Reforma na lei

Erros apontados no projeto do Código Penal são na verdade escolhas diferentes

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30 de janeiro de 2015, 5h52

Artigo crítico ao Projeto de Reforma do Código Penal foi publicado em 28 de janeiro de 2014, nesta ConJur, pelos juristas Alaor Leite e Gustavo Quandt[1]. A despeito de suas qualidades, o estudo oferece algumas inconsistências. Por exemplo:

— apontam que a pena do crime do artigo 195 — Favorecimento da prostituição ou da exploração sexual de vulnerável, 4 a 10 anos de prisão — é apenas a metade da pena do próprio abuso sexual deste mesmo doente mental — artigo 192 — Estupro de vulnerável , pena de 8 a 12 anos de prisão. Deixando de lado a matemática estranha (pois “metade” de 8 a 12 seriam 4 a 6 e não 4 a 10…), não se aperceberam eles que o tipo do artigo 195 não exclui a sanção para o estupro do vulnerável!

— eles dizem que “o favorecimento pessoal no terrorismo (artigo 246) sofre uma antecipação da punibilidade (“dar guarida a pessoa […] que esteja por praticar o terrorismo”) que não se previu nem para o próprio terrorismo (artigo 245)”. Bem, fica anotado esse pedido de “bis in eadem”. Se, porém, o que pretenderam dizer é relativo a atos preparatórios tipicamente descritos, eles estão também no artigo 245.

— quando criticam que as penas da omissão de socorro, artigo 137, são as mesmas do crime de abandono de incapaz, artigo 136,  esqueceram-se de ler o resto do artigo 137, que traz figuras qualificadas e com aumento de pena que desigualam as sanções previstas.

— como exemplo do “nivelamento de condutas fundamentalmente diversas”, exemplificam com a pena mínima da calúnia, artigo 141, e da difamação, artigo 142, que é a mesma, “embora na primeira o fato imputado, mais do que desonroso, seja criminoso”. Ora, há imputações falsas de fatos não-criminosos que podem ser tão ou mais ofensivas à honra objetiva do que a imputação de fatos criminosos. Imputar a alguém a prática de certas práticas sexuais com terceira pessoa — o que não é crime — pode ser mais ofensivo do que dizer que ele praticou um dano, artigo 163, por exemplo. É uma obviedade que deveria prescindir de explicações.

— criticam que a pena mínima do crime de lesões corporais seguidas de morte é idêntica à das lesões graves de 3º grau. Só que a conduta das lesões graves é dolosa e a da lesão seguida de morte, preterdolosa. Além disso, as penas máximas não são idênticas: 8 anos num caso, 12, no outro.

— dizem que o projeto traz uma definição  ruim de tentativa, no artigo 21. Devem tê-la achado ruim por esta razão, pois, no Projeto, a definição está no artigo 19[2] e repete  a redação do atual artigo 14, II, do Código Penal.

Os autores não atinaram para um aspecto importante da proporcionalidade das penas. O acervo de penas mínimas é restrito, muito menor do que o rol de crimes. Deste modo, elas podem coincidir e muitas vezes o fazem. Não há como prever centenas de penas mínimas diversas. Ao longo do projeto, estas penas comumente são de um ou de dois anos. Se procurarem — não só no projeto, mas no Código Penal vigente — verão dezenas de condutas diversas com a mesma pena mínima. Isto não significa, necessariamente, desproporcionalidade. A diferenciação da resposta penal pode vir com agravantes, causas de aumento, figuras qualificadas e variações na descrição típica, regras sobre concurso de crimes, etc. Claro que há distorções que podem e devem ser corrigidas. Se adotada aquela lógica, a pena mínima do homicídio deveria ser dezenas de vezes maior do que a do furto, por exemplo. Se a primeira é de seis meses, a do homicídio deveria ser de 30 anos, porque matar alguém é ao menos 60 vezes mais grave do que subtrair coisa alheia móvel. Eu diria mil vezes.

Existem opções ideológicas feitas pelo projeto que são do desagrado dos autores do texto em comento. Discordar é um direito fundamental. Dizem que há erro na exigência de pagamento de multa como condição para a progressão e que se trata de escolha ilegítima, uma prisão por dívida “que atinge mais o desvalido, menos o opulento…”.

As razões da 'ilegitimidade” não foram esclarecidas pelos autores. Certamente que não se trata do Pacto Interamericano de Direitos Humanos, que não confunde “dívida” com “pena”. No parágrafo 4º do artigo 44 (e não no parágrafo 5º) se diz que não haverá  progressão para regime mais favorável se o condenado, podendo, não pagar a multa. No artigo 47, parágrafo único, por igual, se diz que haverá regressão quando o condenado não pagar, podendo, a multa. Há previsão de parcelamento da multa em até 60 meses e, em caso de desconto de vencimento, não pode incidir sobre recursos indispensáveis para o sustento do condenado e sua família.

Veja-se, portanto, o que temos, com certa insistência, indicado: nem tudo o que se chama de “erro” do projeto é, na verdade, erro mesmo. Às vezes são apenas escolhas diferentes daquelas que o estudioso gostaria que tivessem sido adotadas. Apoio o texto projetado. Para os autores, é um erro. A meu ver, erram eles.

Estas pequenas falhas não desmerecem o artigo em comento. Muitas das observações que fazem estão corretas. Os apontamentos supra, porém, servem, talvez, para demonstrar aquela máxima tão importante de Jesus Cristo, quando questiona aqueles que veem o cisco no olho do próximo e não a trave que está nos próprios olhos.

I – Acertos e avanços do projeto em debate
O que parece menos acertado no texto publicado é a impressão que passa de que o Projeto 236/2012 se definiria por estes erros que indica. Não é possível concordar com isto.

Há o que aprimorar[3]. Todavia, há aspectos muito positivos do Projeto em debate que merecem ser destacados, para bom esclarecimento dos interessados. Não sou isento: tenho opiniões sobre o papel do Direito Penal no Estado Democrático de Direito[4]. Mas é assim com todo mundo. Anjos são isentos, estudiosos do Direito, não.

Houve preocupação com a sistematização da legislação extravagante, submetida a importantes alterações já nos trabalhos do Anteprojeto. Vejam-se os crimes eleitorais, os crimes contra o sistema financeiro, os crimes praticados por estrangeiros, os de telecomunicações, etc. Mas é verdadeiro que muitas foram transplantadas para o projeto, especialmente aquelas mais recentes.

O Projeto reduz de o rol de crimes hoje existente no país. Acaba com a artificial distinção entre crime e contravenção. Descriminaliza as condutas “varguistas” dos crimes contra a organização do trabalho, bem como a moral passadista dos “crimes contra o casamento”. Atualiza as normas sobre extraterritorialidade da lei penal e execução de sentença estrangeira; prevê a “culpa gravíssima” para situações que, sem deixar o espectro da culpa, não alcançam o dolo eventual; antecipa o momento de reconhecimento do início da execução da ação criminosa, sem perda da inequivocidade que deve presidir tal reconhecimento; restringe a regra do arrependimento e da desistência aos seus efetivos beneficiários; positiva a insignificância penal, deixando de lado sua estrita consideração como fenômeno da tipicidade; termina com o “erro de tipo permissivo”; oferece tratamento penal condizente para os crimes praticados por índios; cancela a distinção anacrônica entre reclusão e detenção; traz segurança jurídica para os critérios de concurso de pessoas, especialmente diante  daqueles que “usam aparatos organizados de poder para ofensa ao bem jurídico”[5]; amplia o rol de crimes hediondos para adaptá-lo ao critério de hediondez material, incluindo o tráfico de seres humanos e de órgãos, a redução à condição análoga à de escravo, a corrupção ativa e passiva, o peculato, o excesso de exação e os crimes contra a humanidade; facilita a individualização da pena com nova gradação do requisito temporal; prevê o exame criminológico, mas com prazo para conclusão; positiva o recolhimento domiciliar quando não houver vaga no regime fixado, art. 45; reconhece como direitos do preso o voto (se preso provisório) e veda-se a revista íntima, salvo quando houver elementos concretos de autorização[6]; prevê a multa em norma genérica[7], sem necessidade de sua repetição em cada preceito sancionador; fixa critérios para a dosimetria das penas das pessoas jurídicas; prevê fixação de alimentos para as vítimas, um primeiro passo para atender ao artigo 245 da Constituição[8]; prevê o fim dos critérios “subjetivos” para a fixação da pena: conduta social e personalidade do agente (nada de reconhecimento automático de “boa conduta social” para réus engravatados.); exceptua da regra benéfica do crime continuado, aqueles que afetarem a vida; permite recálculo do máximo de cumprimento da pena unificada, se os crimes forem praticados durante os trinta anos máximos; acaba com a medida de segurança “eterna”; estabelece parâmetros para que o réu colabore com a Justiça, não necessariamente delatando seus comparsas[9]; dispõe que a prescrição executória só começará a correr, para todas as partes, com o trânsito em julgado da decisão condenatória; corrige a pena mínima do crime de homicídio (atualmente seis anos, uma das menores do mundo); prevê o feminicídio; impede que os concorrentes do crime de infanticídio se beneficiem da norma protetiva à mãe; exclui a atividade jornalística do conceito dos crimes contra  a honra; tipifica a corrupção entre particulares; redesenha e modula os ataques à dignidade sexual; tipifica os crimes cibernéticos; define terrorismo[10]; cria figura privilegiada de moeda falsa; simplifica os crimes de falso, bem assim como o peculato e outros crimes contra a administração pública; prevê o tipo do enriquecimento ilícito, em atendimento a compromissos internacionais do Brasil; reduz e recodifica os crimes eleitorais, inclusive a figura do “caixa 2”; prevê crimes contra o sistema financeiro nacional, de forma superior à da 7.492/86[11]; incorpora os crimes contra os direitos humanos e prevê condutas contra a memória social.

Não é um rol exclusivo.

II – Conclusões
Desde que se começou a cogitar da reforma do Código Penal, no âmbito do Senado Brasileiro, firmou-se uma contraposição entre a atividade legislativa e a doutrina penalística brasileira. O trabalho do Senado Federal chegou a ser considerado parte de um projeto personalista de engrandecimento de alguma figura política controversa. O fato, porém, é que o Senado seguidamente convidou juristas a colaborar. Vários foram ouvidos em debates e audiências públicas. Centenas de contribuições foram encaminhadas, desde a época da Comissão de Juristas. Muito foi aceito ao longo dos dois substitutivos que já recebeu.

Não interessa a ninguém esse distanciamento.

Teria sido muito bom se, como se chegou a ensaiar, tivesse surgido um “projeto alternativo”, como ocorreu na Alemanha nos anos 60. Salvo melhor juízo, nada se fez. Teria sido melhor do que a crítica reiterada e não propositiva. Será que a doutrina — termo abrangente de estudiosos com os perfis mais diversos — seria capaz de encontrar consensos suficientes para apresentar um projeto de Código? 

O texto apresentado pela CCJ não é perfeito. Mas a pretensão de que não pode ser corrigido — naquelas situações em que há erro e não opinião divergente mascarada de erro — tem sido desmentida por todo o trabalho feito até aqui. Ela soa personalista e exclusivista e nega a legitimidade dos Congressistas, afinal eleitos pelo povo, para proceder às mudanças legislativas que nosso país precisa e tomar decisões em matérias que, por índole, não são consensuais. Os trâmites legislativos, longe de findarem, estão a meio termo. Sequer o texto foi levado à apreciação do plenário do Senado Federal.

Expungido de alguns juízos altissonantes e das inconsistências aqui indicadas, o trabalho de Alaor Leite e Gustavo Quandt,  é valoroso e traz sugestões interessantes (o que digo mesmo discordando de muitas delas). Seria excelente se a nova relatoria a ser designada em razão da saída do Relator anterior, Senador Vital do Rego, as examinasse. Mas um novo Código Penal é uma necessidade e os trabalhos devem prosseguir. Jogar tudo fora e começar do zero (!) não soa como a melhor forma de prestigiar os esforços que o Senado Federal já empreendeu. Parece uma ideia fixa e, como já dizia Brás Cubas[12], “ antes um argueiro, antes uma trave no olho”.


[1] “Perda Total – Defeitos do projeto do Código Penal comprometem sua viabilidade”

[2] O texto consultado para a elaboração do presente estudo é o “Adendo ao Parecer do Senador Vital do Rego na CCJ”, de 04.12.2014. A versão final, com nota explicativa, datada de 17.12.2014 pode ser encontrada em http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_mate=106404.  

[3] Vão aqui algumas sugestões de aperfeiçoamento: i) o artigo 68 mantém a regra de que a execução da multa será promovida na forma da Lei 6.830/80. Isto provou mal. Volta a questão de saber se se trata de “dívida de valor” e se a Fazenda Pública ou o Ministério Público é que promoverão a execução; ii) o aumento de pena para quem coage, instiga, auxilia ou determina a prática de crime por menor de dezoito anos, art. 31, parágrafo único,  é de “metade a dois terços”. É muito; iii) o rol dos crimes hediondos, art. 41, deve incluir as condutas contra a dignidade sexual de vulneráveis.

[4] Indicadas em meu livro “Mandados Expressos de Criminalização e a Proteção de Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988”, Ed. Fórum, Belo Horizonte, 2007.

[5]  Para os autores, o projeto “insere uma avalanche de palavras inúteis que atingem exatamente os mesmos resultados práticos da lei atual”. É uma conclusão ousada, mas à espera de comprovação. A meu ver, o texto oferece segurança jurídica e permite a ampliação típica necessária para certas modalidades de crime praticados por organizações criminosas.

[6]  Alaor Leite e Gustavo Quandt criticam esse artigo, sugerindo que se refere ao “visitante” e não ao “preso”. Tenho a impressão de que os presos teriam opinião diferente.

[7] Referidos autores apontam, com razão o erro na pena dos artigos 155 e 203, parágrafo primeiro.  Todavia, o texto do artigo 65 do Projeto, ao contrário do que sustentam, dá suporte a esta possibilidade de previsão específica e diferenciada de multa: “Art. 65. A multa será aplicada em todos os crimes, independentemente de que cada tipo penal a preveja autonomamente.” O modal é autorizativo, não proibitivo.

[8]  Art. 245. A lei disporá sobre as hipóteses e condições em que o Poder Público dará assistência aos herdeiros e dependentes carentes de pessoas vitimadas por crime doloso, sem prejuízo da responsabilidade civil do autor do ilícito.

[9]  Sim, é matéria de processo penal.

[10] A redação que constava no Anteprojeto da Comissão de Juristas, venia concessa, era melhor.

[11] Exceto no tipo dos “empréstimos vedados”, art. 375, ainda confuso. A redação do Anteprojeto, que falava em “colocar em risco a solvabilidade da instituição financeira”, era melhor.

[12] “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, Machado de Assis.

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