Direitos Fundamentais

As aproximações e tensões existentes entre os Direitos Humanos e Fundamentais

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23 de janeiro de 2015, 7h01

Hoje trazemos à consideração e reflexão dos leitores algo que segue sendo objeto de intensa controvérsia doutrinária, mas também atraindo uma série de aspectos de relevância prática: a própria definição do que são direitos fundamentais e a articulação desses direitos fundamentais com aquilo que se convencionou chamar de direitos humanos, assim como as consequências jurídicas que dai decorrem. Aliás, no cenário interno e externo não faltam episódios a nos recordar e fazer refletir sobre o que são e significam os direitos humanos e fundamentais e em que medida não se trata de pautas carentes de eficácia e efetividade. Extremismos de toda ordem, recrudescimento do preconceito, da intolerância, dos discursos do ódio, tudo isso em meio a manutenção e mesmo incremento dos níveis de desigualdade econômica, social e cultural, degradação ambiental, violência física e moral, dissolução das identidades pessoais e coletivas, tudo a demonstrar o quanto a temática merece seguir no centro das atenções e o quanto é possível apresentar, discutir e propor numa coluna dessa natureza.

Mas com isso já se coloca uma pergunta que não quer calar! Afinal, há de fato diferenças entre os direitos fundamentais e os direitos humanos? Não se cuida, ao fim e ao cabo, da mesma coisa? Direitos Fundamentais não são sempre direitos humanos e esses, por sua vez, não são sempre direitos fundamentais, ainda mais numa fase em que a maior parte dos Estados já ratificou os principais tratados internacionais em matéria de direitos humanos? Aliás, a própria opção terminológica adotada para efeitos da presente coluna (Direitos Fundamentais ao invés de Direitos Humanos) por si só já poderia ser questionada, revelando uma linha de orientação comprometida com uma determinada concepção e linha de abordagem do tema. Por isso, não só é o caso de justificar a opção, como de demonstrar o quanto é adequada e produtiva, o que somente será possível mediante a apresentação e discussão do conceito adotado de direitos humanos e de direitos fundamentais, mas também do sentido e relevância teórica e prática dos elementos em comum e das eventuais tensões entre as duas esferas. É o que buscaremos fazer, pelo menos em nível de um primeiro passo, na coluna de hoje.

Já é do conhecimento comum que tanto na doutrina, quanto no direito positivo (constitucional ou internacional), são largamente utilizadas outras expressões que não a de direitos fundamentais, tais como “direitos humanos”, “direitos do homem”, “direitos subjetivos públicos”, “liberdades públicas”, “direitos individuais”, “liberdades fundamentais” e “direitos humanos fundamentais”, isso apenas para referir algumas das mais importantes, o que apenas revela o quanto, pelo menos do ponto de vista terminológico, não se registra um consenso, inclusive quanto ao significado e conteúdo de cada termo utilizado, muito embora em diversos casos apenas se trate de uma eleição de rótulo distinto para o mesmo conteúdo. É, por outro lado, significativo que na literatura filosófica, na esfera política e social, mas também nos meios de comunicação e na literatura em geral, o termo preferido seja o de direitos humanos, sem que se tenha, no mais das vezes, preocupação sequer em traçar um marco distintivo em relação a outras categorias. Em suma, o que parece prevalecer, nesse contexto, é a ideia de que os direitos humanos são sempre fundamentais, ainda que nem isso esteja sempre claramente enunciado quando se fala em direitos humanos no dia-a-dia. Isso apresenta reflexos até mesmo do ponto de vista institucional, pois em geral o que se verifica é a existência e ampla difusão de comissões de direitos humanos (e não comissões de direitos fundamentais), assim como de organizações não-governamentais (ONGs) dedicadas aos direitos humanos, igualmente privilegiando tal opção terminológica.

Aliás, tal diversidade semântica se reflete inclusive no texto da nossa Constituição Federal de 1988, onde encontramos expressões como: a) direitos humanos (artigo 4º, inciso II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e artigo 5º, parágrafo 1º); c) direitos e liberdades constitucionais (artigo 5º, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV). Também aqui segue válida a indagação se o constituinte estava a contemplar em todos os casos a mesma coisa ou se também no direito constitucional positivo brasileiro há espaço para uma distinção entre direitos fundamentais e outras figuras, tal como é o caso dos direitos humanos. Por outro lado, a referência genérica, na epígrafe do Título II, aos “Direitos e Garantias Fundamentais”, representou uma novidade em relação ao direito constitucional positivo brasileiro anterior, pois em nenhuma outra constituição se lançou mão da expressão direitos fundamentais: na Constituição de 1824, falava-se nas “Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, ao passo que a Constituição de 1891 continha simplesmente a expressão “Declaração de Direitos” como epígrafe da Secção II, integrante do Título IV (Dos cidadãos brasileiros). Na Constituição de 1934, utilizou-se, pela primeira vez, a expressão “Direitos e Garantias Individuais”, mantida nas Constituições de 1937 e de 1946 (integrando o Título IV da Declaração de Direitos), bem como na Constituição de 1967, inclusive após a Emenda nº 1 de 1969, integrando o Título da Declaração de Direitos.

Com isso, os constituintes de 1987-88, de modo mais ou menos consciente, acabaram aderindo a uma tradição que, embora encontre algumas manifestações anteriores, pode ter o seu marco inaugural atribuído à Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, mas que acabou sendo objeto de ampla recepção pelo menos no constitucionalismo ocidental, chegando, muito também pela influência de constituições como, entre outras, a de Portugal (1976), Espanha (1978), Turquia (1982), Holanda (1983), até chegar ao Brasil. Aliás, mesmo na França, onde por tanto tempo predominou a expressão “liberdades públicas” já de há muito e cada vez mais se recorre ao termo direitos fundamentais, que, de resto, também foi adotado no plano europeu, na Carta de Direitos Fundamentais da Europa, aprovada em 2000 e que se fez vinculativa quando da incorporação ao Tratado de Roma e sua respectiva entrada em vigor (2009).

Mas a adesão expressa a certa terminologia (direitos e garantias fundamentais), pelo menos para efeito de abarcar as diversas categorias de direitos que integram os diferentes capítulos do Título II da CF/88 (dos direitos e deveres individuais e coletivos, dos direitos sociais, da nacionalidade, dos direitos políticos e dos partidos políticos) não implica automaticamente a adoção de um determinado conceito de direitos fundamentais e muito menos explica, por si só, se tal conceito abrange o de direitos humanos (ou lhe é equivalente), ou mesmo se existem diferenças substanciais (no sentido do conceito subjacente) entre direitos fundamentais, direitos humanos e os demais termos utilizados ao longo do texto constitucional, tal como indicado.

No que se poderia aqui designar de uma primeira aproximação por exclusão, cabe referir que a tendência registrada no âmbito da moderna doutrina sobre o tema é a de afastar cada vez mais a utilização de termos como “liberdades públicas”, “liberdades fundamentais”, “direitos individuais” e “direitos públicos subjetivos”, “direitos naturais”, “direitos civis”, assim como as suas variações, especialmente por se tratar de termos que, ao menos na condição de termos genéricos, anacrônicos e, de certa forma, divorciados do estágio atual da evolução dos direitos fundamentais no âmbito de um Estado (democrático e social) de Direito, até mesmo em nível do direito internacional, além de revelarem, com maior ou menor intensidade, uma flagrante insuficiência no que concerne à sua abrangência, visto que atrelados a categorias específicas do gênero direitos fundamentais ou direitos humanos. Precisamente pelo fato de nosso intento é o de privilegiarmos a adoção de um conceito genérico, não pretendemos adentrar o exame do significado específico ou mesmo das diferenças entre os diversos termos referidos, mas sim, de uma terminologia e respectivo conceito que seja ao mesmo tempo capaz de abarcar as diferentes espécies de direitos e de ser internamente coerente do ponto de vista formal e material: em suma, de um conceito consistente e constitucionalmente adequado.

Já por tal razão é que assume especial significado a clarificação da distinção entre as expressões “direitos fundamentais” e “direitos humanos”, nada obstante, como já anunciado, também se verifique uma corrente confusão entre os dois termos, confusão esta que se revela como inaceitável a depender do critério adotado. Quanto a tal ponto, não há dúvidas de que os direitos fundamentais, de certa forma, são também sempre direitos humanos, no sentido de que seu titular sempre será o ser humano, ainda que representado por entes coletivos (grupos, povos, nações, Estado). Fosse apenas por este motivo, impor-se-ia a utilização uniforme do termo “direitos humanos” ou expressão similar, de tal sorte que não é nesta circunstância que encontraremos argumentos idôneos a justificar a distinção.

Em que pese os dois termos (“direitos humanos” e “direitos fundamentais”) sejam comumente utilizados como sinônimos, a explicação corriqueira para a distinção é de que o termo “direitos fundamentais” se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado (como é o caso, dentre tantos, de José Joaquim Gomes Canotilho) ao passo que a expressão “direitos humanos” guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter internacional (Jorge Miranda). Mas também tal definição não é a única disponível, seja para direitos fundamentais, seja para o caso dos direitos humanos.

Com efeito, não é incomum que o conceito de direitos humanos seja equiparado ao de direitos naturais, na condição de direitos inatos e inalienáveis de todo e qualquer ser humano, muito embora também aqui existam diversas alternativas para a justificação de um conceito de direitos humanos. Mas independentemente da existência, ou não, de direitos do homem (ou direitos humanos) na perspectiva de uma doutrina do direito natural, o fato é que a própria positivação em normas de direito internacional e de direito constitucional interno, já revelou a dimensão histórica e relativa dos direitos humanos e também dos direitos fundamentais (conforme, por exemplo, já defendia Norberto Bobbio, no seu A Era dos Direitos). Todavia, não devemos esquecer que, na sua vertente histórica, os direitos humanos (internacionais) e fundamentais (constitucionais) radicam no reconhecimento, pelo direito positivo, de uma série de direitos do homem que constituíam a pauta dos autores adeptos do direito natural. Por outro lado, é possível admitir (ainda que se cuide de algo polêmico) que independentemente da existência dos direitos humanos e dos direitos fundamentais, sigam existindo direitos de natureza supra estatal, com validade universal, que inclusive vinculam e limitam as maiorias constituintes, ao passo que os direitos fundamentais correspondem aos direitos fundados no pacto constituinte e que limitam as maiorias parlamentares (cf. Jörg Neuner, Los Derechos Humanos Sociales, in: Anuário Iberoamericano de Justicia Constitucional, 9, 2005, p. 239). Nesse contexto, para que se possa ilustrar o ponto mediante referência a um ilustre representante do pensamento filosófico contemporâneo, calha invocar o magistério de Otfried Höffe (Derecho Intercultural, p. 166-69), que destaca a pertinência da diferenciação conceitual entre direitos humanos e fundamentais, justamente no sentido de que os direitos humanos, antes de serem reconhecidos e positivados nas Constituições (quando então se converteram em direito positivado e assumiram a condição de direitos fundamentais), integravam apenas uma espécie de moral jurídica universal, de tal sorte que os direitos humanos referem-se ao ser humano como tal (pelo simples fato de ser pessoa humana) ao passo que os direitos fundamentais (positivados nas Constituições) concernem às pessoas como membros de um ente público concreto.

Ora, a compreensão (muito popular atualmente) de que direitos humanos são direitos de cunho moral, visão que também a compartilhada por autores como Robert Alexy, não é incompatível com a simultânea condição de direitos (humanos e/ou fundamentais) consagrados no plano do direito positivo. O mesmo é possível afirmar em relação às concepções que buscam justificar a distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais com base no critério da titularidade, ou seja, do sujeito dos direitos, de tal sorte que direitos humanos teriam sempre como titular o sujeito-pessoa natural, ao passo que a titularidade dos direitos fundamentais poderia ser atribuída também a sujeitos fictos, inclusive pessoas jurídicas e quiçá mesmo sujeitos de direitos que não integram a espécie humana, como dá conta a discussão em torno dos direitos dos animais ou da natureza não humana em geral, o que, contudo, não é o tema de hoje. De qualquer sorte, como o nosso propósito não é o de apresentar os diversos conceitos (e respectivas justificações) possíveis de direitos humanos do ponto de vista filosófico, mas sim o de sustentar uma distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais do ponto de vista jurídico-positivo, afinada com a evolução no plano do reconhecimento jurídico internacional e constitucional, é para essa direção que encaminhamos a presente abordagem. Na próxima coluna teremos ocasião de avançar com o tema e de demonstrar alguns de seus reflexos mais importantes.

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