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TJ-SP reafirma a vitalidade do Habeas Corpus em caso de crime ambiental

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27 de julho de 2015, 18h21

Maior instrumento de combate às ilegalidades e arbitrariedades praticadas pelo Estado contra os cidadãos, o habeas corpus vem tendo seu manejo constantemente amesquinhado por parte da jurisprudência, especialmente a dos Tribunais Superiores, que tem se posicionado no sentido de não mais admitir a impetração originária quando cabível a interposição de recurso ordinário — de trâmite muito mais lento, diga-se — ou porque não poderia substituir os recursos especial e extraordinário, em nome de se “prestigiar a lógica do sistema recursal”[1].Tudo seguindo a perversa lógica de, em nome da pureza das formas, deixar de evitar ou remediar uma injustiça sofrida por um cidadão.

De fato, por mais que se tente encontrar — e, principalmente, externar — razões de ordem jurídica para encolher a envergadura do writ, a verdade é que estes tribunais estão impedindo seu trâmite por questões de ordem prática, especialmente “a sobrecarga de processos” que estaria “praticamente inviabilizando, em tempo hábil, a jurisdição”[2]. Entretanto, “a comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF [ou qualquer outro tribunal] não pode ser lograda a esse preço”[3].

O Min. Marco Aurélio, que havia capitaneado a inovação de não mais admitir-se a impetração originária substitutiva do recurso ordinário, tentando amenizar um pouco a indevida restrição ao writ, mais tarde evoluiu “para, presente a premissa segundo a qual a virtude está no meio-termo, adotar a óptica de admitir a impetração toda vez que a liberdade de ir e vir, e não somente questões ligadas ao processo-crime, à instrução deste, esteja em jogo na via direta, quer porquanto expedido mandado de prisão, quer porque já foi cumprido”[4].

Mais acertado, contudo, tendo em vista que “a proteção dos cidadãos no âmbito dos processos estatais é justamente o que diferencia um regime democrático daquele de índole autoritária”[5], era o antigo e garantista posicionamento do ministro, de que “a envergadura maior do habeas corpus o torna imune a peias”[6].Sim, porque o “habeas corpus, entre nós, tem sido historicamente o grande instrumento que resguarda o cidadão de abusos praticados por agentes do sistema penal, de policiais a juízes, passando por membros do Ministério Público e até agentes do sistema penitenciário”[7].

O âmbito cognitivo desta ação constitucional, portanto,não pode limitado aos casos de restrição absoluta da liberdade de locomoção — consubstanciada no aprisionamento do cidadão. Muito pelo contrário, deve ser meio hábil para impugnar qualquer violência ou coação decorrente de ilegalidade praticada por agente estatal, que importe em alguma restrição à liberdade do cidadão, ainda que mínima.

É inconcebível que em um Estado regido por uma Constituição garantista como a nossa aceite-se que um cidadão sofra uma ilegalidade praticada pelo estado e simplesmente não possa coibi-la porque não está nem vai ser preso.

Com fundamento nisso e na importância que writ constitucional tem na construção e na consolidação de qualquer Estado democrático de direito, o Tribunal de Justiça de São Paulo, por sua 12ª Câmara Criminal, reafirmou a admissibilidade da impetração para impugnar acórdão condenatório de Turma Recursal, em caso de condenação por crime ambiental a pena de um mês de prisão simples em regime aberto, convertida no pagamento de um salário mínimo, na qual questionava-se a tipicidade da conduta.

No aresto relatado pela desembargadora Angélica de Almeida, processualista de mão cheia,ficou destacado tratar-se o habeas“de instrumento de tutela da ameaça, mesmo que remota, da liberdade da pessoa. Instrumento, ainda, de controle da persecução penal, na medida em que limita a atuação do poder do Estado”[8].

Diante disso, “como garantia constitucional, não se esgota na tutela direta e imediata do direito de ir e vir. Resguarda outros direitos, que emanam do direito de locomoção. Presta-se a remover, de pronto, ou evitar, atos manifestamente ilegais”.

Não poderia estar mais de acordo com os princípios e garantias da Constituição de 1988, que, no final do dia, é o que deve prevalecer quando se trata do mais importante remédio contra ilegalidades praticadas pelo Estado e suportadas pelos cidadãos.

No mérito da impetração, a Turma Julgadora reconheceu a atipicidade da conduta, pois o crime previsto no artigo 60 da Lei 9.605/98 exige “perícia para atestar que o estabelecimento construído é potencialmente poluidor”. É que “o bem protegido pela norma incriminadora é o meio ambiente e, uma vez ausente prova da potencialidade poluidora do estabelecimento em questão, não há falar em conduta típica”.Além disso, destacou-se que “a autorização ou licença posteriormente concedida deve ser levada em conta, inclusive, para evidenciar que a atividade se desenvolvia de forma regular”.

Como se nota, a conduta pela qual foi condenado o então Paciente era claramente atípica, mas, apesar disso, se fosse aplicada a jurisprudência limitadora do habeas corpus, ele seria injustamente obrigado a cumprir uma pena pecuniária.

Fica clara, assim, a importância de dar-se o devido prestígio e amplitude ao manejo do writ, para coibir eficazmente as ilegalidades e abusos estatais no âmbito de sua atuação penal, ainda que estes não signifiquem restrição absoluta da liberdade de locomoção, pois em alguma medida esta sempre poderá ser violada nestes casos.

[1] STJ, HC nº 132.540, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJe 05.09.2012. Para a crítica a tais posicionamentos, confira-se: Habeas corpus está sendo amesquinhado(Alberto Zacharias Toron, in: www.conjur.com.br e, do mesmo autor, no mesmo site, Conversa de um criminalista com o ministro Barroso.

[2] STF, HC nº 110.609, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 18.12.2012.

[3] STF, HC nº 84.078, Rel. Min. Eros Grau, DJe 25.02.2010.

[4] STF, HC nº 110.328, DJe 09.02.2015.

[5] STF, HC nº 91.514, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 15.05.2008.

[6] STF, HC nº 87.470, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 08.09.2006.

[7]Alberto Zacharias Toron.A racionalidade do sistema recursal e o Habeas Corpus. http://www.conjur.com.br/2012-set-22/alberto-torona-racionalidade-sistema-recursal-habeas-corpus (acessado em 24.07.2015).

[8] HC nº 2081376-52.2015.8.26.0000, DJe 21.07.2015.

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