Esquizofrenia no planejamento da infraestrutura aumenta os gastos
27 de janeiro de 2015, 7h00
Ocorre que nem toda a culpa pelos apagões elétricos decorre de falta d’água.
Um dos fatores importantes é o que denomino de esquizofrenia na concessão de obras de infraestrutura. Observemos o setor hidrelétrico brasileiro. O Brasil possui 12 grandes bacias hidrográficas, onde surgem os potenciais de energia hidrelétrica. Nelas constam a Usina de Itaipu, empreendimento binacional entre Brasil e Paraguai, que se encontra localizada no estado do Paraná; a Usina de Tucuruí, localizada no estado do Pará, e que é a maior Usina exclusivamente brasileira; a de Ilha Solteira, no estado de São Paulo e a Usina de Xingó, entre os estados de Sergipe e Alagoas.
Nos próximos cinco anos está prevista geração de energia nas Usinas Hidrelétricas de Santo Antonio e de Jirau, ambas no estado de Rondônia, e de Belo Monte e São Luiz do Tapajós, estas no estado do Pará. Várias outras estão planejadas ou em inicio de execução.
Ocorre que todas estão com o cronograma atrasado. Porquê?
Paulo Moreira Leite, em artigo publicado na revista IstoÉ em outubro de 2013 já apontava naquela data que o Poder Judiciário havia paralisado 27 vezes a construção da Usina de Belo Monte, seja em decisões de primeira ou de segunda instâncias, todas revertidas no STJ. Nessa obra são empregados 24 mil trabalhadores e seu custo é estimado em R$ 27 bilhões. O autor ainda informa que a estimativa é que a energia de Belo Monte vá ser utilizada por 60 milhões de pessoas, ou quase um terço de toda a população brasileira. Só de condicionantes sociais a previsão é de gastos de aproximadamente R$ 4 bilhões, nos 11 municípios afetados. Altamira, cidade-sede da Usina, que tem cerca de 100 mil habitantes, finalmente receberá seu primeiro sistema de água e esgotos tratados.
A Usina de São Manoel, na fronteira entre os estados do Pará e Mato Grosso, no rio Teles Pires, já foi objeto de seis paralizações decorrentes de liminares judiciais, todas promovidas pelo Ministério Público, sendo a última delas em 24 de janeiro deste ano, que foi suspensa logo após pelo 1º TRF.
Um dos vários problemas enfrentados são as assim chamadas condicionantes sociais, que o Ibama já planeja rever nos processos de licenciamento. É através dessas condicionantes sociais que são feitas exigências às empresas, tais como a construção e a manutenção de hospitais, postos de saúde, escolas, fornecimento de água e esgoto tratado para a população local (que sofre diretamente o impacto das obras), as quais, na verdade, são de responsabilidade do Poder Público. Muitas vezes o gerente local de uma dessas obras, aos olhos da população, torna-se mais importante que o Prefeito, que a ele tem que se dirigir de pires na mão. E isso atrasa a obra e desvia os esforços para sua principal função, que é a entrega do que foi contratado pelo Poder Público concedente.
O fato é que 11% da oferta de energia está paralisada em razão de problemas como os acima relatados.
Falta água? Não, falta planejamento.
Claro que a forte estiagem no Sudeste vem atingindo em cheio antigas hidrelétricas localizadas em São Paulo, tais como a de Ilha Solteira e a de Três Irmãos, que já operam usando o volume morto de suas represas.
Qual a sugestão? Afinal, não basta apontar os problemas, sendo adequado propor soluções. Minha proposta é simples: O Poder Público concedente, que no caso da geração de energia hidrelétrica é a União, através da ANEEL, deve licitar a obra já com todas as licenças concedidas, as ambientais e sociais dentre elas. Ou seja, ao invés de licitar a obra e deixar para a iniciativa privada correr atrás dos licenciamentos, o Poder concedente deveria licitar a obra “fechada e licenciada”, inclusive com as condicionantes sociais necessárias, que seriam implementadas pelas empresas ou consórcios que vencessem a licitação para aquela obra. Nesse processo de licenciamento prévio à licitação, o Poder Público concedente é que teria que analisar e enfrentar todas as demandas sociais, ambientais e federativas necessárias, colocando-as de verdade no custo da obra — grande parte das “externalidades” seriam “internalizadas”.
A forma atual, esquizofrênica, cria um impasse, pois a iniciativa privada busca sempre reduzir seus custos — afinal, é de lucro que as empresas vivem — e com isso os embates sociais e judiciais são ampliados e geram atrasos sem fim, fazendo recair o custo sobre toda a sociedade (que fica sem a obra e as vantagens civilizatórias pretendidas por ela, tais como energia elétrica), sobre as empresas (que veem o custo se multiplicar e buscam arrochar os fornecedores e não realizar os ajustes ad hoc que surgem em razão das demandas sociais, além de receberem as multas impostas pelo Poder Público) e o governo (que não vê seu plano de obras deslanchar).
E eis aqui o traço esquizofrênico: É o Estado que concede e tem interesse em ver a obra pronta, e é o mesmo Estado, através de um sem-número de agentes públicos e políticos, federativamente distribuídos, que retarda o desenvolvimento da obra. Ou ainda a sobreonera, criando Taxas de Fiscalização Estadual sobre qualquer coisa a fim de aumentar sua arrecadação.
A proposta que acima apresento para debate visa acabar com este problema, pois quando concedida a obra, através de licitação, já se pressupõe que todas as licenças necessárias tenham sido concedidas. O debate entre desenvolvimentismo e preservacionismo, que está na base dessa disputa, teria que ser enfrentado pelo Poder Público concedente, e não pelas empresas. Lembro sempre o relato de meu amigo e sócio, professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Pará, Jorge Alex Athias, de que iniciava suas aulas com a luz e o ar condicionado da sala desligados, e esperava para ver a reação dos alunos — e aí colocava este tema em debate.
Enfim, temos que ter no Brasil mais “planejamento efetivo”, e não “planejamento de fachada”.
Aliás, é curioso como não conseguimos executar nem mesmo nosso planejamento orçamentário, pois antes mesmo de aprovado o Orçamento ele já é contingenciado — a Presidente publicou em 8 de janeiro o Decreto 8.389/15 que contingenciou o orçamento de 2015, sequer aprovado. Ou seja, contingenciamos a projeção para 2015 do orçamento de 2014.
Estou seguro que existe um conjunto de fatores que emperram nossa atividade planejadora, dentre eles a invencível crença em nossa capacidade de improviso — a certeza de que com o jeitinho brasileiro tudo pode ser resolvido. Má crença. Sem planejamento não há possibilidade de segurança jurídica e econômica que possibilite a ampliação da atividade econômica. Surge a instabilidade jurídica, que é muitas vezes pior que a instabilidade econômica. pois um comodato pode se transmutar, pela interpretação “ad hoc” em usucapião — e vai lá discutir isso no Judiciário… A coisa piora quando se vê que, no meio empresarial, os contratos são sempre de “múltiplas avenças”, o que implica no afastamento da rígida tipicidade contratual ensinada em várias Faculdades de Direito.
O fato é que, enquanto não encaramos a atividade de planejamento com a seriedade que merece, devemos aproveitar a proximidade de fevereiro, e sair cantando aquela velha marchinha do Carnaval de 1954, denominada Vagalume , e ambientada no Rio de Janeiro, mas que serve para todo o Brasil:
“Rio de Janeiro
Cidade que nos seduz
De dia falta água
De noite falta luz
Abro o chuveiro,
Oi, não cai um pingo,
Desde segunda-feira até domingo
Eu vou pro mato.
Oi, pro mato eu vou
Vou buscar um vagalume
Pra dar luz pro meu chatô.”
(letra e música de Vitor Simon e Fernando Martins)
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