Manobra regimental

Câmara violou a Constituição ao votar novamente financiamento de campanhas

Autores

  • Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

    é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais.

  • Alexandre Gustavo Melo Franco Bahia

    é advogado em Minas Gerais e mestre e doutor em Direito Constitucional (UFMG) e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

  • Dierle Nunes

    é advogado doutor em Direito Processual professor adjunto na PUC Minas e na UFMG e sócio do escritório Camara Rodrigues Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do Novo Código de Processo Civil na Câmara dos Deputados.

4 de junho de 2015, 16h57

No dia 26 de maio, a Câmara dos Deputados rejeitou proposta de Emenda à Constituição brasileira que visava introduzir o financiamento empresarial de campanhas eleitorais. No dia seguinte, o presidente daquela Casa, no entanto, submeteu novamente à apreciação dos Deputados a possibilidade de doações de pessoas jurídicas privadas a partidos políticos para fins eleitorais. Após a mudança de orientação de alguns Deputados, a proposta foi aprovada.

Poucos dias depois, 63 deputados impetraram Mandado de Segurança (MS 33.630/15) em face dessa aprovação, alegando que a votação ocorrida no dia 27 de maio violou as normas constitucionais previstas no inciso I e no parágrafo 5º do artigo 60 da Constituição da República, que regem o processo legislativo de reforma constitucional. Como corretamente argumentam os parlamentares impetrantes desse MS, a Constituição proíbe que “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada” seja “objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (artigo 60, parágrafo 5º) e exige que uma nova PEC, tanto quanto a anterior, deva ser assinada por, no mínimo, 1/3 dos deputados (artigo 60, inciso I).

O caso traz mais uma vez à discussão o tema do controle jurisdicional de constitucionalidade para a garantia do devido processo legislativo, inclusive em sede de processo de reforma constitucional (Marcelo Cattoni, Devido Processo Legislativo) e coloca, mais uma vez, em discussão uma série de questões: Qual o valor e o sentido jurídico das normas constitucionais (e regimentais) que tratam do processo legislativo? Essas normas estão à disposição da vontade majoritária nas Casas legislativas? Em que sentido(s) se deve reconhecer o princípio constitucional do devido processo legislativo? Está ele ligado somente aos âmbitos jurisdicional e administrativo como uma leitura rápida do inciso LIV do artigo 5º da Constituição Brasileira deixaria entrever? De que modo e sob quais pressupostos cabe ao Supremo Tribunal Federal, no exercício da Jurisdição Constitucional, a garantia do devido processo legislativo?

Pontue-se que diversamente do que uma abordagem superficial poderia conduzir, não se trata na espécie de discutir uma suposta invasão na competência do Legislativo pelo Judiciário, mas da percepção da necessidade de respeito às regras do jogo democrático (accountability) por todas as funções estatais.

Uma simplificação da discussão por partidários de um minimalismo (self restraint) judicial viabilizaria uma blindagem dos debates parlamentares e da análise do respeito (ou não) de suas balizas processuais e, em decorrência, de qualquer nível de fiscalidade, pervertendo uma das principais finalidades do processo legislativo de assegurar participação e igualdade na diferença de todos os seguimentos representados no Parlamento.

No Estado Democrático de Direito, a Constituição interpreta e prefigura um sistema de direitos fundamentais que garante o próprio modo de institucionalização jurídica das formas de deliberação pública necessárias para uma legislação política democrática. Essa institucionalização jurídica deverá estabelecer, em termos constitucionais e regimentais, as condições legítimas para um processo legislativo democrático que não pode ser subvertida ao talante de algum interesse hegemônico contingencial, como parece se aproveitar a atual presidência da Câmara dos Deputados.

Assim, no processo legislativo democrático, a soberania popular e os direitos fundamentais, concebidos, desde o início, como princípios constitucionais, fazem valer a chamada relação interna entre a autonomia pública e a autonomia privada dos cidadãos, consideradas essas, desde o início, de forma jurídica, co-originária e com igual relevância, em contraponto às tradições republicana e liberal do pensamento político que relevam apenas uma delas e as compreendem, respectivamente, ou como autodeterminação ética ou como autonomia moral. É dizer, há uma relação de co-originalidade — e, então, de co-precedência — entre a soberania popular e os direitos fundamentais, entre a autonomia pública e a privada, de tal sorte que nessa relação de tensão eles foram o Sistema de Direitos que uma comunidade livremente escolheu quando pretendeu se constituir se valendo do meio do Direito. Estando em tensão, são esperados conflitos, que, então, fazem parte da normalidade constitucional de qualquer democracia; mas estes devem ser resolvidos dentro dos termos substancializados na Constituição.

Essa compreensão constitucional, portanto, desfaz o que parecia ser um paradoxo acerca dos fundamentos de legitimidade do Direito moderno, uma suposta concorrência entre direitos fundamentais e soberania popular. Isso porque, para usar os termos de uma Teoria Discursiva do Direito e da Democracia, os destinatários das normas jurídicas, enquanto sujeitos privados, pelo processo democrático, enquanto cidadãos, tornam-se autores dos seus próprios direitos e deveres (Jürgen Habermas, Facticidade e Validade). O Direito, na Modernidade, apenas é legítimo porque (e se) cumpre tal requisito, uma vez, em sociedades pós-tradicionais, já não é possível o recurso a fundamentos supralegais, como “Deus”, “tradição” ou simplesmente uma “moral universal”.

Comumente, a expressão “Controle judicial de constitucionalidade das leis” é utilizada para se referir a uma série de controles judiciais que não se reduzem a um controle judicial de constitucionalidade “da lei”, ou a um controle judicial de constitucionalidade “de emenda ou de revisão constitucionais”, ou, ainda, a um controle “de atos normativos”, nem sempre equiparáveis à lei, quanto à sua validade jurídica ou ao seu âmbito normativo de incidência.

E, mais do que isso, o Controle judicial de constitucionalidade das leis deve ser fundamentalmente considerado como controle jurisdicional de constitucionalidade e de regularidade do processo de produção da lei; ou seja, dos atos jurídicos que, ao densificarem um modo jurídico-constitucional de interconexão prefigurada, constituem-se em uma cadeia procedimental que deve ser respeitada, sob pena de revisão judicial.

Essa cadeia procedimental se desenvolve discursivamente; ou, ao menos, em condições equânimes de negociação; ou, ainda, em contraditório, entre agentes legitimados, no contexto de uma “sociedade aberta de intérpretes da Constituição” (Peter Häberle), visando à formação e emissão de um ato público-estatal do tipo “pronúncia-declaração” (Serio Galeotti; Menelick de Carvalho Netto), um provimento legislativo que, sendo o ato final daquela cadeia procedimental, dá-lhe finalidade jurídica específica. Perceba-se, então, que os princípios (normas) relativos ao devido processo legal (ou ao devido processo legislativo, no caso) e ao contraditório (re) aparecem aqui, sendo de observância obrigatória não só para a legitimidade, mas mesmo para a validade/regularidade do processo legislativo.

Assim é que, como seu pressuposto de legitimidade, cabe à Jurisdição Constitucional, no exercício do controle de constitucionalidade das leis, garantir o devido processo legislativo, no sentido da garantia dos direitos fundamentais como condições jurídicas da aludida institucionalização e de possibilidade da democracia.

Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, a Jurisdição Constitucional deve referir-se primeiramente aos pressupostos comunicativos e às condições processuais para uma gênese democrática do Direito. Tal perspectiva não poderá reduzir-se a uma leitura meramente instrumental do processo legislativo, como sugerem os enfoques liberais da política, pois há que se levar explicitamente em conta o caráter normativo dos princípios constitucionais que justificam a legitimidade desse processo.

Como a atuação da Jurisdição Constitucional deve referir-se às condições procedimentais do processo legislativo constitucionalmente estruturado, de acordo com o qual os cidadãos, no exercício de seu direito de autodeterminação, possam realizar o projeto cooperativo de estabelecer condições recorrentemente mais justas de vida, essa atuação deve justamente assegurar o sistema de direitos que apresentam tais condições procedimentais e que, assim, garantem as autonomias pública e privada dos cidadãos, não somente perante o poder administrativo do Estado, mas também em face do poder social e do poder econômico.

Vista dessa perspectiva, a tarefa da Jurisdição Constitucional envolve a própria questão acerca do futuro de uma Democracia, assim como a relação entre a Constituição e o tempo (num processo político-cultural democrático que Habermas chamará de “patriotismo constitucional”), o que envolve a reconstrução, p. ex., de um “princípio constitucional da reversibilidade das decisões”, como corolário do princípio democrático, princípio esse que deve estruturar os processos de reforma constitucional com pleno respeito das já citadas “regras do jogo democrático”. Sem surpresas, ou seja, com respeito à previsibilidade e transparência dos debates públicos parlamentares.

Nesse sentido, a Jurisdição Constitucional, no exercício do controle judicial de constitucionalidade do processo legislativo de reforma constitucional adequadamente respeitado, garante um devido processo democrático de reforma que impeça, inclusive, que os dispositivos constitucionais sejam objeto de alteração através do exercício de um poder constituinte derivado distanciado das fontes de legitimidade situadas numa esfera pública política mais ampla, que não se reduz aos fóruns oficiais do Estado ou em manobras que a desnature em prol de interesses privados (privatizados).

O que leva a que mais uma vez se retome, explícita e radicalmente, à pergunta pelos fundamentos democráticos e pluralistas do constitucionalismo, relacionados à própria pretensão de legitimidade do Direito numa Democracia e de seus pressupostos constitucionais.

Em outros termos, como garantia do princípio constitucional do devido processo legislativo, na Constituição da República brasileira:

A) é cabível o controle jurisdicional do processo legislativo com base nas normas do Regimento Interno, por meio de Mandado de Segurança impetrado por parlamentares e por meio de Mandados de Segurança Coletivos impetrados por partidos políticos com representação no Congresso, porque o Regimento Interno é um estatuto jurídico garante a transparência e previsibilidade do processo legislativo em observância do que dispõe a Constituição sobre a matéria (logo, afastando-se a noção tradicional de matéria interna corporis, porque a violação do Regimento não é uma questão privada, corporativa ou meramente política, posto que afeta as próprias exigências jurídico-constitucionais de deliberação democrática);

B) é cabível o controle jurisdicional do processo legislativo com base em violação das normas constitucionais procedimentais que regem o processo legislativo, inclusive de reforma constitucional (art. 60 e art. 69, da CR), por meio de Mandado de Segurança impetrado por parlamentares e por meio de Mandados de Segurança Coletivos impetrados por partidos políticos com representação no Congresso. Diferentemente da noção monárquica de processo legislativo, típica do séc. XIX, tais normas constitucionais são jurídicas e não meramente políticas. E, como já sublinhado, não estão, pois, à disposição de parlamentares ou de partidos políticos, constituindo, ao revés, algo muito mais profundo, a saber, a garantia e o desenvolvimento da relação interna entre as autonomias públicas e privadas.

Especialmente, quanto ao processo legislativo de reforma constitucional, cabe ressaltar que:

A) cabe o controle jurisdicional prévio de constitucionalidade das próprias propostas de emenda, quando tendentes a abolir as chamadas “cláusulas pétreas”, por força do expressamente disposto no art. 60, § 4.º da Constituição Brasileira: “Não será [sequer] objeto de apreciação proposta de emenda tendente a abolir”;

B) cabe o controle jurisdicional de constitucionalidade, como garantia do devido processo legislativo, de propostas de emenda já rejeitadas ou prejudicadas, com base no disposto no § 5.º do art. 60, da Constituição: “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (grifos nossos). E aí nem se diga que o que foi apreciado no dia seguinte à rejeição da primeira emenda foi algo diverso: a uma porque, como mostram os impetrantes do Mandado de Segurança Individual, o tema do financiamento privado de campanhas por empresas a partidos fez sim parte dos debates havidos na emenda rejeitada – logo, sua rediscussão no dia seguinte não poderia ser feita, nos termos do dispositivo citado; não bastasse a questão do conteúdo, vale ressaltar também que o que se apreciou na sequência foi uma “emenda aglutinativa” à PEC 182/07, é dizer, uma “emenda à (própria proposta de) emenda”, o que mostra, mais uma vez, que o que foi feito foi a exata violação do que veda a Constituição: a rediscussão não só da matéria da mas própria PEC que já foi rejeitada na mesma sessão legislativa.

Por fim, deve-se ressaltar que, embora a tarefa de garantir as condições processuais para o exercício das autonomias pública e privada dos cidadãos necessite de uma Jurisdição Constitucional ofensiva, nos casos em que se deve impor o processo democrático e a forma prevista deliberativa da formação política da opinião e da vontade, isso não pode fazer da Jurisdição Constitucional uma guardiã republicana do processo político e da cidadania.

Uma interpretação do processo político que seja adequada à complexidade das sociedades atuais, não pode reduzir a política a um processo de autorrealização ética, nem muito menos reduzir a Constituição a uma “ordem concreta de valores”.

A formação democrática da vontade e da opinião, ao contrário do que pressupõe a jurisprudência dos valores, o comunitarismo e mesmo o culturalismo jurídico brasileiro, não tira sua força legitimadora da convergência de convicções e de razões éticas, religiosas ou laicas, mas dos pressupostos democráticos expressos na garantia dos direitos fundamentais que possibilitam a ampla participação da cidadania. Assim, a Jurisdição Constitucional não tem, portanto, que buscar sua legitimidade em condições excepcionais. Ela pode permanecer no quadro de sua autoridade para aplicar o Direito, na certeza de que o processo democrático, que ela deve proteger, não precisa ser descrito como um estado de exceção.

Portanto, se compreendermos a Constituição democrática como um sistema de direitos fundamentais, a Jurisdição Constitucional, no exercício do controle de constitucionalidade, deve garantir o devido processo legislativo, no sentido da garantia dos direitos fundamentais como condições jurídicas de institucionalização e de possibilidade da democracia.

E, ao garantir esta institucionalização da democracia, a jurisdição constitucional deve, inclusive, buscar retroalimentar e reforçar a dinâmica democrática e o processo público deliberativo, reconhecendo novos sujeitos e novos direitos, por meio de uma interpretação jurídica inclusiva e aberta ao por-vir da Constituição, vista como processo de aprendizado social, ao longo da história, com o direito e com a política. Nesse sentido é que se abre ao controle de constitucionalidade uma de suas grandes tarefas que é o controle a partir daquela relação de tensão entre o que poderia (se fosse o caso) representar a vontade atual da maioria e a garantia dos direitos excluídos e da minoria.

Por todo o exposto é que se há de rechaçar tentativas de “manobras regimentais” que tentam não apenas mudar decisões majoritárias que seriam contrárias a uma (ou mais) vontade(s) pessoal (is) [privada], porque um Deputado (e/ou um grupo que ele representa) teria prerrogativas especiais por ocupar um cargo de direção dos trabalhos legislativos. À mesa das Casas Legislativas, mais do que a qualquer outro, cabe o resguardo do devido processo legislativo, nas condições e pelas razões já expostas. Daí que, considerando ser parte normal da tensão entre constitucionalismo e democracia a possibilidade da reversibilidade das decisões, esta é possibilitada, em nosso sistema jurídico: a decisão pela rejeição de certa matéria pode ser revertida por uma reapresentação do caso, desde que o seja no ano seguinte, todavia observadas as demais condições do artigo 60 da Constituição, dentre elas, a do inciso I e as do parágrafo 4º. O que foi feito, no entanto, pela Mesa da Câmara dos Deputados viola, formal e materialmente, a Constituição e, por isso, para preservar a regularidade do processo legislativo, deve o Supremo Tribunal Federal dar provimento à(s) respectiva(s) ação(ões) que o venha(m) questionar. 

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