Regulação razoável

Dissenso no caso Lochner v. New York deixou um legado nos EUA

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3 de junho de 2015, 7h11

Posteriormente à Guerra da Secessão, os efeitos da revolução industrial atingiram os Estados Unidos de modo intenso. Espalharam-se pelo país grandes e pequenas indústrias e negócios privados de todo o tipo gerando crescimento econômico e aumentando as populações nas grandes cidades.

Incrementaram-se as relações contratuais entre empregadores e empregados, baseadas na lei da oferta e procura, seguindo a teoria econômica do laissez-passer e do laissez-faire vigente na época. Os trabalhadores passaram a se sindicalizar para aumentar o seu poder de barganha em favor de melhores salários e condições laborais, inclusive limitação na jornada de trabalho.

Neste cenário, o Estado de Nova York aprovou lei limitando a jornada dos padeiros em dez horas por dia e 60 horas por semana com a finalidade de proteger a saúde dos empregados. As grandes padarias não foram tão afetadas com a lei das dez horas, todavia as pequenas padarias, sem muitos recursos, sentiram-se afetadas.

Joseph Lochner, proprietário de pequena padaria em Utica, Nova York, descumpriu a lei “das dez horas” e sofreu multa de U$ 50, prevista na legislação do Estado. Irresignado, contratou, ironicamente, um ex-líder sindical dos padeiros, Henry Weissmann, que, nestas alturas, possuía a sua própria padaria, para impugnar em juízo a legislação[1].

A Suprema Corte dos Estados Unidos acolheu por cinco a quatro o pedido de Lochner. Segundo o Justice Rufus Peckham, prolator do voto condutor, não seria justo e razoável o exercício do poder de polícia do Estado. E, ao contrário, referiu que seria interferência desnecessária na liberdade do indivíduo para avençar contratos de trabalho que possam ser apropriados para o sustento seu e de suas famílias.[2]

A Corte afastou a alegação de que uma jornada com mais de dez horas pudesse ter alguma conexão e causar prejuízos à vida e à saúde dos trabalhadores. A maioria dos Justices rejeitou o argumento de que as longas jornadas de trabalho, superiores a dez horas, colocariam em risco a higiene e a qualidade dos pães e, por extensão, a segurança dos consumidores. O Justice Peckham afirmou “que os empregados não eram mais explorados que outros trabalhadores, nem eram os padeiros uma classe desigual em inteligência e capacidade do que os homens dos outros comércios”. Os padeiros “poderiam reivindicar os seus direitos e zelar, eles próprios, por estes na barganha com os seus empregadores”,[3] sem a necessidade de regulação estatal. O direito de contratar restou garantido como parte da liberdade do indivíduo tutelada pela 14ª Emenda. E o direito de comprar ou vender a força de trabalho foi reconhecido como parte da liberdade protegida pela referida emenda.[4] Referiu o Justice, ainda, que a 14ª Emenda limitava o poder de polícia dos Estados.[5]

A inclemente posição majoritária foi no sentido de que não existia relação direta entre a limitação da jornada de trabalho e a saúde dos empregados que pudesse justificar uma regulação do Estado de Nova York por via legislativa. A crítica à lei formulada pela maioria foi de que o real objetivo e propósito desta foi regular as horas de trabalho entre empregadores e empregados, em negócio privado, não perigoso para a moral ou para a saúde dos empregados. Nestas circunstâncias, a liberdade de empregador e empregado ajustarem a relação de emprego não poderia sofrer intervenção sem violar a Constituição.[6]

Em boa hora, os Justices Harlan, White e Day dissentiram no sentido de que a liberdade de contratar não poderia ser violada, contudo estaria, sim, sujeita a uma política de regulação razoável. A intenção da lei aprovada, para os dissidentes, foi a de proteger o bem-estar daqueles que trabalham nas padarias.[7] Citaram o festejado tratado do Professor Hirt intitulado, Doenças dos Trabalhadores, que descrevia os efeitos nefastos do trabalho dos padeiros sobre a saúde, dado que realizavam grande esforço físico, em locais superaquecidos, por longas horas e labutando grande parte do tempo durante a noite para atender à demanda do público.[8] Constou nos votos dos Justices, embasados em referências médicas, que a continuada inalação de poeira causava inflamação nos pulmões e nos brônquios, afetando também os olhos dos padeiros. Tal trabalho extenuante causava reumatismo, câimbras e fraqueza nas pernas. Os padeiros ficavam com o rosto pálido, saúde debilitada, decorrente de seu modo irregular e pouco natural de vida, privados do sono reparador. A média da expectativa de vida dos padeiros era menor do que a dos demais trabalhadores, não atingindo, em sua maioria, os cinquenta anos de idade.[9] Para os três dissidentes, a decisão deveria levar em consideração o poder inerente dos Estados para zelar pela vida, saúde e bem-estar dos seus cidadãos.[10]

Justice Holmes foi o quarto a dissentir, só que por outros fundamentos. Referiu que o caso estava sendo decidido pela maioria com base em teoria econômica [laissez-faire, laissez-passer], que grande parte do país não aprovava. Aduziu que a Suprema Corte já havia reconhecido, como constitucional, a regulação, em vários casos, como na lei de usura, na lei dos domingos, na proibição de loterias, na lei de vacinação obrigatória no Estado do Massachusets e na decisão que limitou em oito horas a jornada de trabalho nas minas.[11]

Como referem Gunter e Sullivan, desde a decisão de Lochner, de 1905 até meados dos anos 1930, a Suprema Corte invalidou várias leis com base no substantive due process. Como no caso Lochner, as invalidações pela Corte de leis regulatórias provocaram dissensos, mais frequentemente capitaneados pelo Justice Holmes e, mais tarde, pelos Justices Brandeis, Stone e Cardoso. Durante a Era Lochner cerca de duzentas leis regulatórias foram anuladas.[12]

Os votos dissidentes tiveram papel de notável peso nos debates públicos que se seguiram e, em especial, o voto dissidente do Justice Holmes, na decisão de Williamson v. Lee Optical Co.,[13] que praticamente sepultou a Era Lochner. O uso do (in)devido processo legal, utilizado para justificar a autonomia da vontade privada, foi afastado. Passou-se, finalmente, a exigir do legislador uma adequação, entre os meios e fins, atendendo ao princípio da razoabilidade.

No mencionado caso, o Estado de Oklahoma regulou, via legislativa, a obrigatoriedade da prescrição médica de oftalmologista ou optometrista para a substituição, duplicação e instalação de lentes em novas armações. Os oculistas [não médicos] alegaram que a legislação violava o princípio do devido processo legal, pois o procedimento era mecânico. A Suprema Corte entendeu que caberia ao Poder Legislativo, e não ao Poder Judiciário, ponderar as vantagens e as desvantagens da nova exigência. A Corte considerou que, em alguns casos, as orientações contidas nas prescrições médicas eram essenciais para que os óculos fossem regulados para corrigir problemas de visão e aliviar as condições oftalmológicas de forma a corrigir os defeitos particulares de visão.

Constou no voto da maioria que o legislador pode ter concluído que exames oftalmológicos eram tão importantes, não apenas para a correção da visão, mas também para a detecção de males ou doenças latentes. Assim, cada mudança de armações e cada duplicação de lentes deveriam ser acompanhadas pela prescrição de especialista médico. O voto foi claro no sentido de que “… É passada a época em que esta Corte usava a cláusula do devido processo legal para anular leis estaduais, reguladoras de condições comerciais e industriais, porque elas eram consideradas insensatas, inoportunas ou contrárias a uma particular escola de pensamento”.[14]

Não existe dúvida de que os votos dissidentes contribuíram para a mudança de jurisprudência da Suprema Corte, isto é, para que fosse admitida a regulação estatal sobre atividades econômicas. Evidentemente, as regulações devem ocorrer com proporcionalidade a ponto de atender ao interesse público genuíno, respeitadas as vedações do excesso e da inoperância. Razoabilidade, sim, manifestada pela permissão de regulação pelos Estados das relações laborais entre empregados e empregadores. Este, talvez, seja o grande legado do dissenso do caso Lochner deixando expressa a defesa de regulação razoável, não inoperante e, tampouco, excessiva ou prejudicial ao dinamismo econômico.


[1] Lochner v. New York, 198 U.S. 45 (1905).

[2] Ver TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.

[3] Para o Justice Peckham: “Bakery employees were no more exploited than any other workers, nor were bakers as a class [un]equal in intelligence and capacity to men in other trades. They could assert their rights and care for themselves in their bargaining with their employers”. Ver TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 83.

[4] Como afirmado pelo Justice Peckham: “The general fight to make a contract in relations to one’s business is part of the liberty of the individual protected by the Fourteenth Amendment. The right to purchase or sell labor is part of the liberty protected by this amendment” (STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76).

[5] Ver: STONE, SEIDMAN, SUNSTEIN, TUSHNET, and KARLAN’s. Constitutional Law: Keyed to Courses Using. Sixt Edition. New York: Wolters Kluwer, 2010, p. 76.

[6] GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 463.

[7] GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 463.

[8] Segundo os Justices Harlan, White e Day “Professor Hirt in his treatise on the ‘Diseases of the Workers’ has said: The Labor of the bakers is among the hardest and most laborious imaginable, because it has to be performed under conditions injurious to the health of those engaged in it. It is hard, very hard work, not only because it requires a great deal of physical exertion in an overheated workshop and during unreasonably long hours, but more so because of the erratic demands of the public, compelling the Baker to perform the greater part of his work at night” (GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464).

[9] GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464.

[10] GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 464.

[11] TUSHNET, Mark. I dissent. Great Opposing Opinions in Landmark Supreme Court Cases. Boston: Beacon Press, 2008, p. 88.

[12] GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 466.

[13] Williamson v. Lee Optical Co. 348 U.S. 483, 75 S.Ct. 461, 99 L. Ed. 563 (1955).

[14] Ver também GUNTHER, Gerald; SULLIVAN, Kathleen. Constitutional Law. 13th ed. New York: The Foundation Press, 1997, p. 481-482.

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    é juiz federal, é ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) [2010-2012]. ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (Ajufergs) [2008-2010]. Doutorando e Mestre em Direito. Visiting Scholar pela Columbia Law School.

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    é advogado, professor das Faculdades de Direito da PUCRS e UFRGS. Presidente do Instituto de Brasileiro de Altos Estudos de Direito Público. Pós-Doutorado pela Universidade Estatal de Milão. Autor de diversos livros e artigos jurídicos.

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