Academia de Polícia

Investigação é ainda mais dolorosa
se não há limites para quem a dirige

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

7 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Não é novidade alguma que o Direito, inclusive processual penal, foi tomado pelo “senso comum teórico dos juristas”.[1] Muitos já denunciaram essa “visão estrábica do Direito”, caracterizada por um enfoque do problema jurídico dissociado da estrutura relacional concreta em que ele surge e se desenvolve no espaço-tempo social.[2] O problema do recuo da crítica e da colonização dos discursos jurídicos dominantes parece inegável, especialmente no sistema de justiça criminal, como aponta Geraldo Prado.[3]

Deixemos de lado, no entanto, os típicos representantes desse capital científico (Bourdieu), com seus populares manuais de processo penal. Pensemos nas introduções críticas ao saber processual penal. Essas obras, raras (diga-se de passagem), costumam reproduzir definições clássicas de James Goldschmidt, Gian Domenico Pisapia e Winfried Hassemer, dentre outros. Fala-se, por exemplo, do processo penal como termômetro dos elementos autoritários ou democráticos da Constituição de um país (Goldschmidt). Ou, então, do respeito aos direitos e liberdades do acusado no processo penal enquanto critério de civilidade de um povo (Pisapia). Bastante comum, ainda, a ideia de o direito processual penal como direito constitucional aplicado (Hassemer).

Ninguém ousaria diminuir a importância desses autores e das respectivas citações para qualquer apresentação com algum nível de problematização a respeito do processo penal. Contudo, parece-nos imprescindível outra espécie de análise — complementar às anteriores e talvez mais direcionada às subjetividades em torno do caso penal. Trata-se do reconhecimento da íntima relação entre processo penal, violência e dor. Ou seja, admitir que o processo penal é, antes de qualquer coisa, uma forma jurídica violenta constituída pela e para imposição de dor aos sujeitos!  

Aliás, Carnelutti já dizia que a desgraça da justiça humana residia justamente no fato de que está constituída de forma que não se faz somente sofrer os homens porque são culpados, mas também para saber se são culpados ou inocentes.[4]

Deveras, o apelo à violência gerada no e pelo sistema de justiça criminal é cada vez maior na era do gozo ilimitado. A busca pela punição imediata e exemplar do outro encontra amparo forte e renovado na estrutura processual penal das violências institucionais.

Não se pode perder de vista que o processo penal traz consigo a violência, oficial e oficiosa, já que por violento deve-se entender todo “ato que aniquila ou elimina uma vida, um corpo, um interesse, uma vontade específica, quando poderia não ter sido praticado”.[5] Assim ocorre com a violência processual. Não há dúvida de que o processo penal é absolutamente gravoso à esfera das liberdades individuais e apresenta elevado potencial de criação ou reforço de estigmas e dor. Por isso, ação penal não deveria ser sinônimo de “aventura processual”.[6]

Aliás, a ideia de uma etapa instrutória prévia, isto é, de uma fase investigatória anterior à ação processual penal, encontra razão justamente nas complexas histórias de violência e dor que marcam os processos criminais. Afastar acusações desvairadas, sem elementos mínimos, em face das quais o único efeito concreto será aquele decorrente das “penas do processo” — eterna rotulação de acusado e todas as suas consequências nefastas à subjetividade — é a principal função da investigação criminal.

Sublinhe-se, porém, que esse lugar de filtro ocupado pela investigação apenas se efetiva no caso concreto quando respeitados certos pressupostos. Não é a nossa intenção, neste espaço limitado, exaurir a matéria, mas algumas coisas precisam ser ditas sobre a fase de investigação preliminar do caso penal.

De início, vale lembrar que só existe investigação criminal se e quando “conforme as regras do jogo”. Ou seja, a obediência ao devido procedimento legal é imperativo convencional e constitucional. O poder punitivo fica necessariamente limitado por essa garantia, especialmente em sua dimensão substancial (substantive due process). Com base em Giacomolli, podemos afirmar que o due process of law informa o “modo-de-ser” do processo penal e da investigação preliminar, bem como o “modo-de-atuar” dos diversos atores da persecução penal, na construção de um paradigma democrático e humanitário de justiça criminal.[7]     

Nessa linha, vale frisar que a investigação dos crimes comuns é função constitucionalmente atribuída a um ente específico no sistema brasileiro: a polícia civil, estadual ou federal, dirigida por delegado de polícia de carreira (artigo 144, parágrafos 1º e 4º, ambos da Constituição). Repita-se: uma função, um lugar, um ente. Não seria razoável que o mesmo sujeito exercesse duas funções ou ocupasse dois lugares na estrutura persecutória criminal, como investigar e julgar ou investigar e acusar. Esse tipo de “aglomeração quântica de poder”, [8] na linguagem utilizada por Schünemann na Alemanha e trabalhada, entre nós, por Geraldo Prado, desestrutura o equilíbrio necessário do sistema e potencializa o risco de violação a direitos fundamentais.

É nesse contexto de acúmulo e abuso de poder que afloram os sérios problemas decorrentes das investigações “presididas” ou “supervisionadas” pelo Poder Judiciário e pelo Ministério Público.

O que dizer das investigações de autoridades com foro especial por prerrogativa de função? O Supremo Tribunal Federal entende que a competência originária da Corte para processar e julgar parlamentar federal, por exemplo, alcança a “supervisão de investigação criminal”, sob pena de nulidade dos atos praticados (Inq 3.438/SP, rel. min. Rosa Weber, 1ª Turma, DJe 9/2/2015). E, mais, prevê o seu Regimento Interno, no artigo 74, caput, que “a ação penal será distribuída ao mesmo Relator do inquérito”. Relator, aliás, que poderá valer-se de “magistrados instrutores” para o desempenho de funções na investigação preliminar. Nesse sentido, o artigo 21-A do Regimento do STF concede ao ministro relator o poder de “convocar juízes ou desembargadores para a realização do interrogatório e de outros atos da instrução dos inquéritos criminais”.

A tragédia normativa é acompanhada, por óbvio, de inúmeras histórias reais de investigadores julgadores. A famosa Ação Penal 470, o processo do mensalão, por exemplo, poderia funcionar como grande chave de leitura. As dúvidas que surgem a respeito da validade e da legitimidade dessas formas processuais penais são flagrantes e primárias. Como assegurar a imparcialidade necessária do julgador, exigência basilar de um “processo justo”, se ele mesmo fora o responsável pela “supervisão” da instrução preliminar? Qual a garantia de um juízo desinteressado em certo tipo de resultado (absolutório ou condenatório) quando investigação e processo estão reunidos sob a autoridade do mesmo órgão? É óbvio que o responsável pela formação de conhecimento preliminar a respeito da notícia crime, segundo procedimento destituído de contraditório pleno e ampla defesa, não pode ser competente para a decisão de acertamento do caso penal. A menos que assumamos, em definitivo, a opção clara por um sistema processual penal de matriz tipicamente inquisitória.

Quanto ao chamado “poder de investigação do Ministério Público”, recentemente admitido pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão plenária por maioria de votos (RE 593.727/MG), também muita coisa poderia ser dita. O dilema primário em torno da ofensa à legalidade estrita, a questão da ausência de controle na investigação preliminar ou a incapacidade técnica investigativa são temas que já foram e poderiam ser recolocados em pauta. Diversos já abordados nesta ConJur.

Um dos temas mais sensíveis neste universo de investigações ministeriais diz respeito à indelével prática da seletividade. Não se investiga tudo. Nem quer o Ministério Público tudo apurar. A tese é de apurações seletivas, ou seja, escolhe-se o que investigar. Ocorre que, inexistindo critério legal para a determinação e distribuição das investigações, resta a escolha por “livre arbítrio”. Arbítrio que, em verdade, nunca é “livre”, mas sempre determinado por interesses, ainda que supostamente nobres ou republicanos, como o atual discurso de “combate à corrupção”. E se há interesses não há isenção do órgão de investigação.

A situação fica ainda mais grave quando se tem na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o entendimento sumulado no sentido de que “a participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia” (Súmula 234 do STJ). Dessa forma, o STJ acaba com qualquer ideia de limitação de poderes na investigação ministerial e coloca em xeque a própria regularidade da análise de justa causa nessas hipóteses. O que esperar quando o titular da ação processual penal forma o seu juízo de convencimento sobre a existência (ou não) de base para a denúncia a partir de uma investigação realizada por ele mesmo?

É claro que esses não são os únicos problemas de todo o sistema brasileiro de investigação criminal. Há outras tantas deficiências na realidade nacional, inclusive nas apurações policiais. O tema é complexo não só aqui. As discussões de direito comparado sobre investigação judicial, ministerial e policial revelam outros dilemas para além do “sujeito inquisidor”.  

Entretanto, nada disso parece invalidar o ponto fulcral desta reflexão, no sentido de que o processo penal apresenta forte dimensão de violência e dor, sendo que a investigação criminal deveria atuar justamente na contenção de sua irracionalidade. Porém, diante de investigadores acusadores e investigadores julgadores, fica esvaziada por completo a função de filtro da investigação preliminar. Isso porque não há garantia fundamental que sobreviva quando o mesmo sujeito que investiga é o legitimado a decidir pelo exercício ou não da ação processual penal ou, então, pela própria responsabilidade penal do (agora) acusado. Em resumo: sem filtro, sem limites; logo, sem lugar devido à investigação criminal!


[1] WARAT, Luis Alberto. Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas. Revista Seqüência. Florianópolis: UFSC, n. 5, pp. 48, 49, 1982.
[2] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. A Ciência do Direito: conceito, objeto, método. Rio de Janeiro: Forense, 1982, p. 165.
[3] PRADO, Geraldo. Prefácio. In: AMARAL, Augusto Jobim do. Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 31, 32.
[4] CARNELUTTI, Francesco. Las miserias del proceso penal. México: Cajica, 1965, p. 75.
[5] FELIPE, Sônia T.. O Corpo Violentado: estupro e atentado violento ao pudor: um ensaio sobre a violência e três estudos de filmes à luz do contratualismo e da leitura cruzada entre direito e psicanálise. Sônia T. Felipe, Jeanine Nicolazzi Philippi. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 1998, p. 43.
[6] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 01 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 117.
[7] GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014, p. 77-79.
[8] SCHÜNEMANN, Bernd. La reforma del processo penal. Madrid: Dykinson, 2005, p. 30.

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  • Brave

    é delegado de polícia civil em Santa Catarina, mestrando em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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