Jubileu de Prata

Dez decisões em que o ministro Marco Aurélio guiou o entendimento do STF

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12 de junho de 2015, 11h29

Spacca
Em seus 25 anos de Supremo Tribunal Federal, o ministro Marco Aurélio chamou atenção da imprensa por seus votos vencidos e provocações em Plenário do que pelos julgamentos em que as suas teses prevaleceram. Em maio de 2001, quando tomou posse na Presidência da corte, foi homenageado pelo ministro Celso de Mello, que não deixou de ressaltar a característica do colega.

“Aquele que vota vencido, senhor presidente, não pode ser visto como um espírito isolado nem como uma alma rebelde, pois, muitas vezes, é ele quem possui o sentido mais elevado da ordem de justiça, exprimindo, na solidão de seu pronunciamento, uma percepção mais aguda da realidade social que pulsa na coletividade, antecipando-se, aos seus contemporâneos, na revelação dos sonhos que animarão as gerações futuras na busca da felicidade, na construção de uma sociedade mais justa e solidária e na edificação de um Estado fundado em bases genuinamente democráticas.

Aquele que vota vencido, por isso mesmo, senhor presidente, deve merecer o respeito de seus contemporâneos, pois a história tem registrado que, nos votos vencidos, reside, muitas vezes, a semente das grandes transformações.”

De fato, sementes de grandes transformações foram plantadas pelo ministro Marco Aurélio. Ao longo dos anos, saiu da posição de vencido para vencedor em matérias como uso de maus antecedentes para agravar a pena, prisão civil de depositário infiel, progressão de regime para condenados por crime hediondo. Sempre se posicionou a favor das liberdades, de ir e vir, de expressão.

Mas além de se tornar um singular "Senhor Voto Vencido" Marco Aurélio pontificou ao longo de 25 anos como um importante criador de soluções jurisprudenciais e deixou sua marca no repositório de grandes decisões do Supremo.  Pautado por um enorme respeito aos direitos fundamentais e ao devido processo legal, ele apontou caminhos em matéria civil,  penal e tributária com igual desenvoltura. A seguir, leia uma seleção de importantes decisões em que as teses do ministro foram vencedoras.

Maus antecedentes
RE 591.054
Julgamento em 17 de dezembro de 2014

O debate sobre o uso de inquéritos e condenações criminais sem trânsito em julgado como maus antecedentes é um bom exemplo da evolução da jurisprudência do STF ao longo dos anos. E, dentro dessa história, exemplo de como a insistência do ministro Marco Aurélio nos seus pontos de vista pôde alçá-lo à posição majoritária na corte. Em 1996, ele integrava a 2ª Turma e relatou o HC 72.130. Deixou claro em seu voto que o artigo 59 do Código Penal, o qual permite que a pena seja mais severa se o réu tiver antecedentes criminais, deve ser analisado frente à garantia constitucional de presunção de inocência.

O ministro Maurício Corrêa abriu divergência. Concordou com a sentença do juiz que levou em conta a conduta social do réu, acusado de homicídio triplamente qualificado e que tinha “alentada folha onde constam diversos inquéritos em andamento e uma condenação ainda não trânsita em julgado”. Carlos Velloso acompanhou o voto divergente: “não tem bons antecedentes quem responde a inquérito policial e está sendo processado criminalmente”.

Dezoito anos depois, Marco Aurélio descreveu no acórdão do RE 591.054 a virada na jurisprudência. “O entendimento anterior foi sendo suplantado à medida que renovada a composição do tribunal”, afirmou. Lembrou que a evolução da jurisprudência é encontrada na doutrina também. Como no Código Penal Comentado, do professor Cezar Roberto Bittencourt. Em 2004, comentou no artigo 59 do CP que o legislador teria aprovado o termo “condenações anterior irrecorríveis” em vez de “antecedentes”. Em 2014, disse que não são válidas para aumentar a pena “quaisquer outras investigações preliminares, processos criminais em andamento, mesmo em fase recursal”.

ICMS na base de cálculo da Cofins
RE 240.785
Julgamento em 8 de outubro de 2014

O STF declarou que o ICMS não faz parte da base de cálculo da Cofins. A Constituição Federal prevê que a seguridade social será financiada mediante contribuição incidente sobre o faturamento da empresa. De acordo com o ministro Marco Aurélio, relator, faturamento é tudo aquilo resultante da venda de mercadorias ou prestação de serviços. Imposto, portanto, não é faturamento.

“A base de cálculo da Cofins não pode extravasar, sob o ângulo do faturamento, o valor do negócio, ou seja, a parcela percebida com a operação mercantil ou similar”, afirmou. Segundo o ministro, a Cofins, instituída pela Lei Complementar 70/91, só pode incidir sobre o faturamento que, conforme visto, é o somatório dos valores das operações negociais realizadas. “A contrário sensu, qualquer valor diverso deste não pode ser inserido na base de cálculo da Cofins”, complementou.

Em setembro de 2014, um mês antes desta decisão, Marco Aurélio enviou despacho à presidência da corte criticando a demora no julgamento do caso: “urge proceder à entrega da prestação jurisdicional às partes”. Naquele mês, a discussão completou 15 anos de paralisação na corte. “O quadro gera enorme perplexidade e desgasta a instituição”, escreveu.

Feto anencéfalo
ADPF 54
Julgamento em 12 de abril de 2012

O STF definiu que interrupção da gravidez de feto anencéfalo não é crime de aborto. Prevaleceu no julgamento o voto do ministro Marco Aurélio, relator. Defendeu que a interrupção da gestação quando o feto é anencéfalo não é aborto porque, por ser absolutamente inviável fora do útero, o feto não é titular do direito à vida. Para o ministro, o conflito entre direitos fundamentais – os direitos da mulher e os do feto – é apenas aparente. A Lei 9.434/1997 define que o feto anencéfalo já é juridicamente morto.

Para escreveu o seu voto, Marco Aurélio se baseou em depoimentos e estudos apresentados durante audiência pública convocada pelo STF. Ressaltou que o feto anencéfalo é diferente daqueles com alguma deficiência grave, que podem viver fora do útero. Julgou que cabe à mulher, e não ao Estado, decidir se interrompe ou não uma gravidez que, certamente, não resultará em vida.

Ficaram vencidos Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (aposentado). O primeiro entendeu que seria função do Legislativo autorizar a interrupção da gravidez e Peluso argumentou que o feto tem direito à vida e este direito deve ser protegido sempre.

Lei Maria da Penha
ADC 19 e ADI 4.424
Julgamento em 9 de fevereiro de 2012

A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), editada com a intenção de coibir a violência doméstica e familiar contra as mulheres, foi declarada constitucional pelo Plenário do STF. O ministro Marco Aurélio foi relator das duas ações que discutiam a norma e deixou claro em seu voto que a mulher está em situação mais vulnerável que o homem.

“Não há dúvida sobre o histórico de discriminação por ela enfrentado na esfera afetiva. As agressões sofridas são significativamente maiores do que as que acontecem – se é que acontecem – contra homens em situação similar”, afirmou.

Para o ministro, a lei mitiga a realidade de discriminação social e cultural que, enquanto existir no país, legitima a adoção de medidas compensatórias. Justamente para promover a igualdade de gêneros. Além do que, há outras leis especiais para proteger hipossuficientes, como o Estatuto do Idoso e da Criança e do Adolescente.

Na ação que propôs, o Ministério Público Federal questionava o artigo 33 da lei, que fala da criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Segundo o ministro, a norma não obrigou, mas colocou a possibilidade de criação de juizados especializados. Portanto, não criou novas varas, o que seria de competência dos estados, conforme previsto nos artigos 96 e 125 da Constituição Federal. A decisão foi unânime.

Poder do CNJ
ADI 4.638
Julgamento em 8 de fevereiro de 2012

A Associação dos Magistrados Brasileiros questionou a competência do Conselho Nacional de Justiça para regulamentar, instaurar e julgar processos disciplinares contra juízes. O Plenário do STF analisou artigo por artigo questionado da Resolução 135/2011.

Concordou com o relator, ministro Marco Aurélio, que magistrados podem ter como máxima pena disciplinar a aposentadoria compulsória; que a Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/1965) pode ser aplicada contra integrantes do Judiciário, desde que não seja incompatível com a Loman; que a negligência pode ser punida com advertência, censura ou pena mais grave; e que o julgamento do processo disciplinar pode ser feito em sessão pública.

Por maioria os ministros referendaram a liminar concedida por Marco Aurélio para suspender o dispositivo que permitia o afastamento cautelar do juiz antes mesmo da instauração do processo disciplinar contra ele.

Mas o relator ficou vencido quando a maioria decidiu que o CNJ tem competência originária e concorrente para investigar juízes, conforme o artigo 12 da Resolução 135. Nessa votação, o placar ficou em seis a cinco. E ainda quando se discutia o poder do Conselho para regulamentar a instauração e instrução de processos disciplinares. Marco Aurélio havia concedido liminar para suspender esta previsão.

Depositário infiel
HC 92.566
Julgamento em 3 de dezembro de 2008

Vinte e quatro anos depois da edição da Súmula 619, que permitia a prisão de depositário infiel, o Plenário do STF decidiu revogá-la. Seguiu entendimento que o ministro Marco Aurélio defendia há muitos anos, no sentido de que a prisão de depositário infiel é proibida desde 1992, quando o país aderiu, sem restrições, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Pacto de São José da Costa Rica.

O Decreto 678, de 6 de novembro de 1992, em seu artigo 1º diz que “deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém” e o artigo 7º, inciso VII, da Convenção prevê: “ninguém deve ser detido por dívida”. A única exceção à regra seria a prisão de quem deixa de pagar obrigação alimentar. Para Marco Aurélio, isso quer dizer que só existe no país um motivo para a prisão por dívida civil. Ser depositário infiel, não é uma hipótese para detenção. Em 1995, Marco Aurélio ficou vencido no Plenário da corte defendendo a mesma tese (HC 72.131).

A decisão no Habeas Corpus também foi importante para definir que, uma vez promulgada, a convenção internacional passa a integrar o ordenamento jurídico e ter a mesma força que uma lei ordinária.

Por maioria, os ministros revogaram a Súmula 619. Ficou vencido o ministro Menezes Direito (morto em setembro de 2009). Em dezembro de 2009, foi publicada a Súmula Vinculante 25, segundo a qual é ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito.

Uso de algemas
HC 91.952
Julgamento em 7 de agosto de 2008

O Plenário do STF recebeu pedido para anular júri porque o réu permaneceu algemado durante todo o julgamento. O ministro Marco Aurélio votou no sentido de que é necessária a preservação da dignidade do acusado, como prevê o artigo 5º da Constituição Federal. Apenas em casos excepcionais é permitido o uso da algema.

Segundo o ministro, “não bastasse a situação degradante”, a defesa fica em patamar inferior quando o acusado passa todo o julgamento algemado, sem que esteja demonstrada a sua periculosidade. A inferioridade da defesa, explicou o ministro, se dá pelo fato de que o júri é formado por pessoas leigas, “que tiram as mais variadas ilações do quadro verificado”.

No julgamento, que foi por unanimidade, os ministros decidiram editar uma súmula vinculante para que a posição da corte seja seguida necessariamente pelas demais instâncias do Judiciário. A Súmula Vinculante 11 entrou em vigor em 23 de agosto de 2008.

Crédito-prêmio do IPI
RE 353.657 e RE 370.682
Julgamento em 15 de fevereiro de 2007

O Plenário do STF decidiu pela impossibilidade da compensação no IPI do crédito presumido dos insumos com alíquota zero. Por seis votos a cinco, o entendimento foi o de que não há como creditar um imposto que não foi pago. A jurisprudência anterior da corte era em sentido inversamente oposto. Muitas empresas receberam créditos com base na decisão anterior.

A decisão foi puxada pelo voto do relator, ministro Marco Aurélio. Segundo ele, “de acordo com a previsão constitucional, a compensação se faz considerado o que efetivamente exigido e na proporção que o foi. Assim, se a hipótese é de não-tributação ou de prática de alíquota zero, inexiste parâmetro normativo para, à luz do texto constitucional, definir-se, até mesmo, a quantia a ser compensada”.

No final da votação, o ministro Ricardo Lewandowski levantou questão de ordem para discutir a possibilidade de a corte modular os efeitos da decisão. Os ministros deram efeito retroativo (ex tunc) à decisão. Ou seja, quem se valeu dos créditos teve de restituir aos cofres públicos os valores que não foram pagos. Lewandowski foi o único vencido nesse ponto da discussão.

Progressão de regime para crime hediondo
HC 82.959
Julgamento em 23 de fevereiro de 2006

Em votação apertada, seis votos a cinco, o Plenário do STF decidiu que condenados por crimes hediondos também têm direito à progressão do regime prisional. A proibição estava prevista no artigo 2º da Lei de Crimes Hediondos (Lei 8.072/1992), que foi revogado pela corte.

O ministro Marco Aurélio foi relator do caso. Entendeu que o direito de individualização da pena, assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal, inclui a fase de execução da pena. A Lei de Tortura (Lei 9.455/1997), comparou o ministro, permite a progressão e indica a necessidade de dar o mesmo tratamento para os condenados por crimes hediondos.

De acordo com a decisão no HC 82.959, o juiz de execução deve analisar cada caso para verificar o comportamento do preso e, a partir daí, decidir se tem ou não direito à progressão. A decisão, que se deu em fevereiro de 2006, foi comunicada ao Senado, para que providenciasse a suspensão da eficácia do dispositivo considerada inconstitucional. Em 2007 foi editada a Lei 11.464, que definiu: a progressão de regime poderá ser concedida depois do cumprimento de 2/5 da pena, se o preso for primário, ou depois de 3/5 se for reincidente.

Estupro de vulnerável
HC 73.662 e RE 418.376
Julgamento em 16 de abril de 1996 e em 9 de fevereiro de 2006

Em 1996, contra a jurisprudência do STF, o ministro Marco Aurélio entendeu ser relativa a presunção de violência nos casos de relação sexual com menor de 14 anos. O artigo 224 do Código Penal dizia que a violência era presumida. Seu voto recebeu apoio dos ministros Francisco Rezek e Maurício Corrêa. Ficaram vencidos Néri da Silveira e Carlos Velloso.

O Habeas Corpus em votação na 2ª Turma descrevia que a menor de 12 anos admitiu ter tido relação sexual com o acusado por livre e espontânea vontade. Comentou também ter saído anteriormente com colegas do réu. “Portanto, é de se ver que já não socorre à sociedade os rigores de um Código ultrapassado, anacrônico e, em algumas passagens, até descabido, porque não acompanhou a verdadeira revolução comportamental assistida pelos hoje mais idosos”, afirmou o ministro.

O ministro Néri da Silveira defendeu que o objetivo da lei era garantir proteção social aos menores de 14 anos e aos interesses maiores da sociedade. Por isso, seguiu a jurisprudência da corte à época. Em 2009, foi editada a Lei 12.015 que revogou o artigo 224 do Código Penal. O artigo 217-A foi incluído para tipificar o estupro de vulnerável: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos.

Dez anos depois da decisão, a jurisprudência mudou novamente. Chegou ao Plenário da corte caso de menor que mantinha relações sexuais com o seu tutor legal desde os nove anos de idade e que vivia com ele. O ministro Gilmar Mendes qualificou a situação como repugnante. Em primeira instância, ele foi absolvido. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul foi condenado a sete anos de prisão.

A corte discutiu se o fato de viverem juntos como família seria capaz de extinguir a punibilidade do crime cometido. O ministro Marco Aurélio também foi relator deste recurso. Recomendou prudência na decisão e que fossem evitadas as formalidades excessivas. Para ele, deveria prevalecer o dispositivo da Constituição Federal segundo o qual a família é base da sociedade e está protegida pelo Estado.

“Quanto ao confronto de valores, cumpre deliberar se o mais importante para o Estado é a preservação da família ou o remédio para a ‘ferida social’ causada pelo insensato intercurso sexual, dada a idade da jovem – situação não de todo surpreendente, visto que, nos dias atuais, a iniciação sexual começa visivelmente cada vez mais cedo”, sustentou Marco Aurélio. Votaram no mesmo sentido os ministros Celso de Mello e Sepúlveda Pertence.

Venceu o entendimento do ministro Joaquim Barbosa. A criança foi vítima de um crime quando era absolutamente incapaz de manifestar vontade livre e autônoma. “Portanto, inviável a extinção da punibilidade em razão do posterior convívio da vítima – a menor impúbere violentada – com o autor do estupro. Convívio que não pode ser caracterizado como união estável”, diz o acórdão.

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