Academia de Polícia

Corrupção é mais que a ponta do iceberg
e dispensa medidas paliativas

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

28 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Num mundo em que a tecnologia evolui a todo momento e transforma a realidade, a criminalidade organizada marca sua presença, expande-se e aproveita as facilidades da globalização, beneficiando-se, por exemplo, da instantaneidade  de operações bancárias e do anonimato propiciado pela criptografia mais avançada disponibilizada no mercado, mas cuja chave é sonegada aos órgãos de persecução criminal.

A criminalidade organizada se infiltra no Poder Público e corrompe estruturas, servidores e instituições. Não é necessário ser ator do sistema de justiça criminal para perceber que os tentáculos do crime organizado, do dinheiro fácil inescrupuloso, que sufocam a economia e a sociedade brasileiras, estão cada vez maiores, robustos e desinibidos e, por que não dizer, desenfreados.

A inércia, conivência, receio de adoção de medidas corretivas por desgaste político ou próprio temor ao poderio econômico-político de grupos criminosos podem levar a situações extremas de asfixia da economia local, sucateamento de empresas públicas, estagnação do PIB e da geração de empregos e crescente taxação de bens e serviços para compensar os rombos nos cofres públicos.

Há mais de uma década, o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo (2000, p. 28-29) foi atual e preciso em sua radiografia sobre o panorama brasileiro de corrupção e seus protagonistas, chamando a atenção para o fato de que há aqueles que se omitem e se eximem de combatê-la, só atuando em determinadas circunstâncias por razões de ordem íntima:

Há também aqueles que apenas fecham os olhos, permitindo que caudalosa corrente que herdamos de nossos colonizadores continue a correr solta, sem obstáculos. Não a alimentam diretamente [a corrupção], mas também não criam quaisquer barreiras que impeçam seu livre curso. Episodicamente, quando ocorre algum escândalo que tenha forte repercussão na opinião pública, um pouco a contragosto, eles são forçados a tomar medidas pontuais, buscando evitar um dano maior a sua "imagem".

A corrupção cortada pela metade ou atacada apenas superficialmente "tende a submergir nos tecidos mais profundos da máquina administrativa, vindo a ter sua sobrevivência afirmada de maneira difusa, camuflada, tímida e cautelosa[1]".

Segundo o escólio de Patrícia Rocha (2008, p. 101) "quando se trata de interesses privados diante da corrupção, percebe-se que há uma carência de consciência coletiva. Há uma maior valoração do interesse privado que dos bens públicos ou do interesse público, o que obviamente é elemento de incitação à corrupção, especialmente porque a torna socialmente admissível".

Marcelo Cunha (2009, p.70), em seu Só é preso quem quer!, a respeito da impunidade e ineficiência do sistema criminal brasileiro, nos brinda com uma realista passagem sobre um possível "nível hierárquico-organizacional acima" que permite a integração entre as diversas modalidades de crime organizado. Essa é a razão porque vemos o problema "e o motivo de sua não resolução: esse alguém mais sofisticado e poderoso tem íntimas ligações com o Estado institucionalizado e, com certeza, é pessoa que, de dentro do sistema, opera de forma a impossibilitar sua mudança. Trata-se do financiador oculto de campanhas eleitorais, do empreiteiro que misteriosamente vence licitações, do lobista que consegue verbas no orçamento, do intermediário que facilita a obtenção de sentenças em determinado sentido".

Não se pode deixar de observar que a corrupção é refletida na ineficiência dos serviços públicos, na concentração de renda e no aumento da sensação de impunidade. Os milhares de recursos públicos desviados canibalizam a consolidação de um sistema de saúde eficiente, a construção de habitações populares, o aprimoramento das instituições que previnem e reprimem crimes, e por óbvio, o amadurecimento da própria democracia.

Identificado o processo de instalação e evolução da corrupção, não é apropriado se contentar timidamente com a adoção de medidas paliativas e de impacto midiático, mas destituídas de efetividade, pois a corrupção não é apenas aquela pequena ponta do iceberg que se vê na linha do horizonte.

É prioritário o estabelecimento de uma política pública criminal duradoura que aborde a fenomenologia da corrupção e do crime organizado sob o prisma da prevenção, do controle e da repressão, pois as medidas paliativas, especialmente quando idealizadas a partir de ampla repercussão midiática de escândalo nacional, possuem uma limitada consequência temporal que, quando muito, permite apenas a sucessão entre "capos" nos negócios escusos: alguns são presos, outros ascendem às posições abertas, muitas vezes, uma sucessão familiar.

Não há um programa de política criminal "específico frente a este tipo de criminalidade organizada para realizar colocações apropriadas de prevenção segundo suas particulares características", como bem observa Callegari (2008, p. 23).

O Estado tem esboçado a ação plural de órgãos públicos e estabelecido mecanismos de coordenação central e efetiva que supervisione metas, atenda a necessidade de redução de criminalidade e preserve vidas, contudo, a sociedade cobra resultados e neutralização dos corruptores e corruptos com prioridade máxima.

Rogério Arantes (2011, p. 101) sugere que as propostas de reforma para aperfeiçoamento de mecanismos para essa neutralização "devem estar apoiadas em análise criteriosa das relações entre os atores interessados e o desenho institucional. Especialmente no caso dos mecanismos de accountability, pensados para obrigar governos a controlarem a si mesmos, deve-se considerar que o interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo".

Alguns fóruns qualificados foram instalados para congregar os órgãos públicos que possuem responsabilidade na abordagem, prevenção, controle e repressão à corrupção, como é o caso da ENCCLA (Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro), em caráter permanente, na esperança de ser constituída uma política pública de enfrentamento à corrupção.

Mais recentemente, temos o Acordo de Cooperação Técnica para enfrentamento da corrupção e impunidade firmado pelo Ministério da Justiça,  Conselho Nacional de Justiça, Conselho Nacional do Ministério Público, Advocacia-Geral da União, Controladoria-Geral da União e a Ordem dos Advogados do Brasil, com a participação da Secretaria Nacional de Justiça/MJ, Secretaria de Assuntos Legislativos/MJ, Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional/MJ e Polícia Federal/MJ[2].

E por falar em recuperação de ativos e atuação da Polícia Federal, a descapitalização da criminalidade organizada é inerente e indissociável de uma política pública séria de enfrentamento à corrupção.

O juiz federal Sergio Moro (2010, pp. 176/177) registra que o confisco de patrimônio dos criminosos profissionais deve ser amplo, como ocorre no Reino Unido mediante a "preponderância de probabilidades", sendo que é "usual esperar, portanto, em casos de grande dimensão, envolvendo criminosos profissionais, que o confisco de bens atinja igualmente grande amplitude. Embora isso possa causar alguma surpresa, a dimensão do confisco será apenas proporcional à atividade criminal".

A coibição à lavagem de dinheiro, por meio de confisco, perdimento, bloqueio e repatriação de ativos circulantes, também deve buscar a cooperação internacional penal espraiada nas Convenções de Mérida e de Palermo. Não é por menos que o professor Márcio Anselmo (2013, p. 41) leciona:

"No crime de lavagem de dinheiro, por ter como inerente ao tipo penal a ocultação, é frequente a utilização de operações estruturadas em diferentes jurisdições, como uma maneira eficaz e recorrente com objetivo de dificultar a investigação do delito, o que tem gerado o empenho internacional em seu combate, mediante iniciativas de cooperação".

Quando o sistema de justiça criminal atua de forma harmônica, os resultados, frutos do respeito mútuo e interdependência entre Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia Judiciária, aparecem rápido, em prol da sociedade.

Contudo, muitos ainda semeiam o discurso de ódio e da segregação, numa vã tentativa de privilegiar interesses não tão nobres e afastar aqueles órgãos de assento constitucional que se unem pelo trabalho e pelas dificuldades.

A existência de nichos no serviço público, que não refugam trabalho, não se deslumbram e nem se deixam minar pelas benesses do poderio econômico e político, causa perplexidade e assombro nos mais altos degraus dos gabinetes e escritórios de alto padrão, a ponto de se tentar inverter os papéis de investigador e investigado, promovendo-se a devassa da vida pessoal do profissional, representações, suspeições de parcialidade e de violação da independência dos demais poderes.

Persiste em nosso meio a cultura da impunidade e, por essa razão, ainda geram perplexidade as imagens de ricos e políticos sendo algemados. É preciso lembrar que também cabe ao Estado garantir que sejam correta e legalmente investigados e julgados aqueles que cometem crimes e, não por outro motivo, cabe ao Poder Judiciário determinar restrições à liberdade dos indivíduos.

Num país que ainda não consolidou firmes convicções de uma política pública criminal permanente de enfrentamento à corrupção e  de medidas protetivas de seus servidores (inclusive jurídicas), a apreensão de luxuosos e potentes veículos esportivos é capaz de transformar o investigado em inquisidor depois de alguns telefonemas.

Nesse contexto foram extremamente louváveis as posturas públicas do diretor-geral da Polícia Federal que defende a missão institucional de seu órgão, "doa a quem doer", sem ingerência e com foco na descapitalização das organizações criminosas[3], bem como do procurador-geral da República e de ministro do STF que propugnam a legalidade de cumprimento de medidas cautelares de busca e apreensão, amparadas por decisão judicial[4].

Apesar de soarem redundantes e se basearem em construções legais notórias e clássicas, a propriedade dessas declarações é devastadora, pois o tímido avanço no enfrentamento à corrupção não tranquiliza os agentes encarregados da aplicação da lei quanto a futuras consequências dos seus atos investigativos contra o "sistema" que "corta uma mão para salvar o braço", “não tem cara" e "se reorganiza sempre”, frases que ficaram célebres em certo filme nacional que trata sobre a segurança pública no nosso país.

Gustavo Alfredo Landaverde, ex-subdiretor da Direção de Luta contra o Narcotráfico em Honduras, em entrevista ao jornalista Frances Robes[5] do The Miami Herald alertou para a dimensão do problema que está por baixo da ponta do iceberg da corrupção e do tráfico de drogas, em sua pátria. Foi categórico na declaração de que seu país está podre até a alma e as organizações criminosas estão por dentro e por fora das instituições públicas:

"Nós somos podres até a alma [até o âmago]", diz a respeito da corrupção relacionada com a droga infectar praticamente todas as camadas das forças públicas de aplicação da lei em Honduras. "Estamos na fronteira de um abismo. Estas são organizações criminosas dentro e por fora." [da Administração Pública].

O ex-czar antidroga de fala mansa, óculos, foi demitido, processado por difamação e viu seu último chefe ser assassinado. "Eu me perguntei: 'Por que eu ainda estou vivo?'" (Tradução nossa).

Tragicamente, sua pergunta foi calada pela criminalidade organizada em seu país. Foi assassinado duas semanas depois da entrevista, em 7 de dezembro de 2011, quando foram efetuados oito disparos de pistola 9mm contra seu carro por uma pessoa na garupa de uma motocicleta. Quase dois anos depois, o Tribunal de Sentença com Jurisdição Nacional de Tegucigalpa (Honduras) declarou, à unanimidade, Marvin Noel Andino Mascareño como culpado pelo assassinato, com pena individualizada de 22 anos de prisão por um magistrado nacional dos Juicios Orales y Público[6]. Como já ouvimos em outras situações-problema, os autores intelectuais não foram presos e não se tem notícia se foram identificados.

A fronteira do abismo em Honduras não é diferente da de outros países da América Central, da América do Sul e do México, aliás, o Brasil parece que já está auditando o abismo para saber se o poço é sem fundo ou se chega no fundo dele antes das próximas eleições. Ainda em franca formação, nossa recente democracia exige a reformulação do sistema (inclusive eleitoral) e a adoção de posturas mais firmes por parte do Estado, voltadas à sedimentação da ética no trato com a coisa pública.

Assim como foi a reação italiana na luta contra a Cosa Nostra, sem a menor dúvida, a resposta que o Brasil precisa dar — e tem que consolidar muito bem esse pensamento — é priorizar a política pública criminal e suas ações estatais na prevenção, controle e repressão à corrupção, de forma absoluta e incondicional, e promover a conscientização e mudança de postura daqueles que "fecham os olhos", "que não criam barreiras para o livre curso da corrupção"[7].  Disso depende a efetividade de todo o sistema de justiça criminal e da construção de uma sociedade melhor, que não seja privada de recursos públicos que deveriam ser aplicados em saúde, educação e moradia.

Referências bibliográficas
ANSELMO, Márcio Adriano. Lavagem de dinheiro e cooperação jurídica internacional. São Paulo: Saraiva, 2013.
ARAÚJO, Marcelo Cunha. Só é preso quem quer! Rio de Janeiro: Brasport, 2009.
AVRITZER, Leonardo e FILGUEIRAS, Fernando (Orgs.). Corrupção e sistema político no Brasil. ARANTES, Rogério Bastos. Polícia Federal e construção institucional. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011.
CALLEGARI, André Luís (Org.). Crime organizado: tipicidade, política criminal, investigação e processo. ______. Controle social e criminalidade organizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
CARDOZO, José Eduardo. A máfia das propinas: investigando a corrupção em São Paulo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
MORO, Sérgio Fernando. Crime de lavagem de dinheiro. São Paulo: Saraiva, 2010.


[1] Idem.
[2] Disponível em: https://participacao.mj.gov.br//anticorrupcao/ Acesso em 20 jul. 2015.
[3] Entrevista Leandro Daiello. CANTANHEDE, Eliane e MATAIS, Andreza. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lava-jato-prossegue–doa-a-quem-doer,1719372. Acesso em 20 jul. 2015.
[4]Disponível em: http://noticias.r7.com/brasil/pgr-rebate-criticas-de-senadores-sobre-ausencia-da-policia-legislativa-em-buscas-da-lava-jato-14072015.  Acesso em 20 jul. 2015.  http://oglobo.globo.com/brasil/ministro-do-stf-marco-aurelio-mello-diz-que-acao-da-pf-foi-legal-16778501. . Acesso em 20 jul. 2015.
[5] Disponível em: http://www.miamiherald.com/2012/01/23/v-print/2603338/honduras-becomes-murder-capital.html. Acesso em 10 fev. 2012.
[6] Disponível em: http://www.laprensa.hn/sucesos/judiciales/407710-98/culpable-marvin-andino-por-crimen-de-alfredo-landaverde. Acesso em 23.jul.2015. Disponível em: http://radioamericahn.net/2014/01/10/a-22-anos-de-carcel-condenan-al-asesino-de-alfredo-landaverde/. Acesso em 23.jul 2015.
[7] Cardozo (2000, p. 28-29).

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    é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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