleão são objeto de estudo até hoje e sua vida inspirou milhares de livros. A Tarde Mais Longa é uma das obras mais recentes e concentra o foco justamente na Batalha de Waterloo. O Milênio foi ao encontro do autor Brendan Simms, professor de história europeia moderna na conceituada Universidade de Cambridge, na Inglaterra.

Silio Boccanera — Estamos comemorando 200 anos da derrota de Napoleão em Waterloo, um acontecimento com muitas implicações históricas. Mas na verdade, ele esteve perto de vencer a batalha, não é?
Brendan Simms — Ele chegou mais perto da vitória no início da tarde, quando seu general d’Erlon quase ultrapassou as linhas aliadas. Aquele foi o momento em que ele poderia ter vencido a batalha. No final, com o ataque da Guarda Imperial, provavelmente já era tarde demais, mas, no início da tarde, ele chegou muito perto.

Silio Boccanera — O que acontecia era que Napoleão estava confrontando os britânicos e sabia que os prussianos podiam estar chegando, então tinha de correr para derrotar os britânicos. Mas não foi rápido o bastante.
Brendan Simms — Pois é. Ele esperava que os prussianos retrocedessem ou não chegassem ao campo de batalha a tempo, mas, no meio da tarde, ele soube que os prussianos estavam a caminho, e sua estratégia essencial teve que ser derrotar Wellington antes que ele escapasse.

Silio Boccanera — A versão difundida pelo Reino Unido é a de que Wellington e os britânicos derrotaram Napoleão, mas na verdade até o exército de Wellington era composto por estrangeiros. Seu livro menciona que 45% deles falavam alemão. E a vitória final só aconteceu com a chegada dos prussianos.
Brendan Simms — Eu gosto de chamá-la de vitória europeia. O exército de Wellington era multinacional, então, como você disse, cerca de 45% de seu exército falava alemão no início da batalha, antes da chegada dos prussianos. Também havia valões — belgas que falavam francês —, habitantes dos Países Baixos e, dentro das forças britânicas, havia ingleses, irlandeses e escoceses. Portanto, sem querer negar a importância britânica — o comandante supremo era britânico, nascido na Irlanda —, foi uma vitória europeia. Foi um trabalho conjunto de coalizão.

Silio Boccanera — Nós nos acostumamos a analisar guerras com um olhar contemporâneo, principalmente as batalhas aéreas, e nos esquecemos da grandiosidade dessa batalha. Os números são impressionantes. Eram 200 mil soldados, 60 mil cavalos, mais de 500 peças de artilharia. Foi uma conflagração imensa.
Brendan Simms — Sem dúvida. Não foi a maior batalha da era napoleônica. A Batalha de Leipzig, ou Batalha das Nações, foi bem maior, mas a particularidade de Waterloo era o tamanho reduzido do campo de batalha. Ele era muito compacto. É possível vê-lo por inteiro do monumento principal, o Monte do Leão. Então eram, como você disse, quase 200 mil pessoas amontoadas naquele espaço limitado. Teve muita pancadaria.

Silio Boccanera — As memórias de Napoleão foram ditadas durante seu exílio em Santa Helena, a remota ilha britânica. Nelas, ele examina parte de sua vida, sua carreira e suas decisões militares. Estranhamente, ele diz: “Eu ainda não entendo a derrota na Batalha de Waterloo.” E também diz: “Eu deveria ter morrido lá.” O que acha que ele quis dizer quando disse que não entendia a derrota em Waterloo?
Brendan Simms — Napoleão chegou a declarar que desprezava Wellington, e ele nunca levou a sério a força do exército britânico, principalmente da infantaria. Ele tinha enfrentado muito pouco os britânicos, porque a maior parte das batalhas na Península Ibérica foi empreendida por seus marechais, e não por ele. E ele disse a seus comandantes antes da batalha que o exército britânico era ruim e Wellington era um comandante ruim. Ele subestimou os adversários e ficou surpreso com a derrota.

Silio Boccanera — E quanto a “Eu deveria ter morrido”?
Brendan Simms — Ele era um homem muito corajoso, como demonstrou em várias ocasiões no início da carreira, reunindo os soldados pessoalmente, esse tipo de coisa. E acho que, se ele pudesse ter escolhido o local e as circunstâncias de sua partida, teria preferido morrer numa batalha.

Silio Boccanera — Waterloo foi sua derrota final, o fim de sua carreira militar e política. Mas ele sofreu outra grande derrota, a invasão da Rússia em 1812. Tolstói escreveu sobre ela em Guerra e Paz. Foi um grande erro de Napoleão em termos militares e políticos?
Brendan Simms — Em retrospecto, certamente foi um erro, porque, além de ter reduzido as forças da Grande Armée, também deu a oportunidade para que antigos aliados, como os austríacos e os prussianos, se reafirmassem. No entanto, do ponto de vista dele, ele achou que não tinha escolha, porque seu maior inimigo sempre foi o Reino Unido. E ele via o Império Russo como o império que interessava ao Reino Unido. Enquanto o Império Russo existisse, os britânicos lutariam. Esse era o argumento, muito parecido com o de Hitler para invadir a URSS em 1941.

Silio Boccanera — E os dois acabaram na mesma situação. O inverno chegou e não conseguiram lidar com ele.
Brendan Simms — Exatamente. É um bom exemplo da falha de se aprender com a História.

Silio Boccanera — O caminho de Napoleão até o poder foi muito rápido. A carreira dele avançou junto com a Revolução Francesa, que ele apoiou. Mas, no final, ele tomou o poder, se tornou imperador e conquistou países à força. Você diria que ele traiu a Revolução Francesa?
Brendan Simms — Quando Napoleão alegou que tinha completado a revolução pondo fim a ela — que é uma alegação interessante, ou seja, ele reivindica o legado da revolução e a transcende —, na verdade ele a traiu. E onde vemos isso mais claramente é na criação de uma nobreza imperial. A Revolução Francesa foi um ataque a privilégios herdados, à nobreza e um desejo de liberdade, igualdade e fraternidade. E restaurar uma aristocracia, na qual ele dava a seus marechais terras tiradas de outros europeus e, além disso, de forma hereditária, significa trair os princípios originais da revolução.

Silio Boccanera — Ele teve uma origem modesta o pai dele era um advogado não particularmente rico na Córsega. A carreira militar dele avançou rápido e ele se tornou general aos 24 anos, um feito incrível. Especialistas militares que estudam as batalhas napoleônicas dizem que ele era um gênio militar, talvez do naipe de Alexandre, o Grande, e Júlio César. Qual é a sua opinião?
Brendan Simms — Ele sem dúvida era um grande planejador militar, e não era especialista somente em tática, mas também em estratégia. Ele começou, como você disse, muito jovem, mas, no fim da carreira, ele ficou preguiçoso. Transformou batalhas em pancadaria usando sua superioridade tecnológica e numérica. Wellington, durante a Batalha de Waterloo, disse: “Ele não passa de um velho brigão”, desrespeitando a habilidade militar de Napoleão. Mas, no nível estratégico, ele nunca perdeu a mão. Sem dúvida, em termos militares, ele era um gênio.

Silio Boccanera — E em termos políticos? Porque ele também avançou muito.
Brendan Simms — Ele tinha uma visão muito clara da grandiosidade da França, de seu lugar na Europa — uma ambição quase imperial de que era o novo Carlos Magno, imperador de toda a Europa —, ele tinha um programa não só de política externa, mas interna também e, acima de tudo, ele era um grande comunicador e conseguiu se conectar com o povo francês, conseguiu articular seu desejo de ter um papel importante na Europa e também conseguiu transmitir parte disso a outros povos europeus.

Silio Boccanera — O amor dele pelo poder era irresistível. Numa citação, ele diz: “Eu amo o poder como um músico ama seu violino.” Acha que a maior motivação dele era a busca por poder?
Brendan Simms — Poder e glória. Posição e reconhecimento. E foi isso que o levou à ruína. Um desejo excessivo, que nunca se satisfaz, um sistema e uma mentalidade inerentemente instáveis.

Silio Boccanera — Muitas pessoas o admiravam, como o grande escritor alemão Goethe, que conheceu Napoleão e conversou com ele. Ele disse que Napoleão tinha a mente mais formidável que o mundo produzira. Palavras de Goethe. Exageradas?
Brendan Simms — Acho que podem ser levemente hiperbólicas, mas ele sem dúvida suscitava esse tipo de admiração. Outro exemplo seria Beethoven, só que Beethoven se arrependeu de sua opinião e disse que ele não passava de um mero mortal.

Silio Boccanera — Ele era um grande admirador de Napoleão.
Brendan Simms — E mais tarde mudou de ideia. Na minha opinião, uma figura como Frederico, o Grande, é igualmente notável e interessante. O que chama a atenção em Napoleão é que, partindo de uma origem relativamente modesta, ele foi galgando posições até se casar e entrar para uma das maiores dinastias europeias, o Habsburgo. Isso dá mais glamour à história dele.

Silio Boccanera — Ao longo da carreira, o maior adversário de Napoleão, o maior inimigo, sempre foi o Reino Unido. Ele planejava invadir o país, depois desistiu, mas aí decidiu fazer um bloqueio econômico. O que foi isso?
Brendan Simms — Como as sanções de hoje?

Silio Boccanera — Sim, um pouco como isso.
Brendan Simms — Ele enxergava o Reino Unido como o responsável pelas coalizões contra ele, e não estava errado. O Reino Unido era quem administrava, quem provia subsídios para os exércitos continentais. Ele gostaria de ter invadido, mas não tinha capacidade naval. Como o chefe do almirantado disse na época: “Não digo que os franceses não virão. Só digo que não virão pelo mar.”

Silio Boccanera — E, claro, naquela época era a única forma possível.
Brendan Simms — Então, a estratégia dele era deixar o Reino Unido, que era uma nação comercial ou, como ele chamava, “uma nação de lojistas”, de joelhos economicamente. Ou seja, impedir o comércio britânico com o continente. Essencialmente, ele colocou agentes em todos os portos da Europa e tentou impedir o comércio britânico

Silio Boccanera — É aí que entra Portugal, que era aliado do Reino Unido e, de repente, através de Portugal, o Reino Unido conseguia fazer comércio com a Europa. Aí Napoleão resolve ir para Portugal, o que teve grande impacto na História do Brasil. Então o papel foi esse?
Brendan Simms — Sim. Portugal não era só um aliado, acho que era o aliado mais antigo até da Inglaterra. Era uma relação muito antiga. E fechar essa fenda no sistema continental, criar um bloqueio, foi certamente cogitado. A outra motivação foi que ele precisava se deslocar para a Península Ibérica para assegurar o flanco sul da França.

Silio Boccanera — Por medo de Napoleão, a família real portuguesa se mudou para o Brasil, o que teve um impacto enorme na História do Brasil, e Napoleão invadiu não ele próprio, mas mandou seus generais a Espanha e Portugal. Mas a campanha não teve muito sucesso, teve?
Brendan Simms — Não. A campanha da Península Ibérica ficou conhecida como “a úlcera espanhola”. Foi como um câncer que corroeu o sistema francês, consumindo recursos e também minando o moral. Até a invasão da Rússia em 1812, foi a maior dificuldade que Napoleão enfrentou.

Silio Boccanera — Estamos em 2015, no aniversário de 200 anos de Waterloo, mas estamos lidando com a União Europeia, 28 países que formam um clube de nações. De certa forma, esse era o sonho de Napoleão: formar uma União Europeia, claro que sob o seu comando.
Brendan Simms — Isso mesmo. Ele tinha uma ideia muito clara de integração europeia. O historiador Gerhard Wolf chama isso de “integração hegemônica”. E esse era o grande problema da visão de Napoleão. Ele dependia de força e essencialmente, na prática, não passava de um sistema extrativista para produzir recursos, dinheiro, mas também recrutas para suas campanhas militares. E eu diria, em certos aspectos, que seus adversários também estavam articulando uma visão europeia: de uma Europa mais organizada, mais federal e menos hierárquica. E acho que você tem razão quando diz que o exército de Wellington não era só europeu, ele de certa forma foi o precursor da Otan.

Silio Boccanera — Depois da derrota, Napoleão tentou ir para o Reino Unido, os britânicos o levaram para Santa Helena e ele ficou lá até o fim da vida. E tudo o que fez foi escrever suas memórias. Nelas, ele diz que as pessoas logo esqueceriam sua derrota em Waterloo, o que não foi o caso, mas diz que as pessoas se lembrariam de outra coisa. “Minha verdadeira glória é o código civil, que viverá para sempre.” Hoje ele é chamado de “código napoleônico”. Foi o maior legado dele?
Brendan Simms — Acho que, em termos de política interna, sim. E não é um legado apenas na França, mas em muitos países europeus nos quais o código foi adotado, moderado e adaptado em alguns casos. Era a promessa, em vários aspectos, de direitos iguais. Certamente mais direitos iguais de que os que eram garantidos pelo Império Austríaco, que tornaram o regime francês tão popular em lugares como a Renânia, por exemplo.

Silio Boccanera — O que mais acrescentaria como parte do legado dele? Sabemos que ele tentou reformar a França em diversos aspectos.  O que ele deixou como legado além do código napoleônico?
Brendan Simms — Acho que o legado mais paradoxal foi na Alemanha, no acordo territorial alemão. Porque Napoleão fez os alemães encararem da forma mais clara possível o fracasso do antigo Sacro Império Romano-Germânico.

Silio Boccanera — A Alemanha que conhecemos hoje não existia.
Brendan Simms — Exatamente. Não havia Alemanha. Por um lado, ele criou o nacionalismo alemão. O nacionalismo alemão, enquanto projeto político do século 19, foi uma reação à experiência da ocupação francesa. Em segundo lugar, ele reduziu enormemente a quantidade de principados e territórios alemães de muitas centenas no século 18 para algo em torno de 40 após 1815. Depois, em 1870-71, Bismarck completou o processo.

Silio Boccanera — Ele facilitou o trabalho de Bismarck.
Brendan Simms — Exatamente. Napoleão é o criador, em muitos aspectos, da unificação alemã no século 19. Isso não é um legado. Não acho que ele teria gostado…

Silio Boccanera — Acidental, mas…
Brendan Simms — Mas é.

Silio Boccanera — Como falamos antes, os britânicos o levaram para Santa Helena, ele nunca saiu de lá e morreu de câncer em 1821. Mas foi aí que a lenda dele cresceu, não foi? A fama dele aumentou após sua morte.
Brendan Simms — Isso mesmo. Em parte isso tem a ver, na França, com a impopularidade do regime Bourbon restituído. Então Napoleão deixou um capital simbólico imenso que contrastava com um governo considerado abjeto e estabanado por parte dos Bourbon. Quem estava descontente depois de 1815 relembrava uma era gloriosa. Eles se esquecem do sofrimento, da opressão e, para eles, Napoleão se torna o símbolo da grandiosidade francesa, que foi perdida e deveria ser recuperada. Fora da França, Napoleão se torna o símbolo dos progressistas em muitos aspectos e, em termos gerais, qualquer um que fosse contra a ordem estabelecida ou até, já no século 20, quem se queixava do Império Britânico, da ordem mundial anglo-saxã, via Napoleão como uma figura atraente.

Silio Boccanera — Você pesquisou o homem, a história, as batalhas, o lado político, o lado militar, mas, enquanto o estudava, passou a gostar dele? Gosta de Napoleão enquanto pessoa depois de tanto estudá-lo?
Brendan Simms — Acho difícil não desenvolver um grau de afeição por qualquer pessoa que você passe algum tempo pesquisando. E há uma certa malandragem nele, mas, quando você analisa todo o sofrimento e as atrocidades de mais de vinte anos de guerra, pelos quais a maior responsabilidade é dele, é difícil sentir qualquer tipo de admiração. Acho que o custo foi alto demais para isso.

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