Jubileu de Prata

"Senhor Voto Vencido", Marco Aurélio diverge e fala pelas minorias

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15 de junho de 2015, 7h42

Spacca
De cada três ações que o Supremo Tribunal Federal julga, o ministro Marco Aurélio fica vencido em uma. O fato lhe valeu o epíteto que ele muita preza, por sinal, de “Senhor Voto Vencido”. Esta cifra tem como base 514 decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal desde 2006 e que foram selecionadas pelo Anuário da Justiça como as mais importantes da corte. Desse total, Marco Aurélio ficou vencido em 161.

Ao contrário do que se pode pensar inicialmente, ficar vencido num julgamento não deve ser considerado como um fracasso e muito menos como uma inutilidade. Em um voto memorável, no qual reconheceu a legitimidade do pleito dos participantes da Marcha da Maconha, o próprio Marco Aurélio fala da importância da divergência: “Jurgen Habermas edificou uma teoria dos direitos fundamentais com base no elemento comunicativo. O autor alemão parte de uma constatação fática para alicerçar a teoria que defende: o fato do pluralismo. O consenso ético resultante da homogeneidade que existia nas sociedades pré-industriais não existe mais, de modo que as decisões públicas não podem ser justificadas com fundamento nesse acordo global de natureza ética entre os cidadãos. Ao contrário: nas sociedades contemporâneas, os indivíduos discordam veementemente sobre um leque variado de assuntos. Nesse ‘mosaico cultural’ que são as sociedades de hoje, a legitimidade das normas jurídicas só pode ser extraída do processo de autolegislação levado a efeito pelos próprios cidadãos. Esta é a concepção política de Habermas: primazia do processo democrático na construção de um direito legítimo, porque não há mais como recorrer a verdades apriorísticas.”

Em outro voto memorável, em que ficou vencido, ele cita Hans Kelsen, e explica uma vez mais porque ficar vencido não é uma derrota pessoal, mas uma vitória da democracia: “É bom sempre lembrarmos Hans Kelsen quando afirma que a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos da minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria. E venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário”. O recado foi dado no julgamento do HC 82.424/RS, do editor gaúcho Siegfried Ellwanger contra condenação imposta pela Justiça gaúcha, por ter ele publicado livros considerados antissemitas.

O tempo é outro fator capaz de demonstrar a utilidade das posições minoritárias. Não são raros os casos na carreira do ministro que o voto vencido de ontem é a tese vencedora de hoje. Entre os casos mais marcantes está o julgamento que declarou inconstitucional a regra que proibia a progressão de regime para condenados por crimes hediondos. Outro foi o que declarou inconstitucional a prisão de depositário infiel. Um terceiro foi o que deu caráter mandamental e não apenas declaratório ao Mandado de Injunção. Em todos os casos citados, o ministro saiu de posição minoritária para majoritária depois de vários anos, com a renovação quase total da composição da corte.

Mas em 2010 ele repetiu a proeza num espaço de 20 dias. Aconteceu no julgamento em que o Supremo afastou a possibilidade de a Receita Federal acessar dados bancários do contribuinte sem autorização da Justiça. Relator da matéria, Marco Aurélio sustentou que o Judiciário não poderia transferir sua atuação, reservada com exclusividade por cláusula constitucional, a órgãos da administração.

Mesmo vencidos, alguns votos do ministro são marcos nos anais do Supremo. Leia abaixo alguns de seus votos vencidos mais notáveis:

Capitalização de juros
RE 592.377

Julgamento em 4 de fevereiro de 2015
Por 7 votos a 1, o Plenário do STF autorizou a capitalização de juros em empréstimos bancários com periodicidade inferior a um ano. Os ministros julgaram constitucional a Medida Provisória 2.170-36/2001 que autorizou o cálculo de juros compostos.

Não houve unanimidade porque o ministro Marco Aurélio entendeu que não havia relevância ou urgência para a edição da MP, como requer a Constituição Federal. À época da edição da MP, estava em vigor a Lei de Usura, que proibia a capitalização. Em 1976, o Supremo já havia decidido que o Sistema Financeiro Nacional não se submete àquela lei. Portanto, havia tratamento legislativo e judicial a respeito da matéria.

Por não ter havido conversão da MP 2.170-36/2001 em lei após 14 anos, ela não deve mais estar em vigor, opinou o ministro, dizendo não imaginar “medida provisória a vigorar por prazo indeterminado”. De acordo com o artigo 62 da Constituição, a Medida Provisória perde validade depois de 60 dias, prorrogáveis por mais 60 dias. Na prática, têm vigorado, impunemente, por tempo indeterminado.

Monopólio dos Correios
ADPF 46

Julgamento em 5 de agosto de 2009
O serviço postal é exclusivamente público e não foi aberto, na Constituição Federal, para ser prestado pela iniciativa privada. O serviço postal, no entanto, se restringe à entrega de correspondências, cartões-postais e correspondências agrupadas, não incluindo boletos bancários, contas, jornais, livros e outros tipos de encomendas. Este foi o entendimento do Plenário do STF ao analisar o monopólio dos Correios (Lei 6.538/1978).

O ministro Marco Aurélio ficou vencido por entender que não deveria haver qualquer monopólio, inclusive sobre as correspondências simples, por respeito ao princípio da livre concorrência. Também ficaram vencidos os ministros Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, porque defendiam o monopólio apenas no serviço de entrega de cartas.

A ação foi proposta pela Associação Brasileira das Empresas de Distribuição (Abraed), com o argumento de que a lei é incompatível com a Constituição por instituir monopólio não previsto constitucionalmente e por impedir o livre exercício do trabalho, ofício ou profissão.

Lei de Imprensa
ADPF 130

Julgamento em 30 de abril de 2009
A Lei de Imprensa de 1967 foi considerada inconstitucional por sete ministros do STF. A decisão permitiu a exclusão de todo o texto da lei do ordenamento jurídico. Três dos ministros vencidos votaram pela suspensão de alguns dispositivos da norma, mas não do texto inteiro. Marco Aurélio foi o único a entender que a lei deveria continuar em vigor.

Iniciou o seu voto com uma questão: “A quem interessa o vácuo legislativo?”. Para, em seguida, responder: “Com a revogação da lei não passaremos a ter liberdade. A liberdade já existe. Passaremos a ter conflitos de interesse resolvidos com critério de plantão, estabelecido pelo julgador”. Atacou a ideia de que a lei é ruim porque foi feita no período ditatorial brasileiro. “Os que defendem essa visão se esquecem que o Código Penal foi decretado durante o Estado Novo e continua a viger. Se esquecem que durante o regime de exceção foram feitas reformas que, no tocante a garantias do cidadão, se mostraram profícuas, adequadas, aconselháveis quando se vive em Estado Democrático de Direito.”

Disse que a revogação da lei seria ruim para os jornalistas. Ressaltou que os prazos de prescrição e decadência das ações são até mais favoráveis aos jornais e jornalistas do que os que constam na legislação civil.

Raposa Serra do Sol
Pet 3.388
Julgamento em 19 de março de 2009
Por 10 votos a um, o STF manteve a demarcação contínua da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Prevaleceu o voto do ministro Menezes Direito, que impôs 18 condições para a manutenção da demarcação homologada pelo governo federal em 2005.

O ministro Marco Aurélio foi o voto vencido. Entendeu que deveria ser anulada a Portaria 534/05 do Ministério da Justiça, homologada pelo presidente da República em 15 de abril de 2005, que fez a demarcação contínua das terras da reserva indígena em Roraima. Para ele, o STF não pode ignorar o fato de que índios e não-índios são todos brasileiros e têm assegurada a garantia constitucional de livre locomoção no território nacional em tempo de paz, “podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

Mostrou omissões processuais na citação das partes interessadas, apontou problemas nos laudos em que se baseou a demarcação da área, alertou para os direitos das pessoas que têm títulos de propriedade na área e lembrou os prejuízos que a demarcação contínua das terras poderia trazer à economia do estado.

Cofins para sociedades prestadores de serviço
RE 377.457 e RE 381.964

Julgamento em 17 de setembro de 2008
O Plenário do STF decidiu, em 2008, que sociedades de prestadoras de serviço de profissões regulamentadas têm de pagar Cofins. Dentre essas sociedades estão os escritórios de advocacia. Esse foi o resultado prático do debate sobre a hierarquia das leis. A isenção do imposto havia sido concedida por lei complementar (LC 70/1991) e a sua revogação, por meio de lei ordinária (Lei 9.430/1996). A maioria entendeu que não há hierarquia. Como a Cofins já está prevista na Constituição, pode ser regulamentada por lei ordinária.

Marco Aurélio, ao lado do ministro Eros Grau (aposentado), defendeu que a lei complementar não pode ser revogada por lei ordinária, já que a sua tramitação no Congresso Nacional é mais complexa – tem mais turnos de votação do que a ordinária e requer aprovação da maioria absoluta da Câmara e do Senado.

A decisão do STF revogou súmula do Superior Tribunal de Justiça que reafirmava a isenção e vigorava há cinco anos. Com isso, quem deixou de pagar com base na decisão do STJ teria de pagar tudo de uma vez só. O Plenário discutiu a possibilidade de modular os efeitos da decisão, mas não houve maioria.

Caso Ellwanger
HC 82.424

Julgamento em 17 de setembro de 2003
A causa era indigesta: julgar o Habeas Corpus impetrado pelo editor e escritor gaúcho Siegfried Ellwanger condenado a dois anos de prisão pela justiça do Rio Grande do Sul por crime de racismo. O motivo da condenação era o conteúdo das publicações de autoria ou patrocinadas por Ellwanger, consideradas racistas, por serem antissemitas. Marco Aurélio formou a minoria juntamente com os ministros Moreira Alves e Ayres Britto.

Para eles, o conteúdo das obras em análise eram francamente desfavoráveis aos judeus, mas não poderiam ser consideradas racistas e não continham incitamento ao ódio. Marco Aurélio, em seu voto, faz uma distinção entre os conceitos de preconceito e discriminação. Para o ministro, o preconceito fica apenas no âmbito das ideias, das reservas mentais, não chegando a ser externado. “E ninguém sofre pena pelo ato de pensar.”

Aplicando a tese ao caso em análise, Marco Aurélio reconheceu que o autor tem ideia preconceituosa em relação aos judeus e que ideias preconceituosas devem ser combatidas, “mas não a partir da proibição da divulgação dessa ideia, não a partir da conclusão sobre a prática do crime de racismo, de um crime que a carta da República levou às últimas consequências quando, declarando imprescritível, desprezou a consagrada e salutar segurança jurídica. O combate deve basear-se em critérios justos e limpos, no confronto de ideias. Parafraseando Voltaire, afirmo: não concordo com o que o paciente escreveu, mas defendo o direito que ele tem de divulgar o que pensa.” Para o ministro não é o Estado que tem de impor a censura para proteger a sociedade, mas a própria sociedade que faz a censura, formando suas próprias conclusões.

CPMF
ADIs 1.501 e 1.497

Julgamento em 9 de outubro de 1996
Em 1996, entrou em vigor a Emenda Constitucional 12, permitindo a criação da CPMF – contribuição provisória sobre movimentação financeira. No mesmo ano, chegou ao STF ação para questionar a constitucionalidade da emenda constitucional. Ao analisar o pedido de liminar, a maioria votou para manter em vigor a emenda.

O ministro Marco Aurélio ficou vencido, em companhia de Ilmar Galvão. Escreveu em seu voto que, de fato, o Estado deveria se preocupar e investir recursos na saúde do país, “mas estes devem vir de cobranças harmônicas com a Constituição Federal”.

A emenda permitia a instituição da cobrança e autorizava também que artigo 154 da Constituição Federal não fosse aplicado ao caso. O dispositivo prevê que o fato gerador da obrigação tributária não pode ter duas incidências. O problema é que sobre as movimentações financeiras já incidia o IOF.

Além de criticar o desrespeito à Constituição, Marco Aurélio criticou a reincidência do Congresso na edição de normas inconstitucionais. “Até hoje, o Judiciário sofre as consequências, para o próprio descrédito, considerada a demora nas soluções das lides, da edição de diplomas como o presente, que, às escâncaras, surgem, desde o primeiro momento, conflitantes com a Constituição Federal”, defendeu.

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