PEC 171

Regimento interno não pode ignorar regra Constitucional da irrepetibilidade

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6 de julho de 2015, 13h30

A Constituição prevê uma regra (por muitos chamada de “princípio”) da irrepetibilidade, que visa preservar o parlamento de ter que novamente rever posicionamentos já tomados em votações durante o processo legislativo. A irrepetibilidade pode ser encontrada nos seguintes artigos:

Artigo 60, parágrafo 5º: A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa.
Artigo 62, parágrafo 10: É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo. (Incluído pela Emenda Constitucional 32, de 2001)
Artigo 67: A matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.
(grifos nossos)

Como se vê, de acordo com a Constituição, a matéria já decidida não pode ser reapreciada na mesma sessão legislativa. A delimitação temporal de “sessão legislativa” pode ser buscada no caput do artigo 57, que compreende mais ou menos o período de um ano. Portanto, uma matéria rejeitada apenas poderia ser reanalisada, aproximadamente, no ano seguinte. Isso preserva a autoridade da decisão parlamentar e o amadurecimento da alteração legislativa pretendida mas frustrada, pois o tempo é o senhor da razão. 

A ideia desse dispositivo constitucional, presente tanto para Emendas à Constituição, como para Medidas Provisórias e, também, para projetos de leis (neste último caso podendo a reapreciação ser proposta pela maioria absoluta dos membros do parlamento) se fundamenta na necessidade de respeitar a decisão já tomada pela casa legislativa, que não quis aprovar uma determinada matéria. E, mais do que isso, os três artigos da Constituição acima reproduzidos que consubstanciam a regra da irrepetibilidade funcionam como um escudo de proteção para ser usado pelo parlamentar contra eventuais pressões que viesse a sofrer, pressões pela mudança de voto já manifestado.

Quando a questão é analisada pelas regras do processo legislativo, interpretações sobre as regras aplicáveis podem tentar driblar a norma constitucional da irrepetibilidade. Aí reside o perigo: interpretar a Constituição à luz do regimento, quando, na verdade, deve ocorrer o contrário: o regimento é que deve ser interpretado à luz da Constituição.

Essa foi a tese sustentada por Eduardo Cunha, e assumida por alguns juristas como válida (ver recente artigo de Carlos Bastide Horbach na Revista Eletrônica Consultor Jurídico).

Nessa matéria publicada na ConJur, o jurista, em tom pouco elegante, afirma que os defensores da inconstitucionalidade da segunda votação sobre a redução da maioridade o fazem apenas por má fé ou desconhecimento jurídico das regras regimentais do direito parlamentar. Sustenta ele que não houve irregularidade na votação da PEC 171, pois o que havia sido rejeitado anteriormente era um substitutivo, e não a própria PEC. Para fundamentar a sua tese, cita o artigo 191 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, que assim reza:

“na hipótese de rejeição do substitutivo, ou na votação de projeto sem substitutivo, a proposição inicial será votada por último, depois das emendas que lhe tenham sido apresentadas”

Por isso, conclui afirmando que a rejeição ocorrida foi a do substitutivo, e não da própria Emenda. Sendo assim, teria agido acertadamente Eduardo Cunha ao colocar novamente em votação a redução da maioridade penal, após a rejeição do “substitutivo” ocorrida no dia anterior.

Esse argumento representa, a nosso ver, um desserviço à democracia brasileira, encharcado de formalismo que conduz a um momento que não traz saudades, onde a Constituição era interpretada à luz das leis, e não o contrário.

A se prevalecer esse argumento, bastaria então criar diversos substitutivos e pautá-los, para, a partir das suas eventuais rejeições, ter-se então uma dimensão real sobre quem votou a favor e contra e, com isso, pressionar os parlamentares para mudarem o seu voto na votação seguinte.

Da forma como foi feita interpretação do instituto do “substitutivo” pelo presidente da Câmara, terminamos aplicando na Câmara dos Deputados o velho ditado popular: “água mole em pedra dura, tanto bate até que fura”. 

Está claro que o argumento formal da ausência de inconstitucionalidade com fundamento no fato de que rejeitado foi um substitutivo, e não a própria PEC, representa um “drible” à regra da irrepetibilidade, viabilizando o eterno retorno de matérias já rejeitadas. Esse argumento foi rechaçado por vários juristas, em manifesto recente contra a manobra de Cunha (leia aqui).

A mesma ideia aplica-se para o caso de aprovação de uma emenda aglutinativa (a que resulta de uma fusão de textos de outras emendas ligadas à proposição inicial original) após a rejeição de um substitutivo. Ou seja, se um substitutivo foi rejeitado, não deve o Parlamento reativar a discussão com um outro nome, seja de emenda aglutinativa ou seja da própria PEC original, como parte de uma estratégia (ou, para usar a expressão consagrada pela imprensa que diz tudo: uma "manobra") para fazer valer os interesses dos derrotados.

A legislação infraconstitucional, incluindo o direito parlamentar dos regimentos internos, não pode desconhecer o sentido da regra da irrepetibilidade para, valendo-se de argumentos formais, tentar burlar e fraudar a própria Carta de 1988. Isto é uma ameaça à democracia brasileira que deve ser construída por meio de um devido processo legislativo, livre de pressões indevidas. Afinal, a Constituição brasileira merece e exige efetividade.

* Este artigo foi elaborado pelo Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos” formado pelos professores de Direito da Universidade Católica de Pernambuco Flavia Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto e Marcelo Labanca.

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