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Orçamento não pode mais ser uma peça de ficção

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2 de junho de 2015, 8h01

A lei orçamentária já foi reconhecida no Brasil, em decisão do Supremo Tribunal Federal, como a mais importante depois da Constituição[1].

No entanto, ato como o que ocorreu nos últimos dias, em que, em meio às medidas de ajuste fiscal, realizou-se um dos maiores — se não o maior — contingenciamento que se tem notícia[2], indica que o orçamento não será cumprido tal como aprovado. Uma medida que, embora necessária para o equilíbrio das contas públicas, em nada colabora para dar seriedade e segurança jurídica a essa lei tão importante. Os contingenciamentos, tema sobre o qual já discorri especificamente em coluna anterior[3], e, como se pode ver, já se tornaram praxe na Administração Pública, estão cada vez mais intensos, distanciando o orçamento aprovado pelo Poder Legislativo daquele efetivamente cumprido pelo Poder Executivo, tornando excessiva a discricionariedade exercida ao longo da execução orçamentária, e mitigando a credibilidade da lei orçamentária, que passa a se aproximar de uma “peça de ficção”.

A lei orçamentária já foi muito criticada por ser esta “peça de ficção”, verdadeira “formalidade” a ser cumprida pelos entes federados, para a qual não se dava atenção e respeito. Situação que não deixava de ser verdadeira até o início da década de 90, em que estávamos sob um regime de alta inflação, sem moeda estável e confiável, e de desorganização nas contas públicas. Mas que começou a se alterar a partir de 1994, com a estabilização da moeda, e se consolidou com a publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal, em 2000. A estabilização da moeda e o aperfeiçoamento da legislação em matéria de finanças públicas mudaram esse quadro, e não há mais como reconhecer nem aceitar a lei orçamentária como uma peça de ficção.

No entanto, ainda há muito o que fazer para que a lei orçamentária passe a ocupar legitimamente o papel que lhe cabe, e foi corretamente reconhecido, de lei mais importante do ordenamento jurídico depois da Constituição.  

Para que a lei orçamentária possa ter a eficácia e seriedade que justifiquem estar nesta posição de destaque, e sua elaboração torne-se o foro de discussão apropriado para as decisões sobre a adequada alocação dos recursos públicos, com a definição das políticas públicas, programas e ações governamentais que serão efetivamente realizados, e o Poder Legislativo torne-se o verdadeiro responsável por dar a palavra final, há alguns aperfeiçoamentos que se fazem necessários.

Em primeiro lugar, é preciso que apresente números confiáveis e representativos da realidade financeira do País, especialmente em termos de arrecadação, e modo a evitar que, logo após a publicação da lei orçamentária, já se reconheçam como inatingíveis os valores previstos, motivando contingenciamentos gigantescos como o que ora se apresenta. Algumas vezes de forma verdadeiramente despropositada, como o que ocorreu este ano com o orçamento federal, em que, ainda antes de ter sido aprovado, promoveu-se o contingenciamento fundado nas autorizações provisórias da lei de diretrizes orçamentárias (LDO) que havia sido aprovada poucos dias antes — um só ato já foi capaz de por abaixo a credibilidade dos números apresentados não só no orçamento, mas também na LDO.[4]

O artigo 12 da Lei de Responsabilidade Fiscal é claro ao estabelecer que “as previsões de receita observarão as normas técnicas e legais, considerarão os efeitos das alterações na legislação, da variação do índice de preços, do crescimento econômico ou de qualquer outro fator relevante e serão acompanhadas de demonstrativo de sua evolução nos últimos três anos, da projeção para os dois seguintes àquele a que se referirem, e da metodologia de cálculo e premissas utilizadas”. Um dispositivo legal que precisa ser efetivamente cumprido, pois sua estrita observância impede a apresentação de números pouco confiáveis, deixando para a execução orçamentária os ajustes que se tornarão cada vez mais indispensáveis ante os inevitáveis erros nas previsões.

Previsões estas que, como determina a lei ora mencionada, devem ser feitas em observância a normas técnicas e legais, e não fundadas no “incrementalismo” vigente na maior parte dos entes federados, em que as previsões são feitas com base no orçamento executado no ano anterior, acrescido de algum valor a título de expectativas simplistas de provável aumento na arrecadação.

Por oportuno, abandonar a técnica do “orçamento incrementativo” é medida que se impõe para que as previsões da lei orçamentária sejam mais adequadas e próximas da realidade, e evitem inúmeras outras distorções, inclusive na fase de execução orçamentária, como os indesejados gastos em final de exercício[5], inclusão exagerada de despesas em restos a pagar[6], e a manutenção de programas que já não se mostram mais úteis e necessários. O orçamento precisa deixar de ter “caráter geológico”, na bem-humorada expressão criada recentemente por Delfim Netto, mostrando que os programas “se acumulam em camadas” e nunca terminam.[7]

Necessário também que se dê efetivo e integral cumprimento do art. 4º da LRF, que confere à lei de diretrizes orçamentárias várias atribuições, destacando-se, entre outras também relevantes, a de regulamentar o já citado contingenciamento, estabelecendo “critérios e forma de limitação de empenho” (art. 4º, inciso I, b), o que evitaria seu uso impróprio, dando maior segurança e transparência a um instrumento por vezes necessário para ajustar eventuais imprecisões ao longo da execução orçamentária, que se espera sejam cada vez menores. Relevante também que a LDO estabeleça normas que regulamentem o controle de custos e avaliação dos resultados dos programas financiados com recursos dos orçamentos (art. 4º, inciso I, e), fundamental para permitir a fiscalização, não só pelo sistema de controle já estabelecido constitucionalmente, mas também e principalmente pela sociedade, tornando transparente e factível a verificação de quanto custam e o que se espera da aplicação do dinheiro público tal como previsto na lei orçamentária.

É preciso também que se reconheça e se atribua efetivamente o caráter impositivo à lei orçamentária, abandonando a tese, que boa parte da doutrina já deixou de lado, de que o orçamento é lei meramente “formal”, “autorizativa”, sem caráter “mandatório” ou “impositivo”, tornando facultativas suas disposições. Entendimento que não se coaduna com o atual sistema de planejamento governamental, em que as leis orçamentárias representam os principais instrumentos, e dependem de seu fiel cumprimento para que se concretizem as ações tal como planejadas. Tornaria desnecessárias emendas constitucionais, como a recentemente publicada (Emenda Constitucional 86, de 2015), para criar o “orçamento impositivo”, e ainda de forma pouco abrangente, restringindo-se aos valores inseridos nos orçamentos pelas emendas parlamentares.[8]  

Com efeito, não é mais possível deixar de reconhecer o caráter material da lei orçamentária, ante as inúmeras funções por ela exercidas no âmbito do planejamento, gestão e controle, cujos dispositivos contém autorizações, proibições e determinações, e vinculam a ação do administrador a perseguir os objetivos e metas[9], e afastar, pelo critério da concretude de uma lei orçamentária, o seu controle de constitucionalidade.[10]

Nesse sentido já caminha a jurisprudência, o que é de suma importância para permitir aquele que é um dos mais importantes avanços em curso em matéria orçamentária – o controle de constitucionalidade. Uma evolução que ainda não se completou, e é fundamental para dar maior credibilidade e segurança jurídica às leis orçamentárias.

O controle de constitucionalidade das leis orçamentárias, inicialmente não admitido pela nossa Suprema Corte, por reconhecê-la como lei formal, “de efeitos concretos”[11], passou a ser aceito, com o surgimento das primeiras decisões admitindo a possibilidade de controle de constitucionalidade da lei orçamentária. Cabe destaque à ADI 2925, que reconheceu “adequado o controle concentrado de constitucionalidade quando a lei orçamentária revela contornos abstratos e autônomos, em abandono ao campo da eficácia concreta”, mas a inflexão mais significativa deu-se na ADI 4048, já citada no início deste texto, leading case que não deixa mais dúvidas sobre a possibilidade de controle de constitucionalidade das leis orçamentárias, reconhecendo que não podem ficar insuscetíveis de controle judicial, embora ainda não reconheça por completo a possibilidade de amplo controle de conteúdo das normas orçamentárias.[12]

A recente ação (ADPF) movida pelo PSOL[13] traz ao debate a tese do “estado inconstitucional de coisas”, mostrando que muito ainda se pode esperar em termos de avanço no que tange ao controle de constitucionalidade que envolva matéria financeira. Mas isto é tema que vale uma análise mais detalhada, e fica para uma próxima oportunidade.

Enfim, já é hora de deixar no passado a ideia de que a lei orçamentária é uma peça de ficção, para colocá-la em seu devido lugar, e ocupar merecidamente o espaço que lhe cabe, que é a de lei mais importante depois da Constituição.


[1] “A lei orçamentária é a lei materialmente mais importante do ordenamento jurídico logo abaixo da Constituição”, Min. Carlos Britto, p. 92 dos autos, STF, Tribunal Pleno, ADI 4048 (Rel. Min. Gilmar Mendes, j.14.5.2008).

[2]  Governo anuncia corte no Orçamento de quase 70 bilhões, in Valor Econômico, 22 de maio de 2015, dentre outras.

[3] Hora é de “apertar o cinto” e contingenciar gastos, publicada em 11 de março de 2014.

[4] Veja coluna O direito financeiro precisa ser levado a sério, e 2015 começou mal, publicada em 10 de fevereiro de 2015.

[5] Veja coluna Natal é tempo de correr com a execução orçamentária, publicada em 11 de dezembro de 2012.

[6] Veja coluna O final do ano, as dívidas e os restos a pagar, publicada em 17 de dezembro de 2013.

[7] DELFIM NETTO, Antonio, “Por que não começar do começo de 2017?”, in Valor Econômico, coluna publicada em 12 de maio de 2015.

[8] Sobre a questão do orçamento impositivo, veja as colunas já publicas neste mesmo espaço em 7 de maio de 201310 de março de 2015 e 24 de março de 2015 .

[9] FARIA, Rodrigo, Natureza jurídica do orçamento e flexibilidade orçamentária, Dissertação de Mestrado, Faculdade de Direito da USP, 2009.

[10] CHRISTOPOULOS, Basile, Controle de constitucionalidade de normas orçamentárias, Tese de Doutorado, Faculdade de Direito da USP, 2014, p. 121.

[11] STF, ADI 1640, dentre outras.

[12] Nesse sentido, com a análise da evolução da jurisprudência do STF, veja-se CORREIA NETO, Celso de Barros, O orçamento público e o Supremo Tribunal Federal, texto integrante da obra Orçamentos públicos e Direito Financeiro (CONTI, José Mauricio e SCAFF, Fernando F. (coords.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 111-126). Ainda na mesma obra, veja-se ASSONI Filho, Sérgio, Controle de constitucionalidade da lei orçamentária, pp. 21-40, e NEME, Eliana F. e ARAUJO, Luiz Alberto D., O controle de constitucionalidade de normas orçamentárias, pp. 203-214.

[13] Conjur, PSOL pede intervenção do Supremo no sistema carcerário, notícia publicada em 28 de maio de 2015.

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