Divergência de sentenças

Descumprimento de sentença da Corte Interamericana viola Constituição

Autor

  • Rafael Dilly Patrus

    é advogado sócio do Cremasco Dilly Patrus Peixoto e Leão Advogados consultor legislativo na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e mestre em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG

27 de julho de 2015, 6h24

Há muitas questões relevantes do ponto de vista social, econômico, político e jurídico a serem enfrentadas pelo Supremo Tribunal Federal nos próximos anos. Dentre elas está a controvérsia relativa à (in)compatibilidade da Lei da Anistia de 1979 com a Constituição de 1988. Para muitas pessoas, este seria um debate encerrado ou, no mínimo, esvaziado. A verdade, porém, é que a problemática afigura-se inteiramente em aberto.

Em abril de 2010, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, proposta pelo Conselho Federal da OAB, o Supremo decidiu que a Lei da Anistia foi recepcionada pela Constituição, no sentido da impossibilidade de punição dos agentes do regime civil-militar envolvidos na prática de crimes contra a humanidade. Não obstante, a questão ressurgiu meses depois. Em novembro do mesmo ano, no julgamento do caso Gomes Lund e outros v. Brasil, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por, entre outras razões, não ter conduzido, de maneira eficaz, a punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura. Na fundamentação da sentença, declarou a inaplicabilidade da Lei da Anistia.

A partir de então, a controvérsia assumiu um caráter essencialmente institucional. Em maio de 2014, quase quatro anos após o acórdão do STF, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a ADPF 320, argumentando que o não cumprimento da sentença prolatada pela Corte Interamericana importava em violação a alguns preceitos fundamentais decorrentes da Constituição da República. Dentre eles, foram mencionados os relativos à soberania e à dignidade da pessoa humana como fundamentos da República (artigo 1o, I e III); à prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais assumidas pelo Estado brasileiro (artigo 4o, II); ao reconhecimento da normatividade dos direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que o Brasil figura como parte (artigo 5o, parágrafo 2o); e à defesa da formação de um tribunal internacional dos direitos humanos (artigo 7o do ADCT).

Vê-se que a indagação apresentada ao Supremo Tribunal Federal tem basicamente que ver com a eficácia vinculante das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em outras palavras, é posta a pergunta sobre qual orientação deve prevalecer: a tomada na ADPF 153 ou a delineada no caso Gomes Lund?

Em seu parecer nos autos da ADPF 320, apresentado em agosto de 2014, a Procuradoria-Geral da República sinaliza, paradoxalmente, que os dois encaminhamentos valem. A explicação para esse remendo ao mesmo tempo embaraçado e estratégico é simples. Com o julgamento havido em 2010, o STF decidiu que a Anistia de 1979 é válida à luz da Constituição de 1988, ao passo que a Corte Interamericana, em pronunciamento no final daquele mesmo ano, declarou-a incompatível com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que é um tratado internacional do qual o Estado brasileiro faz parte desde 1992. Trata-se de parâmetros distintos de controle: de um lado, a ordem constitucional, de outro, o aparato convencional, sendo que a validade jurídica só é efetivamente adquirida pelo ato que sobrevive aos dois filtros. Nessa perspectiva, embora seja constitucional, conforme declarado pelo Supremo, a Lei da Anistia é inconvencional – o que a torna, no suposto sistema de “duplo controle”, inválida.

Pode-se compreender o apelo psicológico da tese defendida pelo procurador-geral, sobretudo em vista de um tribunal usualmente resistente a admitir os próprios erros. Existe, contudo, um equívoco de premissa. Isso porque, como já anotado, a própria Constituição estabelece que o Brasil se rege pela “prevalência dos direitos humanos” em suas relações internacionais, devendo reconhecer os direitos e garantias decorrentes dos tratados internacionais em que seja parte e propugnar “pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos”. Isso tudo, repita-se, por expressa previsão constitucional. Então, como se pode afirmar que uma lei incompatível com a Convenção, conforme decidido pelo tribunal internacional competente (que é a Corte Interamericana), está em consonância com a Constituição?

É evidente que o problema é complexo. Entretanto, não se pode perder de vista que a exigência de efetivação dos direitos humanos é, antes de qualquer coisa, constitucional. Desrespeitar a decisão proferida pela corte é, portanto, violar a Constituição. A corrente que a Procuradoria-Geral da República busca emplacar é no sentido de que a Lei da Anistia se mostra inaplicável, não por não ter sido recepcionada pela Constituição de 1988, mas por sua incompatibilidade com a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Ou seja: como resultado, independentemente do caminho, o que se pretende é a eliminação do entrave da Anistia para o tratamento das graves violações de direitos humanos ocorridas no contexto da ditadura civil-militar. Ocorre que a importância do tal “caminho” não se resume a verborragias acadêmicas. As razões pelas quais uma decisão é tomada hoje servem de norte para as decisões tomadas no futuro.

Não se ignora que, no geral, a discussão tem passado ao largo de todas essas questões. A maioria das pessoas crê que a história deve ser deixada “para trás”, que a Anistia possibilitou a transição para a democracia e, por isso, não pode ser questionada. Essas mesmas pessoas reclamam que a democracia brasileira não está amadurecida como a chilena ou a alemã, mas não estão prontas para enfrentar o legado do nosso passado autoritário como fizeram o Chile e a Alemanha. Criticam a impunidade que impera no tratamento da corrupção, mas não percebem que ela deriva da impunidade histórica que é institucionalizada por meio da concepção de autoanistias a crimes contra a humanidade. Almejam uma sociedade justa e igualitária, com ética na política e sem criminalidade nas ruas, mas não se dispõem a cumprir as obrigações internacionais assumidas pelo Estado.

Por isso, talvez, o prisma de um “duplo controle”, mais suave e institucionalmente veiculável, seja de fato a resposta estrategicamente mais interessante para o alcance de alguns avanços no processo de realização da justiça de transição no Brasil pós-1988. Porém, esse reconhecimento não pode elidir nem fazer arrefecer a perspectiva crítica segundo a qual o Direito Constitucional e o Direito Internacional dos Direitos Humanos constituem faces de uma mesma moeda. Desta forma, feitas as ressalvas necessárias, insisto neste ponto: é à luz da Constituição de 1988 – no marco de um constitucionalismo plural e abrangente, construído e reconstruído ao longo de mais de duzentos anos de história ocidental – que a Lei da Anistia de 1979 se afigura inválida.

Nesse quadro tenso de discussão, a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 153 evidencia tão somente um panorama a ser desconstruído. Aliás, essa desconstrução se mostra perfeitamente possível, já que ainda não houve o trânsito em julgado do acórdão, considerando o recurso de Embargos de Declaração interposto pelo Conselho Federal. A bem da verdade, até mesmo o dito trânsito em julgado não implicaria qualquer impedimento quanto à reabertura do debate, uma vez que as sentenças, no controle de constitucionalidade por via principal, de declaração da constitucionalidade do ato analisado não fazem coisa julgada material. Daí a conclusão de que a ADPF 320 representa, tanto para o STF quanto para a sociedade, uma oportunidade singular de redenção.

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