Passado a Limpo

A Primeira Guerra Mundial e seus
efeitos no comércio internacional

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de julho de 2015, 8h01

Spacca
Nesta semana apresento interessantíssimo caso decidido por parecer da Consultoria-Geral da República, em 1923, e que revela aspectos pragmáticos do direito comercial, em contexto de exceção, resultante da guerra, então invocada como indicativo de força maior. Um particular invocou indenização, a ser paga pela Fazenda Nacional, com base em contrato assinado com então “Lloyd Brasileiro”. Trata-se de uma estatal da área de navegação que operou de 1894 a 1997. 

O requerente pretendia ser ressarcido porque um vapor do Lloyd descarregou na França mercadorias que eram destinadas à Espanha. Alegou-se na defesa da estatal uma arribada forçada, especialmente porque a embarcação ficou detida na África, dependente de combustível. O caso é fascinante, suscita exploração de vários institutos do direito marítimo, recorrentemente há referências ao Código Comercial de 1850 e ao Código Civil de 1916.

O parecer foi assinado por Astolpho Vieira de Rezende, que concluiu pela impossibilidade jurídica do pagamento da indenização, como pleiteada, possibilitando, no entanto, ao consulente, Ministro da Fazenda, o atendimento do pedido, como medida de equidade.

"Gabinete do Consultor-Geral da República — Rio de Janeiro, 23 de maio de 1923.

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda — Tenho a honra de restituir a V. Exª, com o presente parecer, o incluso processo, referente ao requerimento em que Rodrigues Fernandes & Cia. reclamam pagamento da quantia de 328:208$325, pelo fato de ter o vapor "Purus"; do Lloyd Brasileiro, descarregado em Bordeaux mercadorias pelos mesmos embarcadas com destino ao porto de Santander, e sobre que V. Exª se dignou de solicitar o meu parecer, pelo Aviso nº 76, de 11 de abril próximo passado.

O que do volumoso processo consta é o seguinte: No dia 7 de dezembro de 1917, Rodrigues Fernandes & Cia. embarcaram no vapor "Purus Lloyd Brasileiro, no porto da Bahia, com destino a Santander, e consignados à Companhia Arrendatária de Tabacos, 13.870 fardos com fumo em folha, segundo reza o conhecimento. Estávamos então em plena guerra. O vapor saiu do porto da Bahia, em 13 do referido mês, mas, alegando necessidade de tomar carvão e água, arribou no porto de Dacar. Nesse porto foi o comandante coagido pelas autoridades francesas a partir diretamente para Bordeaux, sem fazer escala em qualquer porto da Espanha, sob pena de lhe não ser fornecido o carvão de que necessitava.

Nessa conjuntura, forçado a obedecer, o capitão lavrou protesto, não só perante o Cônsul Brasileiro, como perante a justiça local, e prosseguiu viagem. Chegado que foi a Bordeaux, fez descarregar a mercadoria, requerendo ao Tribunal do Comércio daquela Cidade um depositário para elas, por não ser encontrado o consignatário, o que lhe foi concedido.

Em 28 de fevereiro de 1918, os carregadores, Rodrigues Fernandes & Cia., dirigiram aos agentes do Lloyd Brasileiro na Bahia uma carta, na qual, dizendo ter tido ciência de que o vapor "Purus" acabara de chegar a Bordeaux, e não lhes tendo sido comunicado o desembarque em Santander dos 13.870 fardos de fumo, que para aquele porto haviam embarcado, pediam que os referidos agentes lhes informassem qual o destino que o Lloyd pretendia dar aos referidos volumes.

Os referidos Lloyd nesta capital. Nesse telegrama dizia a diretoria que no dia 2 de fevereiro havia ordenado por telegrama ao comandante do vapor, então no porto de Dacar, que devia protestar perante o Cônsul Brasileiro, naquele porto, contra a exigência da viagem direta para Bordeaux, e, aí chegado, descarregar as mercadorias, repetindo os protestos, e consignando nestes a impossibilidade de atingir o porto de Santander, em vista das intenções sinistras do inimigo, os quais, por sua natureza, podiam fazer sérias avarias ao vapor e à carga.

Rodrigues Fernandes & Cia., não se conformando com esta resposta, requereram, em 18 do mesmo mês de março, ao Juiz Federal da Bahia, que mandasse tomar por termo o protesto que faziam contra o fato de não ter o vapor entregado a carga no porto do destino (Santander), e ainda de havê-la abandonado em Bordeaux sem que o Lloyd se julgasse no dever de lhes dar ciência dessas ocorrências. Protestaram haver d Lloyd Brasileiro todos os prejuízos e danos que lhes pudessem advir do procedimento de seu preposto ou mandatário, fossem eles não só decorrentes das despesas para conservação e transporte das mercadorias ao porto do seu destino, como da sua deterioração e desvalorização pela demora na venda, além das demais cominações de direito. Desse protesto foram intimados os agentes do Lloyd na Bahia, e mais tarde, em 18 de abril, a sua Diretoria, nesta Capital, em virtude de precatória.

Em 28 de julho do referido ano de 1918, o Governo da República Francesa, exercendo o direito de soberania, requisitou, para consumo das forças combatentes, os referidos 13.870 fardos de fumo, além de outros, ali descarregados pelo vapor "Purus", e mais tarde, em 25 de abril de 1921, pagou, a competente procurador dos reclamantes, a soma de francos 2.882.171,91, montante da sua fatura.

Antes de realizarem esse recebimento, Rodrigues Fernandes & Cia., em 25 de agosto de 1919, requereram segundo protesto ao Juiz Federal da Bahia, dizendo que, como até então continuassem no desembolso das mercadorias, com a perda de juros pela paralisação do seu capital, em grandes prejuízos pela diferença da taxa cambial entre a data em que deviam liquidar com a Companhia Arrendatária de Tabacos, e ainda obrigados a despesas com procuradores, advogados em Bordeaux e na Bahia, para defesa de seus direitos, protestaram de novo por todos esses danos, a fim de, em tempo, os fazer valer e cobrar do Lloyd Brasileiro a respectiva indenização.

Em 27 de janeiro de 1921 fizeram, no mesmo Juízo, terceiro protesto, a fim de que fosse intimada a nova Diretoria do Lloyd, e cientificada dos dois protestos anteriormente feitos, sendo o novo protesto publicado pela imprensa. Em petição de 29 de novembro de 1919, Rodrigues Fernandes & Cia., propuseram ao Sr. Ministro da Viação liquidar-se por acordo a indenização a que se julgam com direito, e que nessa petição estimaram em 1.300 contos de réis. O Sr. Ministro da Viação, depois de ouvir a Diretoria do Lloyd, indeferiu o requerimento, por despacho de 30 de março de 1920.

Mais tarde, em 11 de junho de 1921, os reclamantes apresentaram ao mesmo Ministro um "Memorial", onde, depois de discutir o caso, propuseram, para um acordo, receber a importância do frete que pagaram, de 428:927$S880.  Processado esse Memorial Lloyd Brasileiro, foi a proposta recusada pelo Sr. Ministro da Fazenda, que, por despacho de 11 de maio de 1922, declarou nada haver que deferir.

Voltaram então os reclamantes à presença de V. Exª com um novo requerimento, datado de 5 de janeiro do corrente ano, no qual se contentam com a indenização de 310:208$325 que representa a diferença entre o preço da venda, ajustado com a companhia consignatária, e o que efetivamente receberam do Governo Francês, feita a conversão da moeda ao câmbio do dia do pagamento (25 de abril de 1921).

Expostos assim os fatos, vejamos os fundamentos alegados, de lado a lado. Alegam Rodrigues Fernandes & Cia., como fundamento do seu direito, o seguinte:

1°) que o Lloyd Brasileiro, recebendo a carga para transportá-la desde o porto do embarque, até o do destino, estava obrigado a entregá-la neste último porto.

2°) que eles pagaram pelo frete, desde a Bahia até Santander, a elevada soma de 428:927$880, tendo em vista todos os riscos da guerra.

3º) que a guerra, para ser considerada como causa de força maior resolutória do contrato de fretamento, é necessário que seja superveniente à realização do mesmo contrato, hipótese que não se verificava, porquanto foi sob o domínio da guerra europeia e quando o Brasil já entrara na luta ao lado dos aliados, que eles contrataram o transporte da mercadoria, pagando, por todos os riscos, o frete já mencionado, e assim a guerra não pode ser alegada como causa de força maior.

4º) que quando mesmo, as hostilidades houvessem começado notoriamente após esse contrato, ainda assim não constituiriam legitimo impedimento, porque o país de destino das mercadorias, Espanha (Santander) era neutro, e não tomara parte na guerra europeia, nem o porto estava em bloqueio.


 

 

 

 

 

 

 

5º) que o capitão, afastando-se do porto do destino, procurou um porto impedido, o de Bordeaux, pertencente a um país em guerra.

 

6º) que a arribada do navio ao porto de Bordeaux não foi forçada, e sim voluntária, porquanto a arribada não se admite pela simples previsão, mas exige fatos positivos, que não deixem dúvidas sobre o perigo a que ficaram expostos o navio e a carga, e esses fatos não foram positivados pelo comandante.

7º) que o capitão declarou, no protesto que fez em Bordeaux, que o consignatário não se apresentara para recebê-la, o que não era permitido ao capitão fazer, porquanto ele sabia que o consignatário estava em Santander, porto do destino.

8º) que no contrato de fretamento ficou ajustado, por cláusula expressa, que as mercadorias, que por qualquer circunstância, não pudessem ser levadas ao porto de destino, deveriam ser levadas ao mais próximo e depois reembarcadas por conta do Lloyd, o que não fez o comandante, preferindo deixá-las em depósito judicial em Bordeaux.

A esses argumentos apôs o Lloyd outros, alegando em resumo o seguinte:

1º) que o contrato de fretamento, consubstanciado no conhecimento, excluía completamente todas as responsabilidades provenientes dos riscos da guerra; então em plena atividade; invocando uma cláusula suplementar, impressa em letras encarnadas no verso do conhecimento;

2º) que, não só em virtude dessa cláusula, como da cláusula IV do corpo de conhecimento, era lícito ao capitão, em caso de bloqueio, com proibição ou perigo de entrar em porto de escala, ou descarregar a carga em razão de guerra ou rebelião, descarregá-la em qualquer porto, por conta e risco da fazenda, cessando desde então a responsabilidade do navio;

3º) que o navio arribou em Dacar, a fim de receber combustível, sem o qual não seria possível alcançar qualquer dos portos da escala, sendo forçado por imposição do governo francês, a demorar a sua estadia nesse porto;

4º) que o procedimento do comandante, descarregando em Bordeaux a carga destinada a Santander, e deixando de ir a este último porto, ou a qualquer outro porto da Espanha, justifica-se perfeitamente pelo temor fundado do inimigo, bastando saber-se que era em águas espanholas que os submarinos alemães (inimigos) exerciam a sua ação, já tendo sido, então, vítima deles um outro paquete do próprio Lloyd, o "Macau", de cujo comandante ignora-se até hoje a sorte, perecendo grande parte da tripulação;

5°) que, além disso, para fornecer ao "Purus" o carvão de que ele necessitava, as autoridades francesas senhoras do porto de Dacar, impuseram ao comandante a condição de não demandar o porto de Santander e de seguir com o navio para Bordeaux;

6º) que, finalmente, já tendo os reclamantes recebido do governo francês a importância da mercadoria, sem restrições nem protestos, desapareceu qualquer responsabilidade que porventura coubesse ao Lloyd.

São essas, em resumo, as alegações de uma parte e da outra, e sobre as quais passo a me pronunciar. O Código Comercial estatui como regra geral que ao capitão é proibido entrar em porto estranho ao do seu destino, mas admite-o que o faça quando ali for levado por força maior, ou necessidade; neste caso diz-se que ele fez uma arribada forçada (arts. 510 e 740). O art. 741 considera causas justas para arribada forçada: 1º) Falta de víveres, ou aguada; 2º) Qualquer acidente acontecido à equipagem, carga, ou navio, que impossibilite este de continuar a viagem; 3º) Temor fundado do inimigo ou pirata.

Todavia, não será justificada a arribada (art. 742 nº 3), se o temor do inimigo ou pirata não for fundado em fatos positivos que não deixem dúvidas. De sorte que ao capitão é permitido entrar em porto estranho ao do seu destino em dois casos: — quando a ele for levado por força maior, ou por necessidade. O Código exemplificou, no art. 740, os casos de necessidade; mas não definiu a força maior, de que fala o art. 510, exemplificando-o apenas no art. 548.

Prevalece, portanto, para a "força maior"; o conceito que lhe dão as leis civis, aplicáveis à espécie, ex vi do disposto no art. 121 do Código Comercial; o caso, portanto, ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar, ou impedir (Código Civil, art. 1.058, parágrafo único). Cumpre, portanto, averiguar se o capitão foi compelido a entrar no porto de Bordeaux, em vez de entrar no porto de Santander, por força maior.

Parece-me que sim. Arribando em Dacar para receber combustível, sem o qual estava impossibilitado de continuar a viagem, o navio "ficou retido" nesse porto, durante muito tempo, (44 dias) por ato de uma potência estrangeira, autoridades francesas, que lhe impuseram como condição para o abastecimento de combustível, de que só aquela potência era senhora, um compromisso duplo: 1º, de não prosseguir viagem para Santander, e 2º, de seguir viagem para Bordeaux. O comandante, ou se submetia à imposição, ou ficaria indefinidamente retido em Dacar, com seu navio e a carga.

Do documento de fls. 122 deste processo consta que o navio ficou retido no porto de Dacar desde o dia 26 de dezembro de 1917 até o dia 8 de fevereiro de 1918, data da sua partida para o porto de Bordeaux. O comandante, depois de ouvir o proprietário do navio, submeteu-se, protestando, porém, contra a imposição, o que fez perante o Presidente do Tribunal de Dacar, como se vê dos documentos de fls. 123 e 125. Nesse protesto declarou o comandante que  "tendo chegado a Dacar em 26 de dezembro de 1917, com um carregamento de mercadorias diversas, das quais, especialmente, 13.870 fardos de fumo destinados a Santander (Espanha) e 35.000 sacos de café e cacau para Bordeaux, a fim de renovar sua provisão de carvão e de água, com o fim de continuar sua viagem, encontra-se na impossibilidade de fazê-lo, em consequência da proibição feita pelas autoridades marítimas locais de lhe fornecer o carvão de que tinha necessidade”. A 26 de janeiro, por carta dirigida ao agente geral da "Compagnie des Chargeurs Réunis", consignatária do "Purus" em Dacar, o Sr. Comandante da Marinha Francesa neste porto declarou que não poria obstáculo à entrega de combustível que era indispensável, com a condição do "Purus" seguir diretamente para Bordeaux, sem, tocar em Santander.

O capitão do "Purus", tendo recebido de seus armadores instruções complementares, autorizando-o a se conformar com a obrigação que lhe era imposta pelas autoridades marítimas francesas, comprometeu-se a seguir diretamente a sua rota para Bordeaux, sem escalar em nenhum porto da Espanha, mas fez, pela presente, junto do Sr. Presidente do Tribunal, todas as reservas pelas perdas e danos, suscetíveis de serem reclamados ulteriormente, quer pelos armadores do seu navio, quer pelos donos da carga, tanto pelo retardamento que sofreu em Dacar, como pela obrigação que se lhe faz de continuar sua viagem diretamente para Bordeaux, sem desembarcar em Santander as mercadorias destinadas a este porto.  Esse protesto foi assinado, além do capitão, pelo nosso vice-cônsul em Dakar (fls. 125). Este protesto foi reproduzido em Bordeaux, perante o Cônsul-geral do Brasil, conforme se vê do Termo de Protesto a fls. 128, cujos dizeres são os seguintes: "Aos 27 de fevereiro de 1918, a bordo do vapor brasileiro "Purus", sob o comando de Víctor Lighetli, e propriedade do Lloyd Brasileiro, incorporado ao Patrimônio Nacional, o capitão reuniu seus oficiais e principais da equipagem, e na presença dos mesmos foi lavrado o seguinte protesto: — Que tendo este navio saído do porto da Bahia -(Brasil), com carga para os portos de Santander e Bordeaux, no dia 26 de dezembro de 1917 teve de arribar ao porto de Dacar, a fim de receber carvão, conforme consta do diário de navegação. Que tendo toda a carga de Santander estivada por cima da carga deste porto, torna-se, necessário efetuar a descarga daquele porto, e armazená-la em depósitos de terra, para reembarcá-la depois da descarga de Bordeaux, e assim resolvido, procedeu-se à descarga, e o capitão perante o Conselho disse: — Que em nome dos proprietários deste navio, carregadores, recebedores, e pessoas outras nele interessadas e no seu carregamento de Santander, protestava contra a força maior, contra qualquer falta ou avaria que esta carga de Santander venha a ter nos depósitos, contra todos os prejuízos, perdas, danos, e lucros cessantes futuros, e contra quem de direito for e pertencer possa, retirando o capitão suas responsabilidades perante qualquer indenização que possa aparecer por esta deliberação, levada a efeito por força maior".


 

 

 

 

 

 

 

A fls. 130 encontra-se um segundo Termo de Protesto, idêntico ao precedente, tomado no mesmo dia. E a fls. 132, um terceiro Termo de Protesto, de 17 de março do mesmo ano, onde se acrescentou o seguinte: "Que o Almirantado Francês naquele porto (Dacar), comunicando ao comandante que só fornecia o carvão necessário para ir direto a Bordeaux sem tocar em Santander, resolveu-se de comum acordo, entre os oficiais e tripulantes, lavrar o protesto que também consta no mesmo Diário de Navegação, e seguir nestas condições para Bordeaux, onde viemos comboiados por unidades aliadas, a fim de garantir nossa viagem, navio e seu carregamento. Que nesta data (17 de março), achando-se o navio pronto para receber a referida carga de Santander, que consta de 13.870 fardos de tabaco de diversas marcas, o comandante, tendo conhecimento sobre o perigo inimigo que se desenvolve junto à costa norte da Espanha, que, como ninguém ignora, diariamente são metidos navios a pique pelo inimigo, sem o menor aviso, e sem distinção de nacionalidade. Em face destes acontecimentos, risco e perigo que correm o navio e seu carregamento, de acordo com os arts. 741 e 746 do Código Comercial Brasileiro, ficou resolvido que ficasse aqui depositada a carga de Santander, por se achar o porto mais próximo e de recursos, fazendo-se ciente aos seus interessados, para os devidos efeitos".

 

 O ato das autoridades francesas de Dacar, forças armadas, impondo ao capitão do "Purus" a desistência da viagem para Santander, ou qualquer porto da Espanha, uma "força maior", que o comandante não podia evitar ou impedir. Basta atender ao conceito da "força maior". É (…) o fato de terceiro, que criou, para a inexecução da obrigação, um obstáculo que a boa vontade do devedor não podia vencer. O essencial, diz o Sr. Clóvis Beviláqua, é que do fato resulte a impossibilidade, em que se acha o devedor de cumprir a obrigação. Para Chironi, os dois elementos da força maior são os seguintes: fato estranho ao devedor, que não lhe é imputável, e impossibilidade de cumprir a obrigação (Código Civil Comercial, obs. ao art. 1.058).

Pouco importa indagar se a República Francesa podia fazer o que fez; basta saber que ela o fez, e que o comandante do navio não tinha elementos para lhe resistir, ou impedir que a violência fosse feita. Tanto mais quanto, naquela inominável guerra soçobraram todos os princípios de direito internacional público, até então dominantes. Assim, a entrada do navio em Bordeaux com abandono do porto de Santander, foi, evidentemente, deter minada por uma força maior. Aliás, o que fez o comandante estava perfeitamente autorizado no conhecimento. Neste ficou escrito, logo no começo, 4ª e 5ª linhas, que os volumes eram entregues para ser transportados a Santander — "ou a lugar tão próximo quanto o permitisse a segurança do vapor”, o Lloyd Brasileiro não é responsável, entre outros fatos, "pelas decisões dos governos”.

Há, porém, uma cláusula mais importante, a que se imprimiu no verso, e que foi ditada, exatamente, pelo estado de guerra então imperante. É a seguinte: "Devido a condições de guerra ou hostilidades existentes ou ameaçadas, este embarque é aceito sob inteiro risco dos donos, portanto sujeito a confiscação, arresto, captura, apreensão, detenção ou interferência de qualquer espécie ou por qualquer poder; o navio condutor e seus representantes podendo dispor dos mesmos à sua discrição se assim for preciso para garantia do navio ou de qualquer carga, ou para evitar perda, avaria, demora, despesa ou outro prejuízo ou dano decorrente, quando vindo ou indo para o porto de descarga, ou entrando ou tentando entrar ou descarregar as mercadorias, para continuar a viagem para qualquer outro porto ou voltar ao porto de saída, uma vez ou muitas vezes, de qualquer maneira ou com qualquer marcha, ou conservar o navio no porto ou voltar ao porto ou ficar cm qualquer porto ou desviar ou mudar a rota recomendada ou pretendida em qualquer tempo ou período da viagem, conservando as mercadorias a bordo ou descarregando-as por conta e risco dos proprietários por isso, em, qualquer porto ou portos na primeira e subsequente escala, e o frete total do conhecimento bem como o frete pelo transporte adicional para ser pago pelo embarcador consignatário e ou consignatário terá direito a tomar conta das mercadorias e o navio terá o privilégio de poder transportar qualquer mercadoria, mesmo contrabando".

Esta cláusula destrói inteiramente a alegação feita pelos requerentes, que o Lloyd se obrigara por todos os riscos, inclusive o de guerra. Também não foi possível ao comandante reembarcar em Bordeaux as mercadorias, a fim de transportá-la para Santander, ou qualquer outro porto da Espanha, próximo daquele, porque esses portos eram, na ocasião, inacessíveis, porque era exatamente nessas águas que operavam os submarinos alemães, com conhecida eficácia. No Protesto que aos 17 de março de 1918 lavrou em Bordeaux, consignou o comandante, expressamente, essa circunstância. Havia, evidentemente, esse "temor fundado do inimigo ou pirata', a que se refere o art. 741, nº 3, do Código Comercial. Esse "temor do inimigo" era fundado em fatos positivos, pois era de notoriedade pública universal a existência de submarinos alemães nas águas espanholas, em atividade agressiva contra todo e qualquer navio que lhes passasse ao alcance. Nem se compreende como se possa qualificar de ilusório esse perigo.

Finalmente, não me parece que o Governo Brasileiro deva responder pela mora do Governo Francês na realização do pagamento, nem pela exiguidade do preço, ou por quaisquer perdas e danos que do ato do dito Governo tenham resultado para os requerentes.

Não me parece, pois, procedente a reclamação dos Srs. Rodrigues Fernandes & Cia., a não ser que V. Exª queira atender simplesmente a qualquer motivo de equidade.

Tenho a honra de apresentar a V. Exª os protestos da minha elevada consideração.

Astolpho Vieira de Rezende.”

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