Parentesco e vínculo

A cura jurídica da afetividade no caso das famílias paralelas

Autor

  • Claudio Melim

    é mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Possui graduação em Direito e Ciência da Computação pela mesma instituição. Exerce a profissão de advogado e atua como consultor empresarial na área de Direito Tributário.

22 de julho de 2015, 6h18

Há alguns dias, o advogado e professor Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (novamente) contestou a manifestação de Lenio Streck acerca da (in)viabilidade do reconhecimento judicial das chamadas famílias paralelas (ou simultâneas), que ocorrem quando uma pessoa já casada ou em união estável constitui uma segunda (ou mais) família(s) paralelamente à primeira. O tema já havia sido abordado por Streck (com resposta de Iotti) em outra oportunidade. O argumento principal de Iotti é que Lenio estaria (supostamente) contrariando os ensinamentos de Gadamer por insistir em não trazer uma “fundamentação válida” que dê conta de legitimar a tradição do não reconhecimento das famílias paralelas. Além disso, Iotti também afirma que “Streck nada entende sobre o conteúdo do princípio da afetividade (que ele despreza, embora sem nunca criticar lições concretas de qualquer obra que trabalhem o tema)”.

Com o necessário respeito a Paulo Iotti, penso que a leitura que ele fez de Gadamer está demasiadamente equivocada e, por esse motivo, tenho convicção de que seus argumentos contra Lenio Streck são impertinentes. Não se pode esquecer que Gadamer fala a partir da filosofia hermenêutica de Heidegger, onde há uma ruptura paradigmática definitiva em relação a dicotomia sujeito-objeto. Falar de Gadamer sem compreender Heidegger “é ignorar – deliberadamente ou não – a construção da matriz teórica que nasce na filosofia hermenêutica e desemboca na hermenêutica filosófica”[1]. Quando Paulo Iotti “coisifica” uma suposta “tradição ultrapassada” como sendo um obstáculo (objeto) a ser vencido, ele deixa claro que não entendeu a diferença ontológica desvelada por Heidegger. Consequentemente, equivoca-se em relação a Gadamer. Diante dessa constatação, decidi formular este pequeno texto com o intuito de compartilhar um detalhe pontual da obra de Gadamer que penso ser suficiente para justificar minha percepção acerca da impertinência da fala de Iotti em relação aos fundamentos da hermenêutica filosófica. Embora eu também não concorde juridicamente com o reconhecimento judicial da legitimidade das famílias paralelas, o objetivo deste texto é muito mais no sentido de questionar os fundamentos hermenêuticos de Iotti do que efetivamente contraditá-lo em relação ao problema jurídico das famílias paralelas em si.

No texto de apresentação contido na quarta capa do meu livro “Ensaio sobre a Cura do Direito”[2], Lenio Streck explica que em “Heidegger, Sorge é Cura, que quer dizer ‘cuidado’; ‘pré-ocupação’. E a hermenêutica não abre mão da Cura”. Não se pode negar que a afetividade se tornou uma categoria relevante para a compreensão dos institutos dogmáticos que instrumentalizam contemporaneamente a tutela jurisdicional da família. Entretanto, os efeitos pretendidos a partir de uma funcionalidade legitimadora da ideia de afetividade devem ser cuidados (curados) no acontecer da experiência hermenêutica, a fim de que o intérprete possa se proteger da nocividade de uma potencial contaminação ideológica eventualmente gerada por suas próprias opiniões prévias e preconceitos pessoais. A imprescindibilidade desse cuidado (cura) hermenêutico foi detalhadamente descrita por Gadamer no item dois da segunda parte do seu clássico Verdade e Método (volume I). E é nesse sentido que Gadamer concebe o que ele identifica como autenticidade do acontecer da tradição no círculo da compreensão.

Para Gadamer, “Toda interpretação correta tem que proteger-se da arbitrariedade de intuições repentinas e da estreiteza dos hábitos de pensar imperceptíveis, e voltar seu olhar para ‘as coisas elas mesmas’ (que para os filólogos são textos com sentido, que tratam, por sua vez, de coisas)”[3]. Por isso, “Uma compreensão guiada por uma consciência metodológica procurará não simplesmente realizar suas antecipações, mas, antes, torná-las conscientes para poder controlá-las e ganhar assim uma compreensão correta a partir das próprias coisas. É isso o que Heidegger quer dizer quando exige que se ‘assegure’ o tema científico na elaboração de posição prévia, visão prévia e concepção prévia, a partir das coisas, elas mesmas. […] A questão portanto não está em assegurar-se frente à tradição que faz ouvir sua voz a partir do texto, mas, ao contrário, trata-se de manter afastado tudo que possa impedir alguém de compreendê-la a partir da própria coisa em questão. São os preconceitos não percebidos os que, com seu domínio, nos tornam surdos para a coisa de que nos fala a tradição”[4].

É a partir daí que Lenio Streck explica que “[…] a interpretação do direito é um ato de ‘integração’, cuja base é o círculo hermenêutico (o todo deve ser entendido pela parte, e a parte só adquire sentido pelo todo), sendo que o sentido hermeneuticamente adequado se obtém das concretas decisões por essa integração coerente na prática jurídica, assumindo especial importância a autoridade da tradição (que não aprisiona, mas funciona como possibilidade). Não esqueçamos que a constante tarefa do compreender consiste em elaborar projetos corretos, adequado às coisas, como bem lembra Gadamer. Aqui não há outra ‘objetividade’ além da elaboração da opinião prévia a ser confirmada. Faz sentido, assim, afirmar que o intérprete não vai diretamente ao ‘texto’, a partir da opinião prévia pronta e instalada nele. Ao contrário, expressamente, coloca à prova essa opinião a fim de comprovar sua legitimidade, aquilo que significa, a sua origem e a sua validade”[5].

Com todo respeito que tenho pela legitimidade da luta de Paulo Iotti em prol do amadurecimento dogmático do chamado direito das famílias, percebo que, no que diz respeito especificamente ao tema das famílias paralelas (ou simultâneas), ele despreza a autoridade legítima da tradição, deixando de enfrentar sua autenticidade, para simplesmente atribuir-lhe um carimbo de validade vencida, como se estivesse tratando de uma mercadoria na prateleira de um supermercado (um objeto, uma coisa). Para fugir dos efeitos legítimos da tradição autêntica, Paulo Iotti (assim como os demais autores que defendem essa tese) tenta submeter a Constituição Federal a um tipo de tortura lógico-semântica, caracterizada por uma espécie de exegese do vácuo textual, por onde ele tenta construir uma ilusionística ficção de racionalidade justificadora, com o evidente intuito de fundamentar uma interpretação que indiscutivelmente ofende de forma gravíssima a integridade e a coerência do ordenamento jurídico brasileiro. Todavia, não quero crer que essa estratégia tenha sido deliberadamente planejada por Iotti, pois suas apaixonadas manifestações deixam claro que, na verdade, sua percepção hermenêutica se encontra entorpecida pelo impulso ideológico que o move como doutrinador.

Algumas perguntas não podem ser ignoradas. Será que a (in)viabilidade jurídica das famílias paralelas é mesmo um problema a ser resolvido pelo simples reconhecimento do “princípio da afetividade”? Será que antes do reconhecimento do “princípio da afetividade” não deve estar o imprescindível respeito à integridade e à coerência do ordenamento jurídico (autenticidade da tradição legítima)? Será que a exaltação exagerada do poder simbólico da afetividade não está enevoando a percepção acerca da existência de inúmeros princípios constitucionais caríssimos ao Estado Democrático de Direito, como, por exemplo, o da legalidade e o da segurança jurídica? Será que Paulo Iotti não está sobrepondo confusamente um conceito sociológico de família em face do instituto jurídico da família? Será que ele percebe que o instituto jurídico da família é um instrumento de manutenção e garantia da ordem pública e não uma ferramenta de defesa do direito ao afeto? Será que ele entende que a pluralidade de famílias tutelada pelo direito brasileiro se refere a múltiplos tipos de arranjos familiares e não à possibilidade de uma pessoa ter duas ou mais famílias simultaneamente sob a proteção jurídica do Estado? Será que Paulo Iotti está efetivamente conseguindo suspender seus preconceitos para deixar que os estímulos sensoriais provocados pelos textos legislativos lhe permitam compreender a tradição de forma autêntica? Será que ele não está “coisificando” ideologicamente uma ilusória “tradição ilegítima” que estaria supostamente obstaculizando a evolução (sic) do direito das famílias? Será que as famílias brasileiras, dentre elas, as famílias formadas por casais do mesmo sexo, concordam efetivamente com o reconhecimento da legitimidade jurídica das famílias paralelas? Será que a tradição autêntica e legítima que funda o nosso Estado Democrático de Direito é capaz de absorver os inevitáveis efeitos da grave ruptura institucional que o reconhecimento da legitimidade das famílias paralelas irá causar?

Eis algumas das questões que podem e devem nortear a cura jurídica da afetividade no acontecer da experiência hermenêutica em relação ao tema das famílias paralelas. Se Paulo Iotti pretende efetivamente defender a viabilidade do reconhecimento judicial das famílias paralelas (ou simultâneas), ele não pode deixar de enfrentar essas perguntas de forma verdadeira, ou seja, com autenticidade e legitimidade. Nesse sentido, já esclareci em outro texto[6] que a verdade não é um ente simplesmente dado que tem vida própria. A verdade é apenas uma característica possível do ser fenomenologicamente percebido. O intérprete é verdadeiro quando proporciona discursos autênticos e legítimos através do seu texto. Autenticidade e legitimidade do e no direito não dizem respeito à adequação entre coisas (entes) que podem ser comparadas. A autenticidade está relacionada com a sinceridade do intérprete para com o seu próprio ser, enquanto a legitimidade se constitui pela densidade temática da sua interpretação. Ao mostrar algo pelo texto, o intérprete manifesta a si mesmo. Para ser autêntico, o algo deve respeitar a integridade do si mesmo. Para ser legítimo, o si mesmo deve possuir alguma coisa desse algo.

Em relação ao debate travado nas redes sociais acerca desta temática, não ignoro aqueles que acusam Lenio Streck de positivista (pior, exegético), mas apenas exercito o meu direito de não manifestação acerca desse triste equívoco, por se tratar de um tipo de acusação demasiadamente simplista (para dizer pouco), que apenas reforça a minha percepção[7] de que no Brasil falta um conhecimento autêntico da essência. Há experts em comparações sincréticas. Compara-se o nada com coisa nenhuma, pois os textos jurídicos, na grande maioria das vezes, servem apenas de bengalas argumentativas e não de explicitações autênticas e legítimas dos fatos jurídicos. Pedaços de textos da lei, de ementários jurisprudenciais e de resíduos doutrinários são utilizados para montar exemplares de Frankenstein, que se constituem como aberrações discursivas, que só sobrevivem porque efetivamente parece que a comunidade jurídica brasileira, embriagada pelo senso comum teórico, vive em um verdadeiro romance de Mary Shelley. Há um descaso para com o sentido ontológico do ser jurídico (Heidegger). Sem o conhecimento autêntico da essência do direito, torna-se inviável a percepção dos indícios de uma verdade jurídica possível.

 


[1]     STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2012. (p. 62)

[2]     MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do direito: indícios de uma verdade jurídica possível. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015.

[3]     GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. (p. 355)

[4]     GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2011. (p. 359)

[5]     STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. (p. 619-620)

[6]     MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do direito: indícios de uma verdade jurídica possível. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015. (p. 75-76)

[7]     MELIM, Claudio. Ensaio sobre a cura do direito: indícios de uma verdade jurídica possível. Florianópolis: Empório do Direito Editora, 2015. (p. 77)

Autores

  • Brave

    é mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI. Possui graduação em Direito e Ciência da Computação pela mesma instituição. Exerce a profissão de advogado e atua como consultor empresarial na área de Direito Tributário.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!