Ancien Régime

Magistrados contra o novo Código de Processo Civil

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6 de julho de 2015, 6h21

O novo CPC e os juízes do Anciem Régime brasileiro.
Escrevo este artigo premido pelo alerta do professor Lenio Streck em sua coluna na Revista Eletrônica Consultor Jurídico, de 19 de março (Dilema de dois juízes diante do fim do Livre Convencimento do NCPC), de que “será uma grande batalha implementarmos o  novo CPC”, ainda cogitando o emérito articulista da possibilidade de “o novo Código de Processo Civil fracassar”. Em recente publicação, de 2 de julho o professor Lenio voltou a tocar no tema.

Tal coisa traz à memória dois episódios históricos nos quais perigou a aplicação da Lei pela condição cultural, anterior a ela, dos juízes e glosadores. O primeiro foi quando o imperador Justiniano (482-565 d.C.) decidiu limitar a autonomia dos pretores estabelecendo a supremacia do seu Código, cabendo unicamente ao Imperador dizer a vontade da lei. O segundo foi quando Napoleão, vendo o que os juristas e juízes estavam a fazer com o novo Código Civil, exclamou: “vão estragar o meu código! ”.

Estaremos em via de fatos semelhantes, pelos quais o novo CPC será desvirtuado pela magistratura brasileira?

O professor Lênio indica que nossa magistratura ainda não compreendeu a virada linguística como ocorrência que data dos primeiros idos do século XX, pela qual houve um giro na ótica cartesiana egóica passando-se a olhar o mundo pela linguagem, naquilo que ela é pública e exteriormente, como elemento de constituição inclusive dos processos mentais e não mais a partir do que se passa no interior do indivíduo como parturiente de verdade. Por isto foi denominado também como giro linguístico.

Alerta Lênio, laboriosamente, em sua obra, que este momento tão importante da escola analítica e toda a transformação por ela desencadeada no modo de ver e interagir com o mundo permanece ignorado por aqueles magistrados que vão buscar na sua subjetividade, no umbral de sua consciência, por ela e com ela decidindo, o vislumbre do “justo” que termina por não ser mais do que uma vertigem aleatória e arbitrária.

A perspectiva na qual Lênio nos coloca diante do problema que quer enfrentar é bem mais profunda do que aquela contemplada pelos simples exegetas do meio jurídico, porque resgata os antecedentes históricos de uma formação mental que se apresenta como o verdadeiro óbice, a verdadeira víscera da resistência que poderá ulcerar o novo Código, no qual se afastou o “livre convencimento” para dar lugar ao convencimento conforme o Direito.

Pressentindo tal conformação retrógrada, Lênio teme pelo fracasso do novo Código de Processo Civil perante juízes fincados na “perspectiva do sujeito”. Estes seriam os juízes do que poderíamos chamar, depois do novo CPC, de “magistrados do Ancien Régime brasileiro”, entrincheirados num ventre decisório solipsista, ao que, acrescentaria eu, prenhe de orgulho, arrogância e autoritarismo.

Infelizmente tem razão o brilhante autor. Há possibilidade de o novo Código “fracassar” se não houver uma reengenharia mental e psicológica. Confrontar teses e argumentos é muito mais fácil do que esgrimir contra a estrutura mental e axiológica que os precede. Este parece ser o árido campo de batalha do professor Lênio.

Uma coisa é desbravar novas teorias dentro do Direito, outra é tangenciar os pressupostos da própria cognição, tarefa muito mais ampla que diz respeito à epistemologia, que toca mais à filosofia, do que a uma específica disciplina científica. Por isto mesmo o professor Lênio sempre repete a expressão “exílio epistêmico” para aludir à instância do “livre convencimento”, que para ele é, agora, banida do Novo Código, sendo tal alteração signo de avanço fundamental no sentido de se abandonar a subjetividade como farol do ato decisório.

Muitos, inclusive eu, previram que a magistratura voltaria armas contra o artigo 489 do novo Código de Processo Civil. Foi a crônica anunciada de um ressentimento autoritário.

Notas de associações dos magistrados com lobby delas pelo veto do citado artigo foram feitas. Uma vez fracassado o intento, não é implausível que pretendam estas agremiações que seus pares no STF venham a declarar como inconstitucional o referido artigo mediante uma ação direta de inconstitucionalidade.

Não é novidade a revoada alarmista que se levanta por parte dos juízes sempre que se lhes colocam as balizas da lei ou mecanismos de controle. Exemplo foi a criação do Conselho Nacional de Justiça, ocasião em que proliferou o argumentum ad terrorem, pelo qual magistrados agitavam a bandeira das garantias democráticas indicando que o juiz perderia sua liberdade, que o controle se destinava a interferir nas decisões, não faltando quem dissesse até que se tratava de conspiração internacional para enfraquecer o judiciário. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) inclusive patrocinou ação a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.367, alegando que isto comprometia a separação entre os poderes.

No final, tudo se revelou fantasmagoria corporativista, vindo o CNJ a desempenhar importante função coibidora de abusos e desmentindo a alardeada interferência nos atos próprios da função judicante. Na verdade, o CNJ ainda ficou muito aquém do rigor que a sociedade pretendia no controle de seus pretores.

Os juízes brasileiros sempre parecem muito ciosos da democracia quando se cuida da defesa de sua independência, mas a verdade é que estes mecanismos de controle se tornam inevitáveis quando a sociedade percebe que por intermédio desta bandeira togada o autoritarismo se encastelou dentro da democracia.

Contra o novo Código repete-se o script classista utilizado no caso do CNJ. Do mesmo modo que antes a magistratura resistia a um controle externo com a balela da quebra de independência, agora vemos esta chuva gongórica de pseudo-razões contra a simples obrigação de enfrentar argumentos e justificar a recusa da aplicação de um precedente jurisprudencial invocado pela parte.

Uma conclusão somente se perfila correta se ela persiste como verdadeira com exclusão de qualquer outra, numa simples aplicação do princípio do terceiro excluído; não obstante, de modo adulterino, as críticas dos magistrados pautam-se por transformar a obrigação de enfrentar argumentos que possam infirmar a conclusão em obrigação de enfrentar qualquer argumento; definitivamente não é isto que o dispositivo guerreado (artigo 489 do novo CPC) estabelece.

Eis que o artigo 489, parágrafo 1º, inciso IV, determina que “não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que”…“não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador”. Em suma, são aqueles pontos que, quando confrontados com a decisão adotada, tornam-na insubsistente, invalidam-na, mostram ser falsa a conclusão do julgador dentro de uma estrutura argumentativa consistente, e não todo e qualquer argumento.

Em nota oficial [1], a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) afirmou também que há “repercussão deletéria na razoável duração dos feitos (artigo 5º, inciso LXXVIII, da CRFB)”, como se obrigar magistrados ao exame dos argumentos que possam invalidar a conclusão militasse contra a celeridade processual, o que equivale a despudoradamente afirmar a prevalência da celeridade sobre a consistência das decisões.

O anedotário trágico, no entanto, robustece-se por ser justamente isto que acontece atualmente, ou seja, a magistratura toma emprestado o reclamo geral contra a morosidade, pela qual tem ela grande parcela de culpa, coopta o olhar do vulgo contra os advogados como se deles fosse a responsabilidade pela lentidão dos feitos, em verdadeiro bulling contra os causídicos, e assim capitaliza de forma ilegítima a indignação popular.

Mediante dito procedimento a magistratura colocou uma cortina sobre seus atos convertendo em sua a causa da celeridade, para com isto licenciar-se a todo tipo de decisionismo, arbitrariedade e inobservância das razões das partes.

Não vem de hoje o desejo da magistratura de não ser questionada, caindo-lhe como uma luva o anelo de celeridade da população. O estandarte da celeridade é amiúde um curinga demagógico da magistratura. Neste sentido, há pouco o ministro Luiz Fux afirmou que o atual CPC seria inconstitucional [2] pela demasia de recursos. Isto recordou-me muito do famoso filme Amadeus, especificamente na cena em que o Imperador austríaco aponta para Mozart, como “defeito” que encontrava nas composições deste, que suas músicas tinham “muitas notas”, o que o gênio respondeu, por sua vez, perguntando qual o número de notas considerava o monarca correto…Poderíamos dirigir a mesma indagação ao ministro para que delimitasse o número de recursos que pode haver num Código para não ser inconstitucional. Imagine-se que num assomo de genialidade matemático-jurídica o ministro nos provasse que o número de recursos deve ser o equivalente ao valor de π…

Na citada nota da Anamatra, que foi acompanhada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), ainda se afirma que “o legislador não pode restringir desarrazoadamente o conceito constitucional de fundamentação (artigo 93/CF), como tampouco pode obliquamente tornar 'vinculantes' súmulas, teses e orientações jurisprudenciais que constitucionalmente não o sejam”. Parece que os redatores da nota confundem propositalmente as definições de “exigência” e “restrição”, ignorando o que são os chamados preceitos imperativos positivos.

Há, sim, uma exigência, uma imposição como preceito imperativo, de que na fundamentação se enfrente argumentos que possam infirmar a conclusão, bem como que seja justificada a não adoção de uma jurisprudência elencada pela parte (inciso VI do citado artigo 489), mas não há nenhum impedimento que constitua, assim, restrição a que se valha o juiz de fundamentos de Direito não arguidos pelas partes, que sejam, no entanto, aplicáveis ao caso. Ser o juiz obrigado a enfrentar argumentos que se oponham a sua conclusão, bem como justificar a razão de não acatar um precedente jurisprudencial, não é de modo algum o mesmo que limitar o juiz aos fundamentos jurídicos apresentados pelas partes.

A Anamatra ainda deforma o que comanda o inciso VI do citado artigo 489 apresentando a ideia de que se pretende tornar vinculante a jurisprudência. Este dispositivo não torna defesa a não recepção de um entendimento sufragado em algum aresto, mas obriga, sim, que demonstre o juiz a razão de sua não aplicação. Logo, uma vez mais a Anamatra persegue seus fins corporativos ao distorcer o teor do artigo 489 do novo CPC.

Os juízes brasileiros cambiam os conceitos de independência e voluntarismo. Por “independência” entendem a liberdade para a imotivação, sendo pura voluntariedade do juiz o que sobra quando a parte colaciona um julgado e o juiz simplesmente o ignora para impor o seu talho pessoal sem realizar o cotejo de suas razões com aquelas esposadas pelos tribunais. Desta feita as decisões deixam de ser construtos lógicos com conclusões, portanto, necessárias, para converterem-se em manifestações artísticas induzidas pelo espírito do juiz.

Voltando ao exemplo acima, do episódio com Mozart, perceba-se que nele espelha-se a compreensão sobre a liberdade intuitiva na arte, como domínio de certezas não logicamente assentadas. Nela as verdades são em causa sui, possuidoras de sentido sem significado e justificação lógica (leia-se a obra Produção de Presença de Hans Ulrich Gumbrecht). A arte transcende a forma lógica para iluminar outro plano, porém, as decisões judiciais são todo o oposto. Elas estão comprometidas com uma linguagem pública que se rege por uma estrutura de premissas conectadas entre si que levam a uma conclusão (argumento) e podem ser submetidas à crise pelos mesmos procedimentos lógicos que as gestam. Sua produção deve ser completamente alheia ao âmbito solipsista, nisto radicando sua diferença cabal para com a arte. Não há nenhuma possibilidade de desafiar-se uma música pelo prisma de falsidade ou verdade, como se fosse pertinente afirmar a Beethoven que em sua música ele “mente” ou que expressa incorretamente abstrações. Já numa decisão judicial pouco importa a intuição do justo que tenha o juiz se ela não puder ser traduzida como conclusão necessária em face da lei. Caso contrário, melhor que os magistrados sejam formados num bom curso de pajelança.

Quem não se recorda do juiz Fausto Sanctis [3] afirmando que a Constituição “não passa de um documento; nós somos os valores, e não pode ser interpretado de outra forma: nós somos a Constituição, como dizia Carl Schmitt”? Assim, de um salto, o juiz do justificava-se como aquele que captava os valores norteadores da Constituição; esta não era mais do que uma cártula maleável que ele interpretava com sua iluminação prudencial. Não faltaram na ocasião as manifestações das citadas entidades acima mencionadas a favor do magistrado.

A questão está, também, profundamente relacionada com as garantias dispensadas pela Constituição à magistratura. Explico-me. Elas tomaram ímpeto no momento da Constituinte, ainda se experimentando a ressaca da ditadura militar, de forma que se as criou para evitar pressões externas de outro Poder; não obstante, isto induziu uma idiossincrasia deformada pela qual escudos garantistas transformaram-se em privilégios, de forma que o manto protetivo da independência metamorfoseou-se em resistência apriorística a prestar contas à sociedade, transportando-se isto, inclusive, à lógica interna da atividade judicante. É justamente isto o que se reflete na recusa dos juízes a aplicar o artigo 489 do novo CPC.

Acresça-se ainda o elemento ético. Isto é aferível pela medida em que Juízes se submetem à supremacia do dever no lugar de defender sua autoridade. Não há correção moral quando o juiz rejeita embargos de declaração, por exemplo, com apenas duas linhas de adjetivação, sem emprego de dialética, tal qual abaixo:

“Deixo de prover os presentes embargos por não se encontrarem na decisão os vícios previstos no artigo 535 do CPC”

Isto só pode ser classificado como cinismo. E tal cinismo já está armado para repetir-se no novo CPC, diante dos embargos declaratórios interpostos conforme o artigo 1.022, parágrafo único, II, com base nas hipóteses do artigo 489, parágrafo 1º, do novo CPC; responderão os magistrados, sem nenhuma outra consideração:

“Deixo de prover os presentes embargos por não se encontrar na decisão nenhum argumento que infirme a conclusão”.

A grande muralha contra o novo CPC, resultará, portanto, da conjugação de um mainstream refratário com uma adulteração psicológico — classista da CF/88, fecundando autoritarismo arrogante. Pode-se submeter à crise valores e conceitos, como faz Lenio, mas, quanto ao elemento autoritário, vale citar Dante: “nem o diabo pode com a soberba”.


[1] http://www.anamatra.org.br/index.php/noticias/anamatra-reage-a-criticas-sobre-vetos-propostos-ao-novo-codigo-de-processo-civil  

[2] http://www.conjur.com.br/2015-mar-14/defesa-inovacoes-introduzidas-cpc

[3] http://www.conjur.com.br/2008-nov-11/filosofo_entre_fausto_sanctis_gilmar_mendes

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