Contas à vista

Esquizofrenia no planejamento da infraestrutura aumenta os gastos

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

27 de janeiro de 2015, 7h00

Spacca
Iniciamos o ano sob a égide da escassez de água, o que gera dois problemas: de abastecimento hídrico para uso quotidiano e de geração de energia, uma vez que a maior parte de nossa matriz energética é baseada na energia limpa produzida pelas usinas hidroelétricas. Seguramente quem não está ameaçado por um desses problemas, tal como os amigos do Norte do país, onde há abundância de água, está ameaçado pelo segundo — ou por ambos, caso da região Sudeste. Os recentes apagões elétricos em várias partes do Brasil apontam nesse sentido.

Ocorre que nem toda a culpa pelos apagões elétricos decorre de falta d’água.

Um dos fatores importantes é o que denomino de esquizofrenia na concessão de obras de infraestrutura. Observemos o setor hidrelétrico brasileiro. O Brasil possui 12 grandes bacias hidrográficas, onde surgem os potenciais de energia hidrelétrica. Nelas constam a Usina de Itaipu, empreendimento binacional entre Brasil e Paraguai, que se encontra localizada no estado do Paraná; a Usina de Tucuruí, localizada no estado do Pará, e que é a maior Usina exclusivamente brasileira; a de Ilha Solteira, no estado de São Paulo e a Usina de Xingó, entre os estados de Sergipe e Alagoas.

Nos próximos cinco anos está prevista geração de energia nas Usinas Hidrelétricas de Santo Antonio e de Jirau, ambas no estado de Rondônia, e de Belo Monte e São Luiz do Tapajós, estas no estado do Pará. Várias outras estão planejadas ou em inicio de execução.

Ocorre que todas estão com o cronograma atrasado. Porquê?

Paulo Moreira Leite, em artigo publicado na revista IstoÉ em outubro de 2013 já apontava naquela data que o Poder Judiciário havia paralisado 27 vezes a construção da Usina de Belo Monte, seja em decisões de primeira ou de segunda instâncias, todas revertidas no STJ. Nessa obra são empregados 24 mil trabalhadores e seu custo é estimado em R$ 27 bilhões. O autor ainda informa que a estimativa é que a energia de Belo Monte vá ser utilizada por 60 milhões de pessoas, ou quase um terço de toda a população brasileira. Só de condicionantes sociais a previsão é de gastos de aproximadamente R$ 4 bilhões, nos 11 municípios afetados. Altamira, cidade-sede da Usina, que tem cerca de 100 mil habitantes, finalmente receberá seu primeiro sistema de água e esgotos tratados.

A Usina de São Manoel, na fronteira entre os estados do Pará e Mato Grosso, no rio Teles Pires, já foi objeto de seis paralizações decorrentes de liminares judiciais, todas promovidas pelo Ministério Público, sendo a última delas em 24 de janeiro deste ano, que foi suspensa logo após pelo 1º TRF.

Um dos vários problemas enfrentados são as assim chamadas condicionantes sociais, que o Ibama já planeja rever nos processos de licenciamento. É através dessas condicionantes sociais que são feitas exigências às empresas, tais como a construção e a manutenção de hospitais, postos de saúde, escolas, fornecimento de água e esgoto tratado para a população local (que sofre diretamente o impacto das obras), as quais, na verdade, são de responsabilidade do Poder Público. Muitas vezes o gerente local de uma dessas obras, aos olhos da população, torna-se mais importante que o Prefeito, que a ele tem que se dirigir de pires na mão. E isso atrasa a obra e desvia os esforços para sua principal função, que é a entrega do que foi contratado pelo Poder Público concedente.

O fato é que 11% da oferta de energia está paralisada em razão de problemas como os acima relatados.

Falta água? Não, falta planejamento.

Claro que a forte estiagem no Sudeste vem atingindo em cheio antigas hidrelétricas localizadas em São Paulo, tais como a de Ilha Solteira e a de Três Irmãos, que já operam usando o volume morto de suas represas.

Qual a sugestão? Afinal, não basta apontar os problemas, sendo adequado propor soluções. Minha proposta é simples: O Poder Público concedente, que no caso da geração de energia hidrelétrica é a União, através da ANEEL, deve licitar a obra já com todas as licenças concedidas, as ambientais e sociais dentre elas. Ou seja, ao invés de licitar a obra e deixar para a iniciativa privada correr atrás dos licenciamentos, o Poder concedente deveria licitar a obra “fechada e licenciada”, inclusive com as condicionantes sociais necessárias, que seriam implementadas pelas empresas ou consórcios que vencessem a licitação para aquela obra. Nesse processo de licenciamento prévio à licitação, o Poder Público concedente é que teria que analisar e enfrentar todas as demandas sociais, ambientais e federativas necessárias, colocando-as de verdade no custo da obra — grande parte das “externalidades” seriam “internalizadas”.

A forma atual, esquizofrênica, cria um impasse, pois a iniciativa privada busca sempre reduzir seus custos — afinal, é de lucro que as empresas vivem — e com isso os embates sociais e judiciais são ampliados e geram atrasos sem fim, fazendo recair o custo sobre toda a sociedade (que fica sem a obra e as vantagens civilizatórias pretendidas por ela, tais como energia elétrica), sobre as empresas (que veem o custo se multiplicar e buscam arrochar os fornecedores e não realizar os ajustes ad hoc que surgem em razão das demandas sociais, além de receberem as multas impostas pelo Poder Público) e o governo (que não vê seu plano de obras deslanchar).

E eis aqui o traço esquizofrênico: É o Estado que concede e tem interesse em ver a obra pronta, e é o mesmo Estado, através de um sem-número de agentes públicos e políticos, federativamente distribuídos, que retarda o desenvolvimento da obra. Ou ainda a sobreonera, criando Taxas de Fiscalização Estadual sobre qualquer coisa a fim de aumentar sua arrecadação.

A proposta que acima apresento para debate visa acabar com este problema, pois quando concedida a obra, através de licitação, já se pressupõe que todas as licenças necessárias tenham sido concedidas. O debate entre desenvolvimentismo e preservacionismo, que está na base dessa disputa, teria que ser enfrentado pelo Poder Público concedente, e não pelas empresas. Lembro sempre o relato de meu amigo e sócio, professor de Direito Ambiental da Universidade Federal do Pará, Jorge Alex Athias, de que iniciava suas aulas com a luz e o ar condicionado da sala desligados, e esperava para ver a reação dos alunos — e aí colocava este tema em debate.

Enfim, temos que ter no Brasil mais “planejamento efetivo”, e não “planejamento de fachada”.

Aliás, é curioso como não conseguimos executar nem mesmo nosso planejamento orçamentário, pois antes mesmo de aprovado o Orçamento ele já é contingenciado — a Presidente publicou em 8 de janeiro o Decreto 8.389/15 que contingenciou o orçamento de 2015, sequer aprovado. Ou seja, contingenciamos a projeção para 2015 do orçamento de 2014.

Estou seguro que existe um conjunto de fatores que emperram nossa atividade planejadora, dentre eles a invencível crença em nossa capacidade de improviso — a certeza de que com o jeitinho brasileiro tudo pode ser resolvido. Má crença. Sem planejamento não há possibilidade de segurança jurídica e econômica que possibilite a ampliação da atividade econômica. Surge a instabilidade jurídica, que é muitas vezes pior que a instabilidade econômica. pois um comodato pode se transmutar, pela interpretação “ad hoc” em usucapião — e vai lá discutir isso no Judiciário… A coisa piora quando se vê que, no meio empresarial, os contratos são sempre de “múltiplas avenças”, o que implica no afastamento da rígida tipicidade contratual ensinada em várias Faculdades de Direito.

O fato é que, enquanto não encaramos a atividade de planejamento com a seriedade que merece, devemos aproveitar a proximidade de fevereiro, e sair cantando aquela velha marchinha do Carnaval de 1954, denominada Vagalume , e ambientada no Rio de Janeiro, mas que serve para todo o Brasil:

“Rio de Janeiro
Cidade que nos seduz
De dia falta água
De noite falta luz

Abro o chuveiro,
Oi, não cai um pingo,
Desde segunda-feira até domingo

Eu vou pro mato.
Oi, pro mato eu vou
Vou buscar um vagalume
Pra dar luz pro meu chatô.”
(letra e música de Vitor Simon e Fernando Martins)

Autores

  • Brave

    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!