Olhar Econômico

Atraso endêmico no trato do Direito Internacional aumenta "custo Brasil"

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

2 de julho de 2015, 8h00

Hodiernamente, o globo terrestre é político-juridicamente dividido em cerca de 200 Estados ditos soberanos. A ideia de Estado soberano data de cerca de 500 anos e, desde então, muita coisa mudou, inclusive o próprio conceito de soberania, que sofreu erosão considerável. Há, entretanto corolários que vem permanecendo: cada Estado continua a possuir seu próprio ordenamento jurídico — um feixe de regras, de diferentes naturezas, que vigem, em tese, em seu território —, formado precipuamente por normas jurídicas criadas pelos poderes legislativos dos próprios Estados. Em razão da soberania individual, cada ordenamento é independente, autônomo e sem compromisso de coerência com ordenamento jurídico de outro Estado.

Enquanto isso, nesses cinco séculos, progresso vertiginoso não deixou pedra sobre pedra: o número e a necessidade de inter-relação entre os Estados cresceram; sucederam-se revoluções impactantes, de cunho econômico, político, tecnológico e social; e surgiram novas necessidades. Em resumo o mundo globalizou-se profundamente.

Os Estados, por ingente necessidade e não por capricho, contribuíram para que eles próprios se tornassem menos “soberanos”. Primeiramente, tendo em vista que suas leis destinavam-se a serem aplicadas a fatos e atos jurídicos ocorridos em seu território, permitiram que o sistema de escolha de lei aplicável a fatos interjurisdicionais, criado nos idos do século XII, se tornasse um ramo de seu próprio direito interno (direito internacional privado, entre os latinos e Conflict of Laws, para os anglo-saxões). Como se sabe, esse sistema possibilita que juiz do próprio Estado aplique regras jurídicas de Estado estrangeiro, na medida em que o fato ou ato interjurisdicional possua conexão mais estreita com tais direitos.

Em segundo lugar engendraram um sucedâneo do “legislador internacional”. As concertações que as circunscrições jurídico-politíco-territoriais faziam, uma com outra (tratado bilateral), desde tempos imemoriais, deram lugar aos tratados multilaterais, por meio dos quais, foi possível criar “legislação” internacional uniforme, ao menos em certos setores, como no comércio internacional. Como se tal não bastasse, os Estados concluíram tratados multilaterais constitutivos de organismos internacionais, dotados de órgãos, funcionários, vontade e finalidades próprias, com fundamento na delegação de poder dada pelos próprios Estados: as organizações internacionais intergovernamentais, cujo número hoje suplanta o dos Estados. Tais organizações possuem atualmente imensa influência e, em razão do princípio da efetividade, vigente no direito internacional, adquirem “certa autonomia”, como aconteceu com Pinóquio, para a estupefação do papai Gepeto!

Em terceiro lugar, os Estados que, por amor à própria balança de pagamentos, cuidaram da harmonização e da unificação de regras atinentes ao comércio internacional (direito comercial internacional substancialmente uniforme), não tiveram o necessário interesse e rapidez para negociar, aprovar em seus parlamentos, ratificar e tornar executórios internamente, tratados que criassem regras, em nível universal, indispensáveis ao dinamismo do comércio internacional. O relativo vácuo criado por tal leniência foi preenchido pela ação dos próprios comerciantes, que, por meios de suas corporações, criaram a nova lex mercatoria: normas substantivas autônomas, universais, com base nos usos e costumes dos vários segmentos do comércio internacional, desconectadas dos direitos internos dos Estados, que atingiram sua relativa independência por terem instituído a arbitragem privada internacional, como método de solução de contendas.

Em quarto lugar, após o final da Segunda Guerra Mundial, alguns Estados europeus, impelidos pela vontade de cimentar paz duradoura, conceberam organizações internacionais regionais de integração, dotadas de poder supranacional, ou seja, com direito próprio, diretamente oponível aos Estados-Membros. Os organismos de integração econômica regional, dotados ou não de certo grau de supranacionalidade, espalharam-se pelo quatro cantos do globo e  deram origem ao Direito da integração.

Last, but not the least, a jurisdição internacional adquiriu novos contornos. Embora, em tese, tribunais internacionais somente possuam jurisdição sobre Estado que a tenha aceito previamente, o fato de hoje haver dezenas de tribunais internacionais indica realidade, de certa maneira, cambiante. Até a segunda metade do século passado inexistia tribunal internacional permanente. A criação, nessa época, da Corte Permanente de Justiça Internacional da Haia (sucedida, em 1945, pela Corte Internacional de Justiça — CIJ) foi o primeiro passo, que se acelerou geometricamente nas décadas seguintes. Nos dias de hoje, há tribunais internacionais de diversas sortes: tribunais internacionais clássicos com potencial jurisdição universal e competência sobre qualquer assunto internacional (CIJ); tribunais internacionais regionais, com competência precípua em assuntos de cunho econômico-comercial (tribunais de organismos internacionais de integração econômica); tribunais de organizações internacionais (que por vezes, assumem nomes diversos (painéis de solução de controvérsias da OMC); tribunais internacionais regionais com poderes supranacionais (cortes da UE); tribunais regionais de direitos humanos etc. Não se alegue a liberdade de os Estados submeterem-se ou não à jurisdição de tribunais internacionais. Tal liberdade tornou-se relativa, devido à existência de pressões tanto internacionais quanto internas que, muitas vezes, não deixam outra saída aos governantes do que a aceitação de jurisdição. Elucidativo exemplo é o Tribunal Penal Internacional. Esse tribunal foi gestado no seio da ONU, que preparou o texto base de tratado, que discutido e adotado pela conferência diplomática de Roma, recebeu as necessárias ratificações dos Estados, em tempo recorde, possibilitando a instalação do tribunal, com sede na Haia. Porque tal aconteceu, se o tratado versava sobre a justiça penal, competência essa que pertencia, quase unicamente, ao domínio dos Estados e representava talvez o último atributo restante da soberania clássica? A resposta é simples, inúmeras ONGs trabalharam intensamente, no período preparatório na Assembléia-Geral da ONU, durante a conferência diplomática em Roma e no mundo todo, junto aos Estados para conseguir as ratificações!

Em resumo, o direito internacional público clássico vem-se relativizando, cedendo vez para um direito internacional ou vertentes internacionais do direito mais consentâneos com o desenvolvimento atual do mundo. Por seu turno, os direitos internos vem sendo mais receptivos vis-à-vis às normativas internacionais, pois são características da atualidade o inter-relacionamento e a colaboração.

Toda a energia criadora da vida internacional, relembrada acima, demonstra que praticamente não há assunto jurídico que seja imune às vertentes internacionais do direito. Isso repercute de várias maneiras.

No âmbito acadêmico exige grande esforço, de professores e alunos, para que possa haver pesquisas, estudo e debates sobre os aspectos internacionais do direito, de maneira séria e contínua e sem prevenção. No Brasil, o atraso endêmico no trato do Direito Internacional, mesmo se comparado com outros países latino-americanos, deve-se ao período, não tão longínquo, em que tal matéria, considerada “perfumaria jurídica”, foi retirada do currículo mínimo do curso de graduação em direito. As outrora disciplinas autônomas de caráter internacional — Direito Internacional Público e Direito Internacional Privado — cederam lugar às vertentes internacionais do direito, sobre que acabo de discorrer, com inter-relações, imbricações e implicações cada vez mais intensas.

Na esfera prática, o referido no parágrafo anterior deixou sequelas profundas. Parte dos operadores do direito desconhece que, o ordenamento interno do País contém normas oriundas do direito internacional, quer de origem costumeira, quer contratual; bem como não se dá conta caber ao juiz nacional a aplicação de tais regras. Mundialmente, em 99% dos casos, as normas internacionais são impostas por juízes dos Estados, enquanto que os tribunais internacionais aplicam apenas 1%! Por não possuir ferramental teórico-prático suficiente para detectar que em dada questão há dimensões internacionais — daltonismo jurídico específico — advogados privados ou procuradores públicos deixam de postular, promotores de justiça deixam de ser fiscais da “lei” de origem internacional e juízes deixam de julgar, com base nessa parte cada vez mais relevante do ordenamento jurídico nacional. Essa situação precisa mudar, se nosso país desejar diminuir o “custo Brasil” e encaminhar-se rumo ao primeiro mundo!

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    é decano dos professores titulares da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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