Fiança bancária

Prazo de banco para beneficiário reclamar fiança não condiciona seu exercício

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24 de julho de 2015, 6h21

A fiança bancária é produto típico[1] e largamente oferecido no mercado financeiro pelos bancos comerciais e de investimento. Neste produto, o banco assume o papel de fiador do seu cliente (afiançado) por ocasião de uma determinada obrigação assumida pelo cliente com um terceiro (beneficiário).

A contratação é formalizada em dois instrumentos: um contrato que regula as condições de emissão da fiança (especialmente remuneração, ressarcimento de valores e contragarantias), celebrado entre o banco e o cliente, e a carta de fiança propriamente dita, emitida pelo banco para o beneficiário.

A fiança bancária apresenta altos custos para o cliente, seja por conta das taxas cobradas pelos bancos, seja pelo valor das contragarantias exigidas. Por conta disso, sua contratação fica limitada a clientes sofisticados, na sua maioria empresas, que no curso de suas atividades sociais precisam apresentar garantias para viabilizar negócios.

Uma questão controversa entre os operadores do sistema financeiro diz respeito às fianças contratadas por prazo determinado. Frente à inexistência de regulamentação específica, não há consenso se o banco poderia estipular um prazo para o beneficiário exigir o pagamento da fiança após seu vencimento (assumindo-se, obviamente, que referida inadimplência seja rigorosamente um evento garantido no âmbito da carta de fiança).

Essa questão importa aos bancos na medida em que toda fiança constitui um passivo contingente[2] e, assim, afeta tanto os seus limites operacionais como as suas demonstrações financeiras periódicas. A questão central discutida não diz respeito à existência do passivo, mas sua duração: quanto tempo deveria o banco aguardar a notícia do afiançado antes de assumir (contabilmente) sua exoneração?

No intuito de tratar o tema de forma simples, por praxe, toda fiança bancária emitida por prazo determinado (que normalmente coincide com o termo da obrigação garantida) conta com um prazo contratualmente estipulado para que, vencida a fiança, o beneficiário notifique o banco exigindo seu cumprimento.

Curiosamente, esse assunto foi levado ao Poder Judiciário numa disputa entre dois bancos[3], sendo beneficiário o Banco Bamerindus e fiador o Banco Bozano Simonsen, que se recusou a honrar a garantia depois de ter sido notificado após o prazo convencionado na carta de fiança, de 48 horas contadas do vencimento da obrigação garantida.

O acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que a cláusula que estipulava o prazo de notificação era nula com base em dois argumentos: (i) ser ela puramente potestativa[4], a teor do disposto no artigo 115 do CC, e (ii) ainda que assim não se entendesse, a sua observância implicaria na prática em “anular” o próprio contrato, justificando seu entendimento na exiguidade do prazo assinalado versus a dinâmica e complexidade das operações bancárias.

A questão foi posteriormente analisada pelo STJ por ocasião de um recurso do Banco Bozano (AgRg 213.602/RJ), que abraçou o segundo argumento do tribunal a quo, anulando definitivamente a cláusula, por entender que a estipulação contratual de um prazo “tão exíguo” configuraria uma condição fisicamente impossível, fundamentando seu entendimento em parte do mesmo artigo: (…) “Entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o ato.”

Ambas decisões consideraram que a estipulação do prazo para reclamar a fiança consubstanciaria uma condição o que, tecnicamente, não corresponde ao conceito jurídico do instituto. Segundo se extrai da simples leitura do artigo 121 do CC, a condição é uma cláusula que subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto. Se o evento é certo (como o curso de um prazo) não se pode falar em condição do negócio, sim de seu termo.

A confusão talvez decorra da complexidade do produto frente ao uso tradicional do instituto: a fiança bancária conta com dois prazos contratados, que não se confundem: o primeiro, diz respeito ao lapso temporal em que o deve ocorrer o inadimplemento do afiançado (que coincide com o termo final da obrigação garantida). O segundo diz respeito ao prazo em que o fiador permanecerá obrigado ao seu pagamento que, uma vez decorrido, extinguirá a fiança.

Diferente de outros contratos bancários, a fiança bancária não é contrato de adesão típico: o seu conteúdo é imposto pelo beneficiário e não pelo banco. O que se tem é um conjunto de contratos efetivamente negociados entre partes com condições e oportunidade de estipular direitos e obrigações individuais.

Apesar de o direito civil contemplar a fiança desde o Direito Romano, o instituto não sofreu grande evolução legislativa: o Código Civil de 2002 tratou a obrigação do fiador com as partes partindo do pressuposto de que ali existiria tão-somente uma relação civil, repetindo as regras contidas no Código de 1916.

Assim, a reforma da lei civil deixou de lado toda uma dinâmica social e econômica, que ao longo dos anos imprimiu novo uso ao instituto da fiança, de natureza claramente mercantil, que hoje em dia permeia largamente sua utilização. Nesse contexto, a releitura dos artigos 818 e seguintes do Código Civil evidencia que a complexidade inerente às relações obrigacionais decorrentes dessa nova dinâmica não está ali retratada.

O aspecto mais transgressor em relação ao modelo tradicional decorre certamente da onerosidade inerente à contratação da fiança bancária. Tem-se aí verdadeira relação mercantil, onde o pagamento de remuneração ao fiador figura como contraprestação do negócio jurídico entabulado.

Aparentemente o julgado do STJ não contextualizou a fiança apreciada. Assim, infelizmente, deixou de enfrentar naquela oportunidade diretamente a legalidade da estipulação do prazo em si e, com isso, orientar a jurisprudência dos tribunais inferiores, optando por adentrar numa discussão de exiguidade de prazo (validamente contratado, reforce-se, entre dois bancos) e numa dinâmica que, pelo próprio conteúdo da decisão, ficou claro desconhecer.

Conclui-se, assim, que a estipulação pelo banco de um prazo para exercício do direito do beneficiário reclamar a fiança não condiciona o seu exercício, mas tão-somente estabelece termo para que ele o faça, o que preserva interesse legítimo do banco que deve preservado como produto da vontade das partes contratantes, validamente declarada.

 


[1] A fiança bancária foi inicialmente regulamentada pelo Banco Central como produto na Circular nº 29 de 1966, que estabeleceu condições gerais para a sua contratação sem necessidade de autorização específica.

[2] De acordo com as regras contábeis internacionais (IFRS), passivo contingente pode ser definido como uma possível obrigação, que resulta de acontecimentos passados, cuja existência será confirmada apenas pela ocorrência (ou não) de um ou mais acontecimentos futuros incertos não totalmente sob controle da pessoa.

[3] Processo de Origem TJRJ 0097668-08.1996.8.19.0001

[4] Com base no art. 115 do Código Civil de 1916, cuja correspondência no Código Civil de 2002 é o art. 122, que dispõem: “São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.”

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