Motivação das decisões

Não é justo atribuir ao novo Código de Processo Civil a pecha de autoritário

Autor

  • Paulo Henrique dos Santos Lucon

    é presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Livre Docente doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP onde é professor associado. Membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB Seção de São Paulo. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo.

26 de janeiro de 2015, 14h46

Depois de cinco anos de tramitação, o Novo Código de Processo Civil foi enfim aprovado pelo Congresso Nacional e segue agora para sanção da Presidente da República. A nova legislação que regulamenta o modo como se administra a Justiça em nosso país, em prol do objetivo por todos almejados de tornar a prestação da tutela jurisdicional mais célere e efetiva, tal como determina a Constituição Federal, estatui novos ônus, direitos e deveres para todos os sujeitos processuais, além de consagrar novos institutos que melhor tendem a se adequar às necessidades dos conflitos característicos de nossa atual sociedade. Não foi o Código ideal, porque o ideal não é terreno nem possível, mas foi, sem a menor dúvida, o Código mais democrático da história de nossa República. E como a democracia é o pior dos regimes à exceção de todos os outros,[1] sabemos que ela tem um custo tremendo, já que possibilitar ouvir todos os interlocutores não é tarefa das mais fáceis.

Dentre os novos deveres impostos aos magistrados pelo Novo CPC, sobressai em importância — até mesmo por conta de seu ineditismo — o disposto no artigo 487, que estabelece, a par dos requisitos que toda decisão jurídica deve conter, as hipóteses em que não serão consideradas fundamentadas as decisões judiciais. Assim, de acordo com o artigo 487, parágrafo 1º, do Novo Código, não se reputa fundamentada decisão que se limitar à indicação, reprodução, ou paráfrase de ato normativo sem explicitar sua relação com a causa ou a questão decidida (inciso I); utilizar conceitos indeterminados sem explicar sua incidência no caso (inciso II); invocar motivos que justificariam qualquer decisão (inciso III); não enfrentar argumento capaz de ao menos em tese infirmar a conclusão adotada pelo julgador (inciso IV); utilizar — ou deixar de utilizar — precedente ou enunciado de súmula sem identificar seus fundamentos nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (inciso V e VI).

Tais dispositivos tendem a tornar mais concretos os imperativos constitucionais da motivação e do contraditório, na medida em que constrangem o juiz, sob pena de invalidade de sua decisão, a ter de analisar as especificidades de cada caso, evitando-se, com isso, que sejam proferidas decisões que não aportam ao conhecimento das partes qualquer informação relevante a respeito do convencimento judicial. Quer-se evitar, por exemplo, que o juiz utilize na motivação frases prontas (por exemplo, “incabível a concessão da tutela pleiteada, haja vista que não se encontram presentes os requisitos necessários à sua concessão”) que nada elucidam e dão a nítida e frustrante impressão de que o julgador não examinou os autos.

Referido artigo contém, outrossim, dispositivo destinado a regulamentar a atividade de justificação das decisões judiciais envoltas com a necessidade de aplicar um determinado princípio jurídico em detrimento de outro. Segundo dispõe o artigo 487, parágrafo 2º, do novo Código, “no caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”. Por conta de um suposto decisionismo e de um eventual abuso hermenêutico que esse dispositivo poderia ensejar, diversos autores têm se manifestado contrários a sua entrada em vigor.

No último dia 8 de janeiro, por exemplo, em sua coluna semanal (Senso Incomum) na revista Consultor Jurídico, Lenio Luiz Streck externou toda sua preocupação com a aplicação de referido dispositivo.[2] Segundo o autor, a positivação da técnica da “ponderação”, nos moldes delineados por Robert Alexy — dada a dificuldade de compreensão e de aplicação do instrumental que a informa —, daria ensejo a um estado de incerteza jurídica tamanho que desencadearia um decisionismo sem padrões. O autor ressalta, ademais, uma impropriedade técnica do dispositivo que estabelece como hipótese de sua aplicação uma “colisão entre normas”. Como se sabe, regras também são normas jurídicas e não são passíveis de ponderação, sendo aplicáveis ou não a depender de sua validade.[3]

Os receios dos autores que pugnam pelo veto da presidente ao artigo 487, parágrafo 2º do novo Código, embora compreensíveis, não se justificam. A premissa de natureza essencialmente pragmática de que se deve partir para a adequada apreensão do significado desse dispositivo é que ele consiste, em primeiro lugar, em uma garantia para o cidadão que, não interessado em discussões doutrinárias, tem o direito de receber do Poder Judiciário a justificativa mais ampla quanto possível dos caminhos lógicos percorridos pelo magistrado para construir a decisão que impactará de maneira direta a sua vida.

O que fez o legislador — como sói ocorrer — foi disciplinar um fenômeno recorrente na prática que, contudo, tem se desenvolvido sem qualquer referencial normativo. Se vetado esse dispositivo, os magistrados continuaram a ter de julgar casos que exigem a aplicação de um princípio em detrimento de outro, porque a vida dos direitos assim lhes impõe, sendo ínsito aos princípios jurídicos um estado latente de tensão e de conflito uns com os outros, mas o cidadão não terá então a seu dispor fundamento específico para impugnar eventual decisão que utilize a técnica da ponderação de maneira não usual.

Se o artigo 487, parágrafo 2º, do novo CPC, tem um grande defeito, este é o laconismo. O legislador foi conciso e não explicitou tudo o que ele espera do julgador posto diante de um caso que exige a aplicação de um princípio em detrimento de outro. A opção pela aplicação de um princípio, por óbvio, não pode se dar de maneira arbitrária, conforme a conveniência do magistrado. Tem ele o dever de explicitar cada um dos passos empreendidos para ao fim optar por um ou outro dos princípios em conflito. Por isso, quando o legislador impõe ao magistrado o dever de “justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão” está ele a se referir aos juízos valorativos que o magistrado deve realizar a respeito da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito da medida adotada.

Sob a ótica da adequação o juiz deve demonstrar, em síntese, que a medida por ele adotada é apta à realização do fim almejado e sob a ótica da necessidade, ele deve analisar as medidas alternativas a essa e que possam promover o mesmo fim sem restringir, na mesma intensidade, os direitos fundamentais em conflito, e por fim, ao realizar o exame da proporcionalidade em sentido estrito o magistrado deve responder à seguinte pergunta para que sua decisão possa ser considerada motivada: “o grau de importância da promoção do fim justifica o grau de restrição causada aos direitos fundamentais?”.[4] Não nos parece ser essa uma tarefa hercúlea a ser exigida de nossos magistrados. É uma atividade de justificação complexa, sem dúvida, mas que, se bem realizada, cumpre as funções endo e extraprocessuais que da motivação se esperam.

Nesse sentido, soa em certa medida contraditória a crítica ao parágrafo segundo do artigo 487, do novo Código de Processo Civil, quando acompanhada de elogios ao parágrafo primeiro do mesmo artigo, que, como visto, objetiva a aproximar o magistrado das particularidades do caso em exame. O que faz o parágrafo segundo do artigo 487 é exigir do julgador que ele forneça os elementos de convicção derivados do caso concreto que justificam a aplicação de um princípio e não de outro. O parágrafo segundo, assim, pode-se afirmar está em sintonia com o restante do dispositivo que visa, como visto, a dar concretude ao artigo 93, inciso IX da Constituição Federal. Além disso, se as críticas ao artigo 487, parágrafo 2º, do novo CPC, se fundarem na dificuldade em se exigir do julgador que justifique a aplicação dos critérios da adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, a mesma crítica também deveria ser estendida aos elogiáveis dispositivos do parágrafo primeiro do artigo 487 que impõe ao julgador o dever de explicar o motivo concreto da incidência de conceitos jurídicos indeterminados ou de realizar distinções nos casos de utilização das manifestações dos tribunais superiores como razão de decidir dos novos casos. A aplicação de tais técnicas é tão complexa quanto a exigida pela técnica da ponderação.

As críticas mais severas ao artigo 487, parágrafo 2º, do novo Código, se direcionam à expressão “colisão entre normas”, que poderia, nessa visão um tanto apocalíptica, dar ensejo a não aplicação de regras pelo julgador. De fato, a expressão “colisão entre normas” não é a mais adequada a figurar em texto legislativo. Melhor seria a utilização de expressão menos abrangente (“colisão entre princípios”, por exemplo). Isso não significa, contudo, que dela se possa extrair um salvo conduto aos magistrados para aplicarem ou não as regras como melhor lhes aprouverem. Essa conclusão é exagerada, não só mas também porque as normas não se interpretam isoladamente, mas sistematicamente. Se bem compreendido o alcance do artigo 487, parágrafo 2º, do novo Código, e do raciocínio que o subjaz, constatar-se-á que o método empregado para não aplicação de uma regra com ele não se coaduna.[5] Pelo contrário, o comando dirigido ao juiz, a partir de uma interpretação lógico-sistemática de todo o artigo 487, é para que ele siga a lei e eleja o princípio adequado para a melhor solução do caso concreto, bem fundamentando assim sua decisão.

Não é justo, por fim, atribuir ao novo Código, por conta desses dispositivos que reforçam alguns deveres do juiz, a pecha de autoritário. O que caracteriza a nova legislação processual no que atine à relação Estado-Indivíduo é a colaboração e o diálogo entre os sujeitos processuais, como evidencia o artigo 6º (“Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”) e o artigo 10 (“O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”) do novo Código. Não se pode esquecer, ademais, que as normas processuais, por excelência, não se destinam a leigos. Todos que com elas operam são técnicos que compartilham de um repertório mínimo de conhecimento comum. Fazer menoscabo da possibilidade desses técnicos operarem um instrumental, seja ele complexo quanto o for, é não confiar na possibilidade de aprimoramento da administração da justiça em nosso país.


([1]). A paródia refere-se a pensamento de Winston Churchill proferido em discurso na Casa dos Comuns em 11 de novembro de 1947: “ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeito. Tem-se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas as demais formas que têm sido experimentadas de tempos em tempos”  

([2]). Ver: “Ponderação de normas no Novo CPC? É o caos. Presidente Dilma, por favor, veta!”. O texto na íntegra pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: http://www.conjur.com.br/2015-jan-08/senso-incomum-ponderacao-normas-cpc-caos-dilma-favor-veta

([3]). Ver: Em 10 de janeiro, em novo artigo publicado pelo Consultor Jurídico, André Karam Trindade e Fausto Santos de Morais, também se manifestaram contrários à entrada em vigor do referido dispositivo. Referidos autores, assim como Lenio Streck, associam a ponderação com o subjetivismo judicial que resultaria em decisões jurídicas discricionárias (“Debate sobre ponderação no novo CPC e os perigos do decisionismo”. O texto na íntegra pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: http://www.conjur.com.br/2015-jan-10/diario-classe-debate-ponderacao-cpc-perigos-decisionismo?utm_source=dlvr.it&utm_medium=twitter).  

Em 12 de janeiro, o Consultor Jurídico publicou reportagem contendo opinião de diversos especialistas a respeito do tema (“Novo CPC permite abusos interpretativos do juiz, dizem advogados”. O texto na íntegra pode ser acessado por meio do seguinte endereço eletrônico: http://www.conjur.com.br/2015-jan-12/cpc-permite-abusos-interpretativos-juiz-dizem-advogados).

([4]). Ver: Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, cap. 2, n. 2.4.8.1.3, pp. 175 e ss.  

([5]). Ver a respeito das hipóteses excepcionais de superação de regras a lição de Humberto Ávila, Teoria dos princípios, 10ª ed., São Paulo: Malheiros, 2009, pp. 114 e ss.

Autores

  • é professor Doutor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Vice-Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo. Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Integrou a Comissão Especial do Novo CPC na Câmara dos Deputados.

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